O Cinema Sem Limite de Rogério Sganzerla

O CINEMA SEM LIMITE DE ROGÉRIO SGANZERLA

Samuel Paiva é Professor Adjunto da Universidade Federal de São Carlos, na área de Teoria e História do Audiovisual (Cinema e Televisão). Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco (1986), mestre (1999) e doutor (2005) em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.

(Comunicação apresentada na 8ª. Conferência Internacional do Documentário: “O Documentário Experimental”, durante o 13º Festival É Tudo Verdade, São Paulo, 03 de abril de 2008)

Minha proposta nesta conferência é questionar algumas dimensões experimentais do cinema de Rogério Sganzerla. As questões que serão tratadas, na verdade, resultam de minha tese de doutoamento, que se intitula A Figura de Orson Welles no Cinema de Rogério Sganzerla. De antemão, posso já afirmar que a relação entre o cinema de Sganzerla e o cinema de Orson Welles, questão tratada nos documentários de Sganzerla incluídos nesta edição do Festival É Tudo Verdade, tanto nos curtas Documentário (1966) e Linguagem de Orson Welles (1991) quanto no longa Tudo É Brasil (1997), é uma questão fundamental para a compreensão do experimental que aqui estará em pauta.

Antes, porém, de abordar mais diretamente as implicações das relações intertextuais Sganzerla/Welles, eu gostaria de levantar alguns dados acerca do que poderia, na minha percepção, ser compreendido como experimental na obra de Sganzerla, mesmo considerando a noção de experimental, em termos genéricos, como algo em aberto, um conceito indefinido.

O que eu proponho questionar acerca das prováveis dimensões experimentais do cinema (e não exclusivamente do documentário) de Rogério Sganzerla poderia ser colocado resumidamente a partir de três aspectos, a saber, (1) uma cultura de cinemateca que resulta em uma concepção da História como conflito; (2) a construção de uma teoria do cinema proposta pelo próprio autor e que passa por conceitos diversos que apontam para a possibilidade de um cinema sem limites; (3) a percepção no seu discurso cinematográfico de configurações recorrentes, tais como carnavalização, viagem e metacinema. Por sua vez, cada um desses itens pode se desdobrar em vários outros. Mas vamos tentar cercá-los pontualmente:

Primeiro aspecto – a questão da cultura de cinemateca que resulta em uma concepção da História como conflito:

Rogério Sganzerla nasceu na cidade de Joaçaba, no Estado de Santa Catarina, em 26 de novembro de 1946, mas veio ainda muito jovem para São Paulo, onde, ainda adolescente, começou a freqüentar a Cinemateca Brasileira. Na verdade, na Cinemateca ele pôde dar continuidade a uma cinefilia que começara muito antes, ainda nos tempos de colégio em Santa Catarina. Esse contato de Sganzerla com a Cinemateca foi fundamental para a sua concepção de Cinema e de História. E isso por várias razões, mas sobretudo porque, ao que tudo indica, na Cinemateca ele tomou contato com o Brasil e com o mundo a partir da expressão cultural que mais lhe instigava: o cinema. Prova disso é um trabalho escolar que ele realizou em 1961 (portanto com 15 anos de idade), já morando em São Paulo, sobre o Major Reis, o cinegrafista da Comissão Rondon.

Outro dado importante relacionado à Cinemateca diz respeito ao fato de que, naquele espaço, Sganzerla passou a ter contato com personalidades que de várias maneiras seriam fundamentais para a constituição do campo do cinema brasileiro moderno. Nesse sentido, alguns pesquisadores destacam especialmente sua proximidade com o crítico Almeida Salles. Mas, para mim, a referência maior, quando está em questão a formação de Sganzerla como cineasta experimental, é Paulo Emilio Salles Gomes. Explico minhas razões: um argumento, a propósito, diz respeito ao momento-chave das principais tensões entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Refiro-me ao lançamento de O Bandido da Luz Vermelha (1968) primeiro longa de Sganzerla. É oportuno recordar a reação negativa que Paulo Emilio provocou no pessoal do Cinema Novo por sua simpatia pelos marginais. E aqui seria possível lembrar um trecho de Revolução do Cinema Novo, livro de Glauber Rocha, no qual, criticando contundentemente Paulo Emilio, Glauber Rocha diz o seguinte:

[Paulo Emilio] Recusa a coroa várias vezes, deixa o grupo sem o Comando Imperial, atiça crises, racionaliza sucessos e, quando da intentona udigrudista de 1968 [grifo do autor], apóia os insurrectos como se o Cinema Novo fosse o Politburo.[1]

A tradução do “underground” para “udigrudi”, ainda que proposta por Glauber com fins pejorativos, na verdade, acaba por iluminar uma ampla dimensão do experimental tal como ele pode ser compreendido no âmbito do Cinema Marginal, ou melhor, no âmbito do “Cinema de Invenção”, como definiu o crítico Jairo Ferreira referindo-se a um determinado segmento do cinema brasileiro que no seu horizonte considera experiências como as de  Kenneth Anger, John Cassavetes, Jonas Mekas, Andy Wharol, Mario Peixoto, entre muitos outros artistas que poderiam ser associados à idéia de underground.[2]

“Avant-garde, underground/udigrudi, cinemagia/cinemagik, boca do lixo/belair” são estes alguns parâmetros propostos pelo crítico Jairo Ferreira para refletir sobre o que ele chama de “sintonia experimental”, uma sintonia que na verdade existe em consonância com outras sintonias – tais como a sintonia existencial, a sintonia visionária e a sintonia intergalática. Jairo, que além de crítico era também realizador, sendo autor de filmes-ícones do Cinema de Invenção, como O Vampiro da Cinemateca (1977), é ele mesmo um representante dessas sintonias. Mas há outros, que ele inclui no Cinema de Invenção: Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, Carlos Reichenbach, José Mojica Marins, João Silvério Trevisan, Neville d’Almeida, José Agripino de Paula, Julio Bressane, Glauber Rocha, Andréa Tonacci, entre outros.

Voltando a Paulo Emilio, além de sua defesa do Cinema de Invenção, na verdade, sua contribuição, quando está em pauta as dimensões do experimental no cinema de Rogério Sganzerla, tem outros desdobramentos. E isso diz respeito especialmente ao contexto dos anos 1960 e 1970. Em relação a esse período, é oportuno lembrar que no âmbito da constituição do campo cinematográfico brasileiro vivia-se um grande embate sobre a questão do nacional, compreendido como oposição ao estrangeiro. A observação desse contexto, aliás, levou o sociólogo Roberto Schwarz, ao final da década de 1960, a enunciar a idéia do “nacional por subtração”, em uma espécie de balanço crítico das várias posições assumidas naquele momento pela direita (que relacionava o problema do nacional aos agenciamentos externos da esquerda com a União Soviética) e pela esquerda (que relacionava o problema do nacional aos agenciamentos externos da direita sobretudo com o imperialismo dos Estados Unidos).[3]

Ora, em meio a esse contexto de polarizações, é Paulo Emilio Salles Gomes quem lança uma idéia-chave para a percepção da questão do nacional em uma perspectiva bem mais complexa e dialética, quando ele afirma, no ensaio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento:

Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.[4]

O eco de tal enunciado – “a penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.” -, a meu ver, repercute na criação de Rogério Sganzerla de uma maneira fundamental, por exemplo, quando ele escolhe Orson Welles e It´s all true como argumento para tantos filmes, que vão essencialmente discutir o Brasil. Os sentidos da figura de Orson Welles nos filmes de Rogério Sganzerla apresentam, em suma, uma grande ambigüidade em relação aos termos “ocupante” e “ocupado” (termos com que Paulo Emilio define a perspectiva do “dominador” e do “dominado”). E isso ocorre na medida em que o protagonista, Welles, e o seus filmes, com destaque para It´s All True, constituem figuras sem contornos bem definidos, capazes de colocar em tensão atributos de um e de outro, ocupante e ocupado, problematizando as relações contraditoriamente possíveis e impossíveis, prováveis e improváveis, entre ambos.

E como isso se reflete na construção dos filmes de Sganzerla? Entre diversas estratégias, é possível destacar a maneira como Sganzerla lida com o material de arquivo para construir a História. Não é uma História positivista do dominador sobre o dominado, dos que venceram sobre os que foram vencidos. Pelo contrário, é uma percepção da História como conflito permanente. E aqui o princípio de montagem de Eisenstein é fundamental. É uma História sem evolução teleológica. Sem um fim a ser alcançado. É uma permanente luta dos “fracassados”, daqueles que, como Orson Welles com It´s all True, são boicotados pelas forças hegemônicas (como o Departamento de Imprensa e Propaganda – o DIP – do Governo de Getúlio Vargas, no Brasil; a RKO e o escritório de propaganda de Nelson Rockefeller, nos EUA), mas que não abrem mão de seus ideais e conquistam seguidores, que passam a fazer parte do conflito incessante.

Nesse sentido, o material de arquivo pesquisado na Cinemateca é fundamental, sobretudo nos quatro filmes que Sganzerla realizou sobre Orson Welles e It´s All True: Nem Tudo É Verdade (1986), Linguagem de Orson Welles (1991), Tudo É Brasil (1997) e O Signo do Caos (2003). Muitos dos materiais de arquivo que compõem esses filmes são trechos de cinejornais produzidos pelo D.I.P. Entretanto, nesses quatro filmes de Sganzerla sobre Welles e It’s All true, o sentido original dos cinejornais, que eram em grande medida produzidos para enaltecer a figura de Getúlio Vargas e do Estado Novo, é pervertido pela montagem, de modo a permitir uma releitura das imagens e sons não só em relação àquele contexto dos anos 1940, mais precisamente 1942, quando Welles esteve no Brasil, mas também a outros tempos e espaços, o que nos remete, enquanto leitores da obra em questão, a uma dimensão da História como um sem-limite.

Essa noção do “sem-limite” colocará em tensão, em suma, tanto as fronteiras espaço-temporais da História quanto a linguagem que será capaz de explicitar as dimensões dos conflitos.

Segundo aspecto: a construção de uma teoria do cinema proposta pelo próprio autor e que passa por conceitos diversos que apontam para a possibilidade de um cinema sem limites

A aproximação de Sganzerla com os críticos que fundaram a Cinemateca Brasileira também foi responsável por sua estréia como cineasta, no caso, atuando na crítica de cinema no Suplemento Literário do jornal Estado de S.Paulo, onde ele escrevia críticas semanais no período entre 1964-1967. Depois, Sganzerla também trabalhou no Jornal da Tarde (1966-1967), na Folha da Tarde (1967) e na Folha de S.Paulo (a partir dos anos 1970 até o momento de sua morte, em 09 janeiro de 2004, ainda que nesses últimos tempos de maneira esporádica).

Ao longo das centenas de textos que ele publicou nesses jornais, em matérias diversas – artigos, críticas, resenhas, textos para coluna, etc. -, Sganzerla constituiu um corpo teórico segundo sua própria visão do cinema. De fato, ele desenvolveu uma série de conceitos, que são reconhecíveis em sua filmografia e que certamente podem revelar vários aspectos das prováveis dimensões experimentais de seu cinema.

Esses conceitos foram propostos por ele especialmente no Suplemento Literário do jornal Estado de S.Paulo. Daí porque eu defendo que o Suplemento Literário do Estadão foi uma espécie de laboratório conceitual de Sganzerla. (Vale lembrar que o Suplemento era um espaço por onde circulavam, escrevendo artigos, o pessoal da Cinemateca, por exemplo, o próprio Paulo Emilio Salles Gomes e Almeida Salles, além de Decio de Almeida Prado.)

Antes de eu apresentar resumidamente os conceitos, convém contudo observar que eles são conceitos bastante mutáveis, que resultam de uma espécie de work in progress. São noções frequentemente reconsideradas, revisadas, alteradas pelo próprio autor.  Esta estratégia, aliás, de alterar freqüentemente a própria obra como se ela fosse um corpo inacabado, interminável, uma obra aberta, uma construção incompleta, é um dado relevante da experimentação de Rogério Sganzerla. E isso ocorre em relação tanto à sua escrita jornalística quanto fílmica.

Um dado interessante a esse respeito é a publicação do livro Por um Cinema sem Limite, uma coletânea dos artigos de Sganzerla organizada por ele mesmo, na qual ele reedita os textos antes publicados nos jornais.[5] Com os filmes ocorre algo equivalente. A versão do curta Linguagem de Orson Welles lançada no DVD da Programadora Brasil junto com o longa Tudo É Brasil, difere da cópia que eu pesquisei desse filme, uma cópia em 16 mm que estava depositada no CTAV.

A rigor, esta estratégia de intervir na própria obra incessantemente só pôde ter fim com a morte de Sganzerla, em janeiro de 2004. Mas é provável que, mesmo depois de sua morte, a questão continue, na medida em que os pesquisadores que se interessarem por seu cinema têm que atentar para as intervenções realizadas no corpo dos filmes.

Voltando então aos conceitos lançados no Suplemento Literário. Primeiramente cabe esclarecer que Sganzerla propõe a indistinção entre ficção e documentário. Em vez de uma distinção, ele se interessa justamente pela junção dos dois campos. Isso se torna evidente pela primeira vez em dois textos que ele escreve sobre Viver a Vida (1962), de Godard.[6] Nesses artigos, fazendo uma retrospectiva da filmografia de Godard até o momento de lançamento de Viver a Vida, Sganzerla compactua completamente com Godard quando este afirma que Acossado é um documentário sobre Jean Seberg e Jean Paul Belmondo”. Além disso, Sganzerla destaca a propósito de Godard e da indistinção entre ficção e documentário, a inclusão dos “tempos mortos”, aqueles que dizem respeito ao momento anterior e posterior à ação, assim como o papel da “câmera cínica” que é capaz de imprimir uma “visão cínica”. Nas palavras de Sganzerla:

A visão cínica é a renúncia ao julgamento, analogia e comparação dos elementos entre si. Segundo Godard, não se pode julgá-los; seja um julgamento psicológico, como no cinema tradicional; moral, como em fitas antigas ou antiquadas (…); julgamento social ou sociológico, ou ambos ao mesmo tempo, que muita gente ainda pretende reviver (Viver a Vida II)

Por sua vez, a noção de câmera cínica vai se relacionar à criação do “herói fechado”, em uma matéria intitulada “Becos sem Saída”. Sobre o herói fechado, o crítico afirma que: “Não é possível conhecer o seu íntimo, no máximo o que se pode fazer é olhá-lo”.[7] Para Sganzerla, “o precursor e também protótipo do herói fechado é Cidadão Kane (1941)”, na medida em que a biografia de Kane é constituída pelos depoimentos fragmentados de seus contemporâneos. Como ele afirma: “Esta fragmentação temporal viria a ser um dos recursos fundamentais do filme moderno” (“Becos sem Saída”).

A “câmera cínica” e o “herói fechado” relacionam-se com um “tempo solto”, ou seja, com um tempo que não se desenvolve de forma progressiva. “O tempo é solto” quando ele se estende para um limite incomensurável e vincula-se ao princípio de repetição. “Com este processo [percebido tanto em cineastas como Welles, Godard e Resnais como em cartoons como Chuck Jones, Bip-Bip e Lo-Lobão] o herói está preso numa sucessão circular, vale dizer, encarcerado no tempo” (“Becos sem Saída”).

Falando sobre o cinema brasileiro, Sganzerla propõe o conceito de “cinema físico”, que valoriza tanto as pessoas como os objetos. O precursor do “cinema físico é Humberto Mauro em O Canto da Saudade (1951), que reúne documentário e ficção.[8] O “cinema físico” remete a um novo conceito, o “cinema do corpo”,[9] que valoriza as “estruturas orgânicas” das pessoas e das coisas, por exemplo, o automóvel (que é capaz de “apreender o fluxo do tempo com a sucessão do espaço”), e é um cinema de conexões com a cultura Pop.

Outro conceito que surge, a propósito de um segmento do cinema brasileiro, é o de “expressionismo caipira”, ou seja, o cinema de estúdio realizado por produtoras como a Vera Cruz e a Maristela, que na perspectiva de Sganzerla expressavam “o mais autêntico provincianismo e também o mais ingênuo” ao tentar imitar experiências que ele via como ultrapassadas, como a produção da Hollywood dos anos 1930 e 1940.

Resumindo: visão cínica, câmera cínica, herói fechado, tempo solto, cinema físico, cinema do corpo, expressionismo caipira, estes são alguns dentre os conceitos propostos por Sganzerla, os quais, como ele mesmo afirma, aplicam-se à ficção e ao documentário, já que ele persegue a junção dos dois campos.

Agora, é oportuno notar como seus conceitos têm lugar na realização de seus filmes, seja naqueles que em princípio poderiam remeter para uma leitura de ficção (por exemplo, O Bandido da Luz Vermelha), seja naqueles que poderiam remeter para uma leitura documental (por exemplo, alguns filmes da tetralogia inspirada em It’s All True). A rigor, tanto em O Bandido da Luz Vermelha quanto nos quatro filmes de Sganzerla que refletem sobre Welles não é possível definir uma unidade, um contorno, para os personagens. No caso dos filmes que se remetem a It’s All True, a exemplo do que ocorre no Bandido, a figura de Orson Welles é construída com múltiplas estratégias que envolvem colagem, paródia, montagem vertical, múltiplos focos narrativos, jogo de vozes, referência das histórias em quadrinhos, clichês, locuções radiofônicas, fragmentação, entre muitas outras possibilidades.

Todos os esforços parecem existir para tentar responder à questão que se sobressai nesses filmes: “quem sou eu?”, a pergunta que instaura o percurso tanto do Bandido da Luz Vermelha quanto de Orson Welles na tetralogia sobre It´s All True. “Um gênio ou uma besta” são as opções de resposta construídas no mundo sem limites do Bandido e no mundo sem limites dos quatro filmes que refletem sobre Its All True.

Sobre o Bandido, Ismail Xavier afirma que:

Ao longo do filme, a voz over do protagonista fará retornar os temas de identidade, ambição, fracasso, suicídio. A montagem vertical vai explorar esta descontinuidade entre visível e comentário, com a participação dominante das vozes do rádio. Mantida a tônica do processo narrativo, a relação entre som e imagem tende a reproduzir este padrão descrito e haverá dificuldade de marcar com rigor o presente da voz narradora do bandido, seu ponto de ancoragem no tempo.[10]

Por sua vez, também referindo-se ao Bandido, Jean-Claude Bernardet fala em “um mundo sem limite” relacionado às dúvidas sobre a identidade do protagonista – elaborada sobre a idéia do permanente fracasso (“fracassei, mas vem outro”, diz ele) – e à incerteza quanto à sua procedência local e temporal.[11]

De minha parte, com minha pesquisa sobre a figura de Welles nos filmes de Sganzerla, o que eu observo nos filmes inspirados em Its All True é a mesma questão fundamental do Bandido: “Quem Sou Eu?” – a pergunta cuja impossibilidade ou multiplicidade de respostas leva à idéia do sem-limite.

Concluindo então as considerações sobre este segundo aspecto, relacionado à construção de uma teoria do cinema que aponta para a possibilidade de um cinema sem limites, convém registrar, ainda que neste momento não seja possível aprofundar em razão do tempo, a relevância dos textos de Sganzerla publicados nos outros jornais: Jornal da Tarde, Folha da Tarde e Folha de S.Paulo.

Os textos do Jornal da Tarde da Folha da Tarde dialogam com os leitores de uma maneira mais simples. Sem perder sua visão crítica, mas assumindo o tom oportuno à comunicação almejada, Sganzerla escreve com humor, o que aparece já no título de algumas matérias como “Alma Penada Não Morre do Coração”[12] ou então “Siga Nosso Conselho e Passe Longe do Cinema”.[13] É enorme a quantidade de filmes que ele assistiu dentro de uma linha de produção industrial em que se sobressai seu interesse pelos gêneros, tais como faroeste, policial, melodrama, horror, etc.

Na Folha de S.Paulo, com um espaço mais exclusivo de uma coluna, ele escolherá os temas a serem tratados a cada semana, aproximadamente. Aí seu interesse recairá nos gênios que ele conecta independentemente do tempo e do espaço: Jimi Hendrix, Noel Rosa, João Gilberto, Godard, Welles, entre outros.

Terceiro aspecto: a percepção de configurações recorrentes,

tais como carnavalização, viagem e metacinema

A filmografia de Sganzerla reúne aproximadamente uma dezena de curtas e médias-metragens e uma dezena de filmes de longa-metragem. Esta ampla produção, para efeito de estudo, poderia ser dividida em fases. A fase inicial marca o início do Cinema Marginal com sua “estética do lixo” (que se contrapõe em grande medida à “estética da fome” do Cinema Novo).  Dessa fase, é possível destacar tanto O Bandido da Luz Vermelha como A Mulher de Todos, produzidos no contexto da Boca do Lixo. Os curtas Documentário (1966) e História em Quadrinhos (1969) também podem ser incluídos nessa fase.

Depois há o período da produtora Belair, quando Sganzerla, em 1970, já casado com Helena Ignez, reúne-se a Julio Bressane[14] e, juntos, criam uma produtora no Rio de Janeiro, a Belair, para realizar vários filmes de uma forma completamente independente e livre. Aqui os destaques de Sganzerla são Sem Essa, Aranha (1970), Copacabana mon Amour (1970) e Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista, 1970). Mas, logo, impedidos de trabalhar no contexto mais duro do Governo Médici, a produtora é desfeita e todos saem do Brasil – é a época do slogan da ditadura: “Brasil, ame-o ou deixe-o” -, iniciando um período que será marcado por viagens por vários lugares do planeta.

Depois de um longo intervalo, Sganzerla volta a filmar no Brasil na segunda metade da década de 1970, quando realiza o curta-documentário Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da França Antártica (1977) e Abismu (1977).

Nos anos 1980, depois de realizar alguns curtas no início da década – Noel por Noel (1981), Brasil (1981), O petróleo (ou O petróleo nasceu na Bahia, 1980-1982) Irani (1983) -, ele inicia a fase de reflexão sobre It´s All True, com Nem Tudo É Verdade (1986), o curta Linguagem de Orson Welles (1991), Tudo É Brasil (1997) e O Signo do Caos (2003).

Observando retrospectivamente esta filmografia, seria possível destacar, além dos conceitos já observados na seção anterior, outras possibilidades de compreensão do experimental no cinema de Sganzerla. Seria possível destacar, por exemplo, a dimensão do riso.  A propósito, Julio Bressane, falando sobre o que significou a Belair para ele, diz o seguinte:

Fizemos muita coisa, foi uma travessia através do errático, do errante, foi toda uma virada de mão que deixou uma marca profunda no cinema brasileiro. Foi possível trazer à tona muita coisa com a qual o cinema não estava totalmente sintonizado aqui, e também destronar muitos valores, falsos valores, falsos rigores, falsas seriedades… e trazer uma outra expressão que tinha uma força muito grande e que, naquele momento, foi muito importante. Como a força do riso, por exemplo.[15]

A travessia através do errático e do errante e a força do riso associam-se ao princípio de “carnavalização” tal como o compreende Mikhail Bakhtin.  Como explica didaticamente Robert Stam, “o carnaval, na acepção bakhtiniana, é o locus privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteridade”.[16] E nesse sentido já O bandido da luz vermelha e A mulher de Todos, filmes da primeira fase, traziam à cena essa inversão, trabalhando dialéticas sociais, étnicas, sexuais, nas quais o dado periférico, marginal, insiste em destruir o lugar do centro, onde se situa a voz hegemônica do poder.

Além disso, a carnavalização também se associa à antropofagia cultural proposta por Oswald de Andrade, trazendo a referência do modernismo brasileiro para o universo de um experimental que investe e devora simbolicamente o cinema americano e europeu.

Como diz Robert Stam:

As categorias conceituais de Bakhtin são especialmente relevantes para as produções tropicalizadas, antropofágicas, da vanguarda cinematográfica. O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, dá mostras de uma abertura antropofágica a todas as influências intertextuais, jogando Hollywood contra Hollywood através de uma tática de fusão de gêneros e de colagem discursiva num “filme-suma” que funde o faroeste com a comédia musical, a chanchada com a ficção científica, o policial com o documentário.[17]

São diversas as estratégias de carnavalização nos filmes de Sganzerla. A própria perversão do material de arquivo pela montagem seria um dado. A paródia, outro. É oportuno, aliás, destacar a maneira como Grande Otelo aparece e reaparece nos filmes sobre Welles. Em Nem Tudo É Verdade, por exemplo, Otelo “revive”, entre a ficção e o documentário, sua participação no episódio do Carnaval em It´s All True. Em Linguagem de Orson Welles, a voz de Otelo confunde-se com a de Welles e sua figura remete-se à de Shakespeare.

Além da carnavalização, outra configuração recorrente nas diversas fases da obra de Sganzerla é a “viagem”. A viagem remete à possibilidade de trânsito entre vários tempos e espaços, prováveis e improváveis, físicos e metafísicos.  A viagem remete a uma dimensão de utopia, ou seja, a um não-lugar e ao mesmo tempo a um lugar perfeito. Na verdade, a viagem pode atualizar um mundo perdido, primitivo, ancestral, mas que talvez esteja presente aqui e agora em milhares de pequenas possibilidades reveladas pelas imagens e sons. A viagem está relacionada ao espaço-tempo flexível da Boca do Lixo em O Bandido da Luz Vermelha; está relacionada aos esforços de Ângela Carne e Osso para unir o Ocidente e o Oriente na Ilha dos Prazeres Proibidos (em A Mulher de Todos); está relacionada aos transes de Sonia Silk (em Copacabana mon Amour); a viagem está associada ao cadilaque de Madame Zero e ao supertelescópio manipulado por José Mojica Marins em Abismu.

As viagens se repetem, como observamos nos inúmeros planos nos quais Orson Welles sobrevoa, desembarca, embarca no aeroporto do Rio de Janeiro, em contraposição às várias cenas dos jangadeiros de It´s All True viajando pelos mares em sua primitiva embarcação: a jangada. Sganzerla (assim como Welles e seu Dom Quixote) persegue um sonho e sente angústia, porque é difícil tocá-lo e é sempre possível perdê-lo. A viagem é uma dimensão do sonho e da memória.

Por fim, além da carnavalização e da viagem, uma última configuração diz respeito ao “metacinema”: o cinema voltado para o próprio cinema, o cinema como caixa de ressonância da Humanidade. No limite, o metacinema relaciona-se a todas as dimensões da visibilidade: políticas, econômicas, sociais, culturais. O metacinema é como um jogo, um quebra-cabeças, um jogo de espelhos mágicos, um show de ilusionismo. Verdades e mentiras como as de Orson Welles em F for Fake (1973) testando todos os limites do visível e do invisível.

Nessa perspectiva, Welles se confunde com o metacinema.  Sintomaticamente, sua figura é em parte invisível no último filme de Sganzerla: O Signo do Caos, um filme que se afirma como antifilme. Welles é representado como uma metonímia, do tipo o autor pela obra, no caso, It´s all true, o filme cuja projeção define uma dimensão do sonho e da memória do próprio cinema. Welles como essência não existe, o que fica é a sua aparência associada a um princípio e a um fim simultâneos.

Concluindo

Se para o cinema de invenção existe sim a “sintonia experimental”, para Sganzerla, especificamente, essa sintonia passa por alguns dos pontos que discutimos aqui, os quais remetem, por diferentes caminhos, à idéia de um cinema sem limite.


[1] ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro, Alhambra/Embrafilme, 1981, p. 436. O trecho citado é discutido por RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968-1973): a representação em seu limite. São Paulo, Brasiliense/Embrafilme, 1987, p. 89-90.

[2] FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.

[3] SCHWARZ, Roberto. “Nacional por Subtração”, in Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[4] GOMES, Paulo Emilio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 77.

[5] SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2001.

[6] “Viver a Vida I”, Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo, 05-12-1964, e “Viver a Vida II”, Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo, 12-12-1964.

[7] “Becos sem Saída”, Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo, 21-11-1964.

[8] “Humberto Mauro, Autor”. Suplemento Literário do jornal Estado de S.Paulo, 16-02-1965.

[9] “Cineastas do Corpo”. Suplemento Literário do jornal Estado de S.Paulo, 26-06-1965.

[10] XAVIER, Ismail . Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p. 74.

[11] BERNARDET, Jean-Claude. O vôo dos anjos: estudos sobre a criação cinematográfica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. O capítulo “O Mundo sem Limite”, dedicado a O bandido da luz vermelha, compreende as páginas 155-218.

[12] SGANZERLA, Rogério.  “Alma Penada Não Morre do Coração”. Jornal da Tarde, 01/03/1966.

[13] SGANZERLA, Rogério.  “Siga o Nosso Conselho e Passe Longe do Cinema”. Jornal da Tarde, 17/05/1966.

[14] Filme de Bressane na Belair: Família do Barulho (1970); Barão Olavo, o Horrível (1970); Cuidado

Madame (1970).

[15] Catálogo da mostra Cinema Inocente: Retrospectiva Júlio Bressane 2003, p. 14..

[16] STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Editora Ática 1992, p. 14.

[17]Idem, p. 55-56.

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