Mataram Meu Irmão (Cristiano Burlan, 2013)

Por Ivan Amaral*


Mataram Meu Irmão (2013), filme vencedor da competição brasileira de longas-metragens da última edição do festival É Tudo Verdade, traz à tona a sensibilidade de um autor em crise com a perda de seu irmão, Rafael, assassinado a tiros em 2001 no bairro do Capão Redondo. Mais do que fazer um filme sobre uma busca pessoal que tenta compreender a trajetória de vida do irmão e sua relação com o microcosmo da periferia, o diretor consegue encontrar um processo autorreflexivo que expõe o próprio limite do dispositivo. Esse processo se faz possível quando a estética do enquadramento fixo é desafiada pelo que está fora de quadro ou como instância que procura revelar as causas e consequências do todo. A falta da imagem se faz sentir logo nos primeiros minutos do filme: uma tela preta acompanha o som de uma ligação do diretor para o cemitério onde seu irmão foi enterrado há mais de dez anos. Ele é informado que o corpo foi transferido para outra área sem a autorização da família. A (re)descoberta do corpo não apenas sintetiza as intenções do filme, mas torna-se ela mesma uma ação dramática, ilustrada em seguida por imagens de trânsito em que o diretor está ao volante do carro, mas não se sabe ao certo para onde está indo. Ele narra em voz over o episódio em que soube da morte do irmão evocando sua impotência diante dos fatos.

A impotência, em uma sociedade marcada pela violência e por suas leis próprias, se faz perceber como instância narrativa: não há propriamente um domínio sobre o que está dentro de quadro, pelo contrário, o que está fora é mais exigente e determina um deslimite do enquadramento. O filme é consciente disto e procura a cada depoimento extravasar este sintoma. A busca do diretor se aproxima do sentimento de impotência dos entrevistados, próximos a Rafael, que revelam que a proximidade pode ser também uma distância. Eles tentam entender o contexto em que tudo ocorreu, mas são solicitados em suas vidas diárias a cuidar dos filhos, da casa ou pela vontade de ir ao banheiro após a entrevista. Não há o pudor de querer filmar os depoimentos dentro de um contexto de começo meio e fim ou de editá-los a fim de se estabelecer o controle do que está em quadro, pelo contrário, o que está fora de quadro se configura como mediador do autor com seu objeto. O melhor exemplo disto se dá quando o diretor deixa sua irmã filmar por um tempo enquanto aguarda a chegada de um entrevistado: uma câmera “solta” que filma o chão e o teto em liberdade.  Em outro momento um enquadramento fixo de uma fotografia antiga serve de pano de fundo para a entrevista por telefone que o diretor faz com outro irmão seu, preso em Cuiabá. A fotografia que revela os três irmãos ainda crianças em uma praia, soa nostálgica, mas situa o desejo pela liberdade como um sintoma do presente.  A relação entre a imagem e o que está “fora de quadro” se desdobra também ao sabor do acaso, em um dos melhores momentos do filme, quando após a entrevista com um amigo que revela que Rafael era pai de dois filhos, a câmera se move para “fora”, em uma pan aparentemente não planejada, enquadrando pai e filho que caminham na praia.

Não há problema algum em afirmar que documentário e ficção estão próximos quando são as intenções narrativas que estão em jogo. Mataram meu irmão apresenta uma economia de imagem que cria expectativas e o suspense em desvendar a relação dos entrevistados com Rafael e com o diretor e qual a relação este último, afinal, estabelece com o próprio irmão morto. A sensação ao final do filme é a de que havia muito mais a ser contado. Mas esta também é uma das intenções do filme, mostrar que o que está fora do domínio da representação é sempre maior e ilimitado. O diretor, sobretudo, busca representar sua própria trajetória que não recorre a um fim, mas que continua com a memória do corpo. As últimas imagens remetem à presença do corpo na imagem como eixo fundamental da impotência diante da morte, a perda e a memória da vida caminham juntas neste sentido. A memória do corpo em vida precisa sobreviver à imagem que documenta a morte e que se torna precisa para afirmar a dor pessoal de um irmão não em busca de respostas para o que aconteceu, mas de perguntas sobre o que está acontecendo no presente.

*Ivan Amaral é graduado em Audiovisual pelo Senac.

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