II Jornada de Cinema Silencioso – 2008

São Paulo, cidade das oportunidades, da cultura, da arte, dos museus e dos teatros, dos cinemas e das exposições, a cidade que não pára. Mas é também a cidade do trânsito, da poluição, do caos urbano, do stress, e dos estacionamentos a 10 reais a hora.

O custo de vida abusivo da metrópole paulista tem refletido principalmente na indústria do entretenimento. Nem é preciso dizer que o povão está alienado a esses locais, basta olhar o preço do ingresso de cinema a 12, 16 reais nos grandes shoppings. E se nem o diabo amassa mais o pão, o que dirá do circo. (Valium) O importante é comprar Cirque du Soleil, assistir passa a ser o meio e não o fim. O fim é o status: pagar palhaços caros está na moda, e em Brasília isso já é “old fashioned”.

Felizmente a larga escala de produção artística da cidade possibilita um grande leque de alternativas baratas. Sábado, dia 16 de agosto, tive essa experiência e busquei gastar o mínimo possível. À tarde a New Orleans Jazz Orquestra tocou no Ibirapuera em um evento aberto. Depois, visitei duas instalações gratuitas de arte eletrônica na Avenida Paulista: File 2008 e Emoção Artificial 4.0: Emergência!

À noite, para terminar o fim de semana muquirana, fui à Cinemateca assistir a Limite de Mário Peixoto na II Jornada de Cinema Silencioso. O filme mudo foi orquestrado ao vivo por Livio Tragtenberg, compositor experimental e saxofonista que criou a Blind Sound Orchestra com músicos cegos que tocam filmes mudos.

Eu esperava uma coisa simples, com músicas clássicas tocadas no piano sem muita pretensão. Mas assim que começou o filme logo percebi que a viagem iria ser muito mais interessante. Tragtenberg intercalava toques nas teclas do piano e sopros no sax, além de distorcer o som dos instrumentos com sua aparelhagem de som. Monitorando e mudando músicas pré-elaboradas através do laptop, o compositor absorveu a essência do filme e construiu uma experimentação sonora incrível e digna da denominação “montagem vertical” tão abordada por Ismail Xavier em suas análises de Glauber Rocha.

Intercalando a piração imagética que ocorrera em 1931 e a outra sonora que acontecia ao vivo 77 anos depois, meus olhos tentavam absorver toda aquela experiência. O momento mais interessante para mim foi quando um terceiro artista entrou na performance: o tempo. O bolor/mofo desgastou a película de certa forma que em uma seqüência inteira mal pudemos ver o que ocorria nas cenas. Aquele show plástico de formas e texturas que se misturavam à linguagem do filme pode ter confundido muita gente, pensando ser obra proposital do autor. Arrisco dizer que Mário Peixoto teria adotado a estética.

Em outra passagem, a metalinguagem apresentada no filme se expandiu para a sala de exibição da cinemateca. Em uma das seqüências, um dos personagens vai ao cinema onde é exibido um filme mudo orquestrado ao vivo por um pianista. Ele e Tragtenberg pareciam travar uma batalha à parte nesse momento.

Esse metacinema de exibição trouxe para mim um grande questionamento e total quebra de catarse. Enquanto os espectadores do filme eram mostrados em plano detalhe, rindo os dentes para fora, comecei a observar a sala de cinema da minha realidade. Mas rindo do quê? Mário Peixoto parece jogar essa pergunta no ar. O questionamento do cinema industrial deixa de ser poético e passa a assumir um caráter objetivo, simples, de fácil entendimento, cáustico.

Limite é a primeira experiência de cinema relevante no Brasil. Seja na narração, seja na montagem, Mário Peixoto quebrou o fluxo do cinema mudo brasileiro que tentava desesperadamente copiar, sem sucesso, o cinema norte-americano.

Um homem e duas mulheres à deriva, sem água, sem comida, esperando a morte chegar. Como foram parar ali? Seria um triângulo amoroso? Como eles escaparam dessa horrível morte? Talvez um navio pirata? Limite ignora essa bobagem toda e parte para a essência daquelas pessoas. O barco é uma metáfora. Através de flashbacks descobrimos que a vida daqueles personagens já estava à deriva muito antes do mar. Traição, vazio, desequilíbrio, desespero, infelicidade: as histórias contadas pelos próprios náufragos mostram a decepção com a vida. Apesar de temerem a morte sabem que ela é a melhor opção.

O filme é recheado de metáforas que, juntamente com a montagem a la Eisenstein, constroem um trabalho poético de grande valor rítmico.

Já no final, por exemplo, Mário Peixoto monta uma seqüência de ondas chocando-se entre si e contra as rochas em uma verdadeira dança de fluidos. Os variados planos se repetem durante um longo tempo, assim como algumas seqüências de Encouraçado Potenkin de Eisenstein. Limite encontra através dessa seqüência uma forma abstrata de representar uma horrível tempestade e ressaca do mar. Soluções inteligentes e que, ao mesmo tempo, assumem o caráter subdesenvolvido do cinema brasileiro tentando explorar o verdadeiro potencial das imagens como forma de narrar.

Outro destaque é a pouca utilização dos intertextos durante o filme, desvinculando assim o cinema da literatura. Limite tenta se explicar, ou não, através das sensações e impressões que cada um tem ao ver a película. Seu objetivo, a meu ver, não é que simpatizemos com os personagens para sentirmos compaixão pela situação que enfrentam, e sim fazer o próprio espectador refletir sobre sua vida e existência. Estaria eu também à deriva esperando a morte chegar?

O trato com a natureza também chamou minha atenção. Planos extremamente bem pensados, com enquadramentos e fotografia bem distribuídos, tentam explorar a beleza e naturalidade da paisagem local. Árvores, rochas, areia, mar, redes de pescadores, barcos, caminhos de terra: tudo se encaixa perfeitamente nos planos estáticos que vão aparecendo durante o filme.

Enquadramentos não convencionais, tortuosos e inesperados acontecem durante toda a experiência cinematográfica. Lembro de um enquadramento específico em que a câmera está colocada sobre o poste de luz, enquadrando os fios de alta tensão que se afastam da lente dando uma ótima percepção de profundidade de campo. Nesse momento, Tragtenberg utilizou ruídos mesclados simulando o som de energia que percorre fios de alta tensão.

Os contraplanos também são desorientados, quebrando o eixo do cinema clássico. Em alguns momentos, as conversas são filmadas em contra-plongé desde os pés dos personagens, enquanto que em outras vemos de cima de uma árvore uma mulher passeando pela rua.

Os movimentos de câmera também se destacam devido à dificuldade de mobilização das enormes câmeras daquela época. Impressionou-me muito o plano em que a câmera se aproxima de uma bica d’água. A câmera sai do nível do solo e se eleva até o buraco da pedra por onde jorra água. Um movimento não fluido, mas dinâmico e rápido. Mário Peixoto parece se gabar do feito, e repete diversas vezes o mesmo plano. Em outra seqüência, o diretor coloca a câmera em diversos pontos do trem, enquanto depois gira a câmera 360 graus no pico de um monte. “Precariedade” versus “Tecnicismo”. Tudo no mesmo filme, provando que Limite não é uma mera brincadeira estética primária, e sim um trabalho sério de experimentação cinematográfica.

Felipe Carrelli é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta