Festival É Tudo Verdade

Festival É Tudo Verdade 2008 e 8ª Conferência de Documentário – Documentário Experimental

O Festival É Tudo Verdade, fundado e dirigido por Amir Labaki, chegou, em 2008, na sua 13ª edição. A importância nacional e internacional deste festival foi comprovada pela presença de palestrantes renomados e mostras inteligentes com filmes consagrados e lançamentos. Para mim, esse festival tem uma importância sentimental ainda maior: foi durante a 11ª edição que eu, assistindo um documentário de Werner Herzog, comecei a apreciar este gênero e decidi prestar vestibular para o curso de audiovisual.

Dois anos depois minha procura era outra. Fui a São Paulo em busca de esclarecimentos a respeito do que seria um documentário experimental, pois era justamente esse conceito que impedia um maior desenvolvimento conceitual de um roteiro que estou escrevendo.

Durante a 8ª Conferência de Documentário, cujo tema era o Documentário Experimental, teóricos e realizadores tentaram, ou não, definir esse conceito. Diferentes idéias foram levantadas abordando diversas etapas da produção cinematográfica, escolas de cinema e cineastas.

Volto a São Carlos com uma única certeza: não posso e não pretendo definir o que é um documentário experimental. Rótulos são códigos que auxiliam a comunicação, mas para entendermos o que significa o termo no campo sensorial é preciso fazer um levantamento das idéias e experiências relatadas que, juntas, não só esclareceram o que seria a experiência no documentário, mas me ajudaram a conceituar e construir o roteiro do meu trabalho.

Segundo o próprio Labaki escreveu no guia de apresentação da conferência, “o documentário contemporâneo não se firmou na linha de frente da experimentação artística por meio de filmes-punho (documentário com causa), bem o contrário”. Foram onze convidados distribuídos em cinco mesas, durante três dias de palestras. Betsy A. McLane e Jean-Pierre Rehm abriram a conferência com a mesa “Panorama Histórico do Documentário Experimental”. Ainda na quarta-feira, Michael Renov e Arlindo Machado compuseram a segunda mesa “Novos Territórios do Documentário”. No dia 3 de Abril, Tetê Matto, Samuel Paiva e Sergio Rizzo apresentaram a mesa “O Documentário Experimental no Brasil I”. O terceiro e último dia teve mais duas mesas: “O Documentário Experimental no Brasil II” com Carlos Alberto Mattos. Maria Henriqueta Satt e Rubens Machado Jr. e “A Visão do Realizador: Um Diálogo com Jorgen Leth” com o próprio realizador.

Betsy A. McLane, abrindo a conferência, afirmou que o documentário é a forma mais intensa em relatar a realidade poética. Em sua breve descrição do panorama histórico do documentário experimental, McLane lembrou que Dziga Vertov, já nos anos 20, apontava as formas cinematográficas daquela época fadadas à “morte” e que experimentar era o único antídoto.

Betsy lembrou que os filmes de sinfonias das cidades eram exemplos de cinema experimental que se espalharia por todo o mundo, como diversas versões e que serviu como a primeira experiência artística no cinema que se espalhou pelo mundo. Buñuel e Cavalcanti também foram lembrados por suas experimentações, principalmente Cavalcanti por sua diferente abordagem do som nos filmes produzidos por ele e Grierson.

Arlindo Machado disse em sua fala na segunda mesa que a busca por simples denominações homogêneas está na contramão do processo cinematográfico que vem rompendo fronteiras e ditando novos paralelos. Segundo Machado, a definição de documentário é tudo aquilo que não é ficção, e que a melhor definição para documentário experimental seria tudo que não é ficção ou documentário. Andrea Tonacci em um debate na cinemateca de São Paulo foi ainda mais enfático: “Experimental é a vida e o cinema é a forma de mostrar a experiência da minha vida. Atua como um espelho”.

Para Tonacci, experimentar é tentar, perguntar, mudar e transformar o filme durante o processo de imaginação, é surfar na mente, é a forma de relacionar-se com a situação, atuando até mesmo no processo de montagem, respeitando a paciência e a intuição, errar e incorporar o erro. O cineasta citou o exemplo de Aruanda (1960), quando o erro de revelação do filme proporcionou a luz estourada que mais tarde seria usada excessivamente pelos cinema-novistas no Brasil.

O erro, e as oportunidades que ele proporciona, também foi citado por Jorgen Leth na última mesa. Leth apontou que procurava questionar as tradições dos documentários “chatos” e repetitivos. Amir Labaki, diretor do festival presente nessa mesa, lembrou que, enquanto o cinema verdade era desenvolvido, Leth provocava com Perfect Human (1967), feito em estúdio e com atores. O cineasta afirmou ainda que a falta de dinheiro é parte da experimentação e por isso os países subdesenvolvidos deviam explorar esse impasse, não como problema, mas como solução. Nesse sentido o diretor ainda lembrou que é por isso que prefere o vídeo à película, pois é capaz de um maior leque de experimentação pelo fato de o autor ter maior liberdade de movimentação e tempo já que o vídeo é infinitamente mais barato que o filme.

Jean-Pierre Rehm abriu sua fala na primeira mesa dizendo que seria interessante dialogar sobre o cinema experimental em uma cidade tão experimental como São Paulo. Rehm lembrou que o cinema documental sofre de duas maldições. A primeira é histórica, representada pelo primeiro filme da história do cinema. A Saída dos Operários da Fábrica (1895) dos Irmãos Lumière representa, para Pierre, apesar da ingenuidade do evento simples e cenário elementar, uma exemplificação da força dos patrões sobre os operários, que são obrigados a trabalhar mesmo após o expediente, desta vez para a imagem.

Mais que isso. Jean-Pierre alerta para o fato de que a mais valia, que proporcionou a invenção do cinema, também é responsável por sua sobrevivência através do lucro proveniente da venda dos ingressos, comprados pelos próprios operários. Segundo o palestrante, o único elemento experimental do filme, apesar de ser uma das primeiras experiências com esse instrumento, é o cachorro desfocado que entra e sai de quadro. Seus latidos mudos e liberdade de atuação são a promessa do movimento, o futuro do documentário.

A segunda maldição é a questão levantada por Sergio Dani, apontando que o documentário age como uma mumificação, petrificando o cadáver mesmo após a morte. Por isso, para o autor, a definição “documentário experimental” seria um pleonasmo, pois todos os cineastas lutam contra essas duas maldições, cada um com sua estratégia, mas todos experimentando.

Arlindo Machado dialogou com essa fala, acrescentando que existem vários modelos de documentário. O falso documentário é aquele que utiliza sua linguagem para questionar e refletir a facilidade de manipulação das imagens. O meta-documentário, por outro lado, reflete os limites éticos desse instrumento, ressaltando a exploração do cineasta ao se apropriar de uma história alheia e eventualmente lucrar com isso sem retorno ao entrevistado.

Essa questão também foi levantada por Andrea Tonacci quando ele lembrou que o processo de entrada (que em seu caso é ainda maior por estar documentando indígenas) sofre impactos na religião, medicina e principalmente auto-estima, pois no momento que o nativo percebe que sua tecnologia é menos eficiente, ele põe em cheque suas crenças e acaba optando pela cultura do outro. Sergio Rizzo em sua análise sobre a obra de Tonacci também apontou que o diretor atua como um antropólogo que admite a diferença entre as culturas e busca a expressão dessa cultura através do ganho de confiança. O convidado explicou que, antes de começar o processo de gravação, Tonacci convive durante um tempo com os indígenas com a câmera desligada para que os indígenas se acostumem ao instrumento e possam atuar com naturalidade.

Na terceira mesa, Tetê Marques observou a desconstrução inquieta e inovadora da linguagem do documentário na obra de Glauber através de três filmes: Maranhão 66 (1966), Di-Glauber (1977) e Jorge Amado no Cinema (1979). A abordagem sem idolatria e totalmente não-convencional da posse de José Sarney em Maranhão 66 utiliza a própria voz do político no discurso para contrastar com as imagens e criticar o discurso. Em Jorge Amado, a desconstrução acontece no processo de entrevista quando corta, interrompe e desvia o assunto, constrangendo o entrevistado, sem deixar Jorge Amado desenvolver uma linha de pensamento. Esses elementos de refletividade também estão presentes em Di-Glauber, filme que apresenta outras possibilidades de representação da morte, utilizando narração em tom radiofônico, poemas declamatórios, meta-narração e trilha sonora divergente da tradicional com samba, chorinho e marcha de carnaval. A montagem descontínua e frenética, em que quantidade significa qualidade, também é uma característica do documentário experimental de Glauber, assim como a metalinguagem, que está presente quando Glauber aparece na imagem dirigindo o filme ou revive a filmagem através das matérias de jornais.

Essa desconstrução da linguagem ocorre também em Rogério Sganzerla, como apontou Samuel Paiva. Sganzerla propõe em seus filmes a indistinção entre documentário e ficção, juntando os dois gêneros, exatamente como Godard defendia. Samuel descreveu que Sganzerla desenvolveu diversos conceitos experimentais que depois eram usados em seus filmes. O expressionismo caipira, o tempo solto não progressivo e a câmera cínica (esvaziamento do heroísmo dos personagens) eram alguns deles.

Carlos Alberto Mattos abriu a quarta mesa decorrendo sobre o cinema experimental de Arthur Omar. Segundo o palestrante, Omar transita entre várias formas de expressão: desenho, composição musical, fazendo pontes entre suas obras. Para o diretor, o cuidado na exibição e o processo de recepção de seus filmes deveriam ser ideais. As instalações do cineasta tentavam trabalhar a simultaneidade das mídias, levando em conta o envolvimento do espectador.

Em seus filmes, Arthur Omar criticava todo o processo de ilusão de reconstituição e satisfação que o espectador tem quando assiste a um documentário, alegando ser este gênero um subproduto da ficção narrativa por ter esse intuito de conhecimento. Seus filmes exploravam a experiência em detrimento da pesquisa, construindo um discurso crítico não puramente destrutivo.

Mattos ainda apontou que, em uma segunda fase, Omar desenvolve um cinema mais plástico e conceitual, explorando a textura e granulando a imagem. Em outros filmes podemos observar a importância do som na vida das pessoas, a manipulação do silêncio com criteriosa demonstração de pequenos sons, e até transcendentalização do real na experiência através de fotos de cadáveres destroçados e retorcidos com música sacra.

Durante o festival assisti muitos documentários que me chamaram a atenção e despertaram idéias para o meu projeto. Entretanto, duas sessões específicas, ambas na cinemateca, me marcaram. A primeira foi durante a exibição de Conversas no Maranhão de Andrea Tonacci quando em uma entrevista de vários minutos, sem cortes, um indígena conta seus “causos”, porém não podemos (eu, pelo menos) compreender quase nenhuma palavra. Os minutos se passavam e eu desisti de tentar entender as palavras, e, através dos gestos do índio e dos movimentos de panorâmica que iam e vinham desvendando outros nativos que passavam, consegui sentir a angústia daquela sociedade reprimida, pedindo ajuda desesperadamente. Essa cena mostra, para mim, a deficiência da comunicação “normalizada” pelas nossas tradições e porque devemos buscar novas fronteiras na linguagem cinematográfica, de modo a abranger mais visões e sentidos.

O curta de A. S. Cecílio Neto, Wholes (1991), exibido na mostra “Retrospectiva Brasileira de Experimentais”, também me despertou pensamentos diversos. Usando a grande angular, distorcendo as laterais de algumas imagens e com uma narração desconexa e irônica, ao estilo de Ilha das Flores (1989), o curta explora os buracos da cidade, afirmando que o grande problema de São Paulo são os buracos. Estrategicamente, São Paulo, A Sinfonia da Metrópole (1929), foi colocado após Wholes. A diferença de visões das duas épocas, a primeira, contemporânea, desconstruindo a cidade, enquanto a segunda, mais antiga, ressalta as possibilidades do progresso da cidade do futuro, mostrou que a experimentação está em constante mudança e que não deve formar dogmas. Devemos buscar sempre novas referências mas respeitando nossas sensações, e para isso o É Tudo Verdade serve como perfeito catalisador de experiências.

Felipe Carrelli é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem um comentário

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    eliane de mello garcua

    EXCELENTE ARTIGO MUITO EXPLÍCITO EM SEU DESENVOLVIMENTO.
    PARABÉNS AO FELLIPE PROVAVELMENTE HOJE JÁ UM CINEASTA NÃO?
    O EXERCÍCIO DA ESCRITA E DA IMAGEM DEVEM SEMPRE SEGUIR JUNTOS- ACREDITO QUE UMA CAPACIDADE ÍMPAR PARA QUEM “MEXE” COM IMAGENS… POR EXEMPLO UM DOCUMENTARISTA.
    ACREDITO QUE MESMO NÃO SENDO “LEIGA” NO ASSISTIR DOCUMENTÁRIOS MUITAS VEZES TENHO DIFICULDADE DE ENTENDER ESSA LINGUAGEM NO CINEMA – A DO FILME ETNOGRÁFICO POR EX. (TENHO O CRIVO DE PROFESSORA QIE SE UTILIZA COMO INSTRUMENTO DIDÁTICO MAS TAMBÉM COMO GEÓGRAFA – ALIÁS MUITOS DE NÓS SÃO CINEASTAS).

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