A estética de Brillante Mendoza: Neorrealismo no cinema independente contemporâneo

Márcio Renato Costa*

Resumo

Este estudo observa a diluição da fronteira entre criação ficcional e procedimentos documentais como uma das características marcantes do cinema independente realizado em países emergentes. Com aspectos que remetem ao Neorrealismo Italiano, estes cineastas produzem filmes autorais que retratam a desigualdade social em seus países. Portanto, propõe uma análise destas escolhas estéticas, questionando os motivos que levam os realizadores contemporâneos a buscar inspiração em movimentos cinematográficos com mais de meio século de existência. Como recorte de pesquisa foram investigados os processos criativos do diretor filipino Brillante Mendoza, fazendo correlações com as práticas documentais e com o cinema político. A análise da ética da estética em Lola (2009), oitavo filme do cineasta, comprova a influência neorrealista em sua obra. Por fim, o trabalho entende como adequadas as escolhas estéticas dos cineastas contemporâneos engajados com questões sociais.

Introdução

Existe uma atmosfera e um ritmo que se assemelham no cinema independente produzido em países emergentes ao redor do mundo. A quebra da barreira entre a criação ficcional e os procedimentos documentais é um traço marcante desses novos realizadores. O hibridismo está presente não apenas na estética como também no conteúdo e na forma de produção, através da captação de imagens nos locais onde se passam a história e a utilização de atores não profissionais. Essas são características que remetem ao Neorrealismo Italiano, movimento do pós-guerra realizado por cineastas engajados politicamente, que assumiram a função de cronistas em um país devastado, solicitando ao público que refletisse sobre sua própria realidade. Postura moral e ética que guia cineastas contemporâneos de diferentes nacionalidades e culturas que, a partir de suas obras, denunciam os problemas enfrentados pela população de seus países.

Esta tendência pode ser explicada pelo avanço da tecnologia digital, que permitiu o acesso daqueles cineastas com senso de responsabilidade social, mas que historicamente estavam à margem da produção industrial à da realização de seus filmes de maneira independente. Sem o poder de distribuição e marketing dos grandes estúdios, estes autores ganham destaque mundial com participações em festivais e a divulgação/compartilhamento de seus filmes pela internet.

A democratização da produção proporcionou mais filmes de destaque estético e artístico, realizados com poucos recursos. O oposto também ocorre, porém: filmes pobres não apenas de orçamento, mas de conteúdo. Por isso, é importante para os cineastas com postura crítica, que visam produzir filmes independentes, terem um profundo conhecimento estético do que é realizado globalmente. A troca de experiências se mostra produtiva, já que os problemas enfrentados em outros países do Terceiro Mundo são os mesmos vividos no Brasil, seja nos aspectos políticos ou na realização fílmica.

O presente artigo pretende analisar a busca por padrões neorrealistas – além da combinação entre linguagem ficcional e documental – no cinema independente realizado por artistas com responsabilidade social. Com o objetivo de demonstrar que tal estética é uma escolha adequada para retratar a realidade e o drama dos mais pobres, a pesquisa usa como recorte o filme Lola (2009), do cineasta filipino Brillante Mendoza.

Brillante Mendoza, que assina obras que retratam a desigualdade social nas Filipinas, é um dos realizadores mais premiados da nova geração, mas o que justifica sua escolha para este artigoé o seu ritmo de trabalho. Foram dez filmes nos últimos sete anos – O massagista (Masahista, 2005), Manoro (2006), Kaleldo (2006), John John (2007), Tirador (2007), Serviço (Serbis, 2008), Kinatay (Kinatay, 2009), Lola (2009), O útero (Thy Womb, 2011) e Em nome de Deus (Captive, 2012). Essa média só é possível a partir de uma estrutura independente, com produções simples e de baixo custo.

Em Lola se percebe o amadurecimento de Mendoza como cineasta e o domínio da estética na construção do discurso. A crítica social está bem estabelecida ao definir seus alvos: a miséria, a violência e a burocracia. O filme narra as histórias de duas avós que devem lidar com as consequências de um roubo de celular que resulta em assassinato – um dos netos é vítima, o outro suspeito; frágeis e pobres, uma busca dinheiro para pagar o enterro e a outra para a fiança.

O diretor emprega o tom realista para fazer de seu cinema um espaço de discussão política. Partindo desta afirmação, o presente texto levanta os seguintes questionamentos: quais as características do cinema documentário e da estética neorrealista presentes em Lola? Por que, ainda hoje, o Neorrealismo – movimento cinematográfico dos anos 1940 – guia o trabalho de realizadores engajados com questões sociais?

A hipótese levantada por este artigo é de que o abandono das regras dramáticas e do espetáculo, além das filmagens em cenários reais e a mescla do elenco entre atores profissionais e não profissionais, faz do modelo adotado por Brillante Mendoza e tantos outros realizadores contemporâneos uma escolha barata e eficiente para se expressarem, colaborando com a postura crítica e a representação dos temas tratados.

O objetivo desta pesquisa é identificar características estéticas em Lola e como elas contribuem no discurso político de Brillante Mendoza. A partir de elaboração teórica, o artigo pretende estudar o processo criativo do cineasta filipino, identificar os padrões neorrealistas e de filmes de fronteira e analisar a crítica social através da tríade: miséria, violência e burocracia.

Os dados necessários foram obtidos a partir de pesquisa bibliográfica sobre a linguagem cinematográfica do documentário e do Neorrealismo Italiano. Livros, artigos e textos foram utilizados no processo de estudo para o projeto. Algumas obras ganham destaque, como O cinema do real, de Amir Labaki e Maria Dora Mourão, livro que aborda a produção de documentários com câmera digital e como essa nova tecnologia influencia na produção cinematográfica, além de traçar um panorama histórico do cinema documental; Ver e poder – A inocência perdida, artigos de Jean-Louis Comolli, onde o autor apresenta a dialética da crença e da dúvida na realidade representada no cinema de ficção e de documentário; O Neorrealismo cinematográfico italiano, de Mariarosaria Fabres, em que a autora percorre a trajetória do cinema neorrealista, contextualizando com o drama social vivido na Itália durante o período de surgimento do movimento e seu conteúdo ideológico; textos de Glauber Rocha sobre o papel político do cinema autoral, publicados em Revolução do Cinema Novo; e o artigo Em busca do perfeito realismo, de Manuela Penafria, que debate o realismo e a ética no cinema, somado a teorias de Gilles Deleuze e do teórico Siegfried Kracauer. Para compreender a vida nas Filipinas e as escolhas criativas de Brillante Mendoza para retratar essa realidade, buscaram-se textos e entrevistas com o cineasta em páginas da internet.

1 Quem é Brillante Mendoza e o que pretende com o seu cinema

Para Brillante Mendoza não há tempo a perder. Taxado de “o pior” em Cannes, respondeu com a Palma de Ouro de Melhor Realizador no mesmo ano. Entre polêmicas e prêmios, o cineasta obtém reconhecimento internacional produzindo filmes autorais com dinheiro do próprio bolso. Exemplo para toda uma nova geração de realizadores, em um período de sete anos produziu e conquistou mais do que a maioria dos cineastas em uma vida de trabalho. Isso não se dá por acaso e antes de qualquer análise que o presente texto possa fazer sobre a estética empregada pelo autor, se faz necessário conhecer e entender as referências e a postura ideológica do indivíduo por trás dos filmes.

Cineasta sem formação, natural de um país com rica história cinematográfica, Brillante Mendoza nasceu em 30 de julho de 1960 em San Fernando, província de Pampanga, nas Filipinas. Mudou-se para a capital Manila no começo da década de 1980, para estudar Belas-Artes e Publicidade na Universidade de Santo Tomas. Quando terminou o curso foi contratado por uma agência de propaganda, onde trabalhou como diretor de arte para comerciais de televisão, assinando projetos para grandes empresas. Durante duas décadas no ramo, Mendoza acumulou dinheiro e reputação. Apenas em 2005 – com 45 anos de idade – ele vai dirigir seus próprios filmes.

Durante toda a primeira metade do século XX as Filipinas foram dominadas pelos EUA. Este período foi importante no surgimento de uma indústria cinematográfica no país, a partir do financiamento e de apoio técnico dos norte-americanos. As décadas de 1950 e 1970 marcam os períodos de maior produção e reconhecimento do cinema filipino. Entretanto, o período de 1980 ao começo dos anos 2000 marca a estagnação e o quase desaparecimento da indústria cinematográfica no arquipélago, época em que o mercado local foi dominado pelas produções hollywoodianas.

Mesmo com o ressurgimento do cinema filipino nos primeiros anos do atual século, formado por jovens realizadores adeptos do digital e da produção independente, o grande público ainda mantém o hábito de assistir ao cinema mainstream norte-americano. Brillante Mendoza se mostra paciente com esses espectadores, pois também era um consumidor de filmes de ação e de super-heróis. A consciência de um outro cinema só se deu após seu primeiro longa-metragem. Agora, se diz um grande admirador de Truffaut e De Sica. O cineasta filipino se fez realizador e cinéfilo ao mesmo tempo. Esta autodescoberta artística é sentida na evolução de seus filmes, no amadurecimento estético – que busca referências no Neorrealismo – e também na visceralidade de sua obra.

O ingresso tardio na realização de filmes, somado ao descobrimento da cinematografia europeia, explica a fertilidade criativa de Brillante Mendoza, responsável pelo lançamento de dez longas-metragens no intervalo de sete anos. A empolgação de um jovem, porém, com a estrutura e a experiência acumulada nos anos de publicidade, permite que o diretor realize o desejo de gravar todos os dias, produzindo filmes em sequência. O primeiro deles, O massagista, surgiu como encomenda de um vídeo simples para o circuito gay de cineclubes e locadoras de DVDs em Manila. Mendoza fez mais do que isso: ganhou o Leopardo de Ouro de melhor filme no Festival de Locarno.

Dez filmes de importância internacional demandam apresentação, a qual este estudo pretende cobrir a partir de resumidas sinopses, realçando a temática social de cada um deles.

O massagista (2005), trabalhando em um salão de massagens com clientela gay, onde o sexo faz parte do negócio, o jovem Iliac – membro de uma família religiosa e conservadora – se vê moralmente dividido após a morte de seu pai; Manoro (2006), Jonalyn Ablong, adolescente de uma tribo indígena situada nas montanhas vulcânicas das Filipinas, assume a tarefa de alfabetizar os mais velhos de sua aldeia para poderem votar nas eleições nacionais; Kaleldo (2006), dividido em três capítulos, é um drama familiar que narra a trajetória de três irmãs marcadas pela figura de um pai autoritário; Em John John (2007), o trabalho de Thelma é tomar conta de crianças órfãs enquanto aguardam adoção. Após três anos com o pequeno John John, ela deve entregá-lo para seus novos pais adotivos, americanos ricos que pagam para ter filho; Em Tirador (2007), jovens delinquentes dos bairros de lata de Manila praticam pequenos furtos no centro comercial da cidade, enquanto políticos corruptos fazem campanha e compram votos dos moradores pobres da região; Serviço (2008), um dia na vida da família Pinela, que dirige e habita um antigo prédio de cinema no centro de Manila. Dedicado à exibição de filmes pornográficos, o Cinema Family funciona também como espaço de prostituição, lugar onde travestis e michês oferecem seus serviços; Em Kinatay (2009), o recém-casado Peping, membro da academia de polícia, aceita uma oferta de trabalho bem pago e acaba envolvido no rapto e no assassinato de uma prostituta; Em Lola (2009), duas avós sofrem com as consequências de um crime; Em O útero (2011), Shaleha, parteira de uma remota ilha no arquipélago das Filipinas, sofre com a infertilidade. Para realizar o desejo do marido de ser pai, permite que ele procure outra mulher para gerar uma criança; Em nome de Deus (2012), inspirado em um evento real, o filme narra o sequestro de estrangeiros em um resort de luxo, por separatistas islâmicos.

Exibições e prêmios em festivais não impedem que o autor seja duramente criticado e acusado de fazer cinema de exploração. Isso se dá pela abordagem crua e realista de Mendoza, com a representação explícita dos temas retratados. Nos seus filmes, violência e sexo são expostos sem filtros. Como, por exemplo, na cena da prostituta esquartejada em Kinatay, que chocou os críticos em Cannes e lhe valeu o título de “o pior”, citado na abertura deste texto. No entanto, a violência não é a premissa de seu cinema e não aparece de forma gratuita, com o simples propósito de chocar. A intenção é confrontar o público com a realidade problemática das Filipinas.

Apesar do escândalo em Cannes, as polêmicas geradas por conta do conteúdo difícil e perturbador de Mendoza foram importantes para divulgar o trabalho do diretor, chamando a atenção da crítica não somente para ele, mas para a retomada do cinema filipino, com jovens realizadores que começam a ganhar destaque internacional, como Raya Martin, Lav Diaz e Adolfo Alix Jr.

Sobre a plateia dos festivais, o cineasta responde: “Há uma representação grande de nacionalidades nesses eventos e acho que nem todos compreendem a situação do meu país” (MENDOZA, apud MARGARIDO, 2009). O cinema de Mendoza transforma todos em testemunhas do drama social do povo filipino. No texto Eztetyca da fome, manifesto do Cinema Novo contra o paternalismo das grandes potências em relação ao Terceiro Mundo, Glauber Rocha diz que “uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado” (ROCHA, 2004, p. 66). Brillante Mendoza faz isso, impõe a violência de suas imagens e sons nos grandes centros cinematográficos. Não a violência gráfica gravada no dispositivo digital, mas a violência de uma cultura efervescente que não pode ser ignorada.

Mendoza segue a trilha de Lino Brocka, diretor que retratou a condição social nas Filipinas nos anos 1970 e 1980. Brocka, assim como Glauber Rocha, é figura de destaque nos estudos de Gilles Deleuze dedicados ao cinema político moderno. Em A imagem-tempo, Deleuze constata que o cineasta do Terceiro Mundo se encontra diante de um público em crise de identidade coletiva, em um estado onde não há consciência de evolução ou revolução, que a arte deve contribuir para a invenção de um povo: “(…) inventa-se, nos bairros de lata e nos campos, ou então nos guetos, nas condições de luta a que uma arte necessariamente política tem de contribuir” (DELEUZE, 2006, p.279). Perante um povo colonizado culturalmente, alimentado por produtos americanos, o cineasta encontra na produção independente a possibilidade de quebrar os padrões formais e estéticos, com liberdade para “dizer a verdade sem reservas” (CULTUGERST, 2010, p. 13).

“Cinema só é importante quando autoral, um cinema que reflita sobre a realidade, que pense, que aja sobre a realidade” (ROCHA, 2004, p. 76). Seguindo a tradição de Glauber Rocha e Lino Brocka, Brillante Mendoza vê o cinema como ferramenta para a transformação social. Um espaço para repercutir as questões que afetam a sociedade. Para cumprir esta tarefa, denunciar problemas reais presentes no cotidiano filipino, o diretor se utiliza de uma sensação documental que o espectador experimenta a partir da estética dos filmes de fronteira e do Neorrealismo Italiano.

2  Imprimir o real: ficção a partir de procedimentos documentais

“Processo jornalístico”: assim o cineasta Brillante Mendoza define o seu método criativo quando determina o tema a ser retratado e busca aprofundar os conhecimentos a respeito do assunto, a partir de pesquisas e entrevistas que resultam no argumento de suas obras. Segundo o filipino, “é importante seguir estas pessoas, não apenas para compreendê-las como personagens, mas também como representantes de uma comunidade” (TORRES, 2010). Nos filmes de Mendoza, a partir das particularidades de cada vida representada, de suas individualidades em frente ao drama do cotidiano nas grandes cidades e nos bairros pobres, temos uma visão geral dos múltiplos problemas vividos por toda a sociedade filipina. A matéria-prima do diretor é a luta pela sobrevivência dos marginalizados e menos favorecidos de seu país, os quais são testados diariamente em meio ao caos social, e como lidam com as adversidades, muitas vezes deixando de lado a moral e a ética, solucionando os problemas – ou simplesmente, adaptando-se a eles – e seguindo em frente.

Brillante Mendoza dilui a fronteira entre ficcional e documental. Para o diretor, este cruzamento resulta em uma verdade mais profunda. Seu modo de fazer filmes – buscando por histórias verídicas, no cotidiano dos mais carentes, em localidades, costumes e culturas pouco conhecidas – está a serviço do compromisso social de imprimir o real. Esta postura vai ao encontro das teorias realistas de Siegfried Kracauer. Para ele, todas as técnicas específicas do cinema só têm validade se registrarem e revelarem a realidade física. Defende os “filmes de história encontrada, cujo argumento depende da realidade, do mundo, da própria vida” (1960, apud PENAFRIA, 2005). Encontramos o mesmo discurso nos textos de Glauber Rocha. Segundo o diretor brasileiro, um cinema que vê e discute a realidade é um cinema de verdade. Isso se dá quando o realizador assume postura ética, em detrimento do modelo estético estabelecido pela indústria. Abandonando a dramatização segundo os padrões clássicos, que ditam o uso de cenários em estúdios, iluminação artificial e atores contratados.  Ainda conforme Rocha, o diretor que acredita na realidade não se utiliza da imagem forjada. Cineastas, assim como Brillante Mendoza, comprometidos em retratar a vida real de maneira honesta e ética, constroem seus relatos do mundo a partir da “cenografia viva”: gravações nos locais onde se passam as histórias, captando o som e os elementos do lugar.

O cinema de Brillante Mendoza assume posição ideológica e se faz ferramenta de luta social. Particularidade que une o cineasta àquela que é a característica primária dos grandes documentaristas: “dar voz à perspectiva e à experiência das pessoas e servir como uma espécie de testemunho coletivo, uma memória registrada”, nas palavras de Russel Porter (MOURÃO; LABAKI, 2005, pág. 51). Para ter mais claro o quanto é tênue a linha que separa a ficção realizada por Mendoza da produção documental, se faz necessário entender o conceito desta última: muito mais que “mostrar as coisas e o mundo tais como eles são” (AUMONT; MARIE, 2009, p. 86), o gênero se caracteriza como “o tratamento criativo da realidade” – segundo a definição do teórico John Grierson (MOURÃO; LABAKI, 2005, pág. 16). O conceito de “criativo”, citado por Grierson, se dá porque a realização documental surge da subjetividade do artista, do seu ponto de vista e da maneira que constrói a realidade em película, permitindo a expressão pessoal e o engajamento político. Jean-Louis Comolli diz que o documentário reescreve acontecimentos, fatos, situações em forma de narrativas do ponto de vista de um sujeito (COMOLLI, 2008, p. 174). O método de Brillante Mendoza não é diferente. O diretor busca suas histórias nas ruas, nas entrevistas com as pessoas que conhece durante as pesquisas. Com esses relatos cria um enredo ficcional, produto de sua imaginação, mas que ainda assim representa uma profunda verdade.

Podemos afirmar, também, que muito da estética nos filmes do diretor filipino se origina de práticas documentais, mais precisamente em dois tipos de cinema introduzidos na década de 1960: “Cinema verdade” e “Cinema direto”.

Cinema verdade é um estilo de documentário que reflete a realidade a partir de entrevistas e narração off, com o uso da fotografia e do som direto para captar uma maior verossimilhança dos fatos retratados. Formado por profissionais oriundos do jornalismo ou com interesse científico, teve como uma de suas figuras mais importantes o antropólogo Jean Rouch, com filmes que revelaram a África para o mundo. Este desejo de dar voz aos excluídos, àqueles que vivem em locais afastados e nunca antes registrados no cinema, se encontra também na obra de Brillante Mendoza. Com forte apelo antropológico, o cineasta apresenta a comunidade de aborígenes Aetas, situada nas montanhas vulcânicas do Monte Pinatubo, em Manoro (2006); o bairro de lata de Manila, em John John (2007); a aldeia sobre palafitas na ilha remota de Tawi Tawi, a mais meridional do arquipélago das Filipinas, entre a Malásia e a Indonésia, onde vivem pescadores e caçadores de pérolas, em O útero (2012); entre outros. Nestas obras é explícito seu interesse pela cultura, como relata o próprio diretor:

Não tenho propósitos unicamente cinematográficos ao filmá-los, quero sentir o mesmo que eles sentem, entender como eles interagem com suas comunidades, como se relacionam com o ambiente e os rituais que os cercam. (MENDOZA, apud TORRES, 2010)

Cinema direto é definido como cinema de “não intervenção” – o que podemos questionar, levando em conta que o material filmado era moldado na sala de edição –, o “direto” se caracterizava pela filmagem e a captação de áudio de forma direta, gravados em simultâneo. No entanto, diferente do Cinema Verdade, a sua estética não utilizava artifícios como a narração e as entrevistas na concepção narrativa dos filmes. Além disso, era ocultado o processo de produção. O cineasta e sua equipe não se envolviam na ação, apenas acompanhavam e registravam os eventos. Esta abordagem só foi possível a partir dos progressos tecnológicos e o surgimento de equipamentos leves (câmera Éclair Coutant e gravador Nagra). Reconhecemos neste estilo importância não apenas para o fazer documental da época e para a análise do trabalho de Brillante Mendoza que este artigo se propõe, mas para o cinema como um todo. O “direto” – com equipamentos relativamente baratos e de fácil manejo – revolucionou a produção. Surge, a partir daí, um “descarte dos monopólios de produção (…) filmar torna-se o possível de cada um” (COMOLLI, 2008, p. 109). O conteúdo é renovado com um acesso mais direto ao mundo, trazendo o ordinário da vida para o cinema (COMOLLI, 2008, p. 108-109).

De fato, a gravação com equipamentos mais leves e de som sincrônico, possibilitou uma revolução na realização cinematográfica. A principal delas: o uso da câmera na mão. Nela, a imagem é reconhecida pelo público como sinônimo de tomada não ensaiada, um dos preceitos do cinema direto, que ditava filmagens sem ensaio com o uso de improvisação (AUMONT; MARIE, 2009, p. 81). Já para o teórico Brian Winston, antevisto pelas imagens tremidas dos cinegrafistas militares que cobriam a Segunda Guerra Mundial, a câmera na mão tornou-se a “marca central da verdade cinematográfica” (MOURÃO; LABAKI, 2005). Os cineastas e teóricos franceses, Jean-Louis Comolli e Laurent Roth, cada um em seus respectivos textos, tecem estudos sobre a característica estética da imagem a partir da relação do homem com o equipamento. Para eles, o corpo de quem filma está presente na imagem. “A ferramenta se adapta ao corpo (…) a máquina tende a se tornar prótese” (COMOLLI, 2008, p. 109). Roth diz que a câmera se torna uma extensão do corpo, que permite a percepção do homem do mundo. Através dela, o cineasta está livre para interferir e interagir com o ambiente e as pessoas que o cercam, estas imagens trazem indícios da gestualidade humana (MOURÃO; LABAKI, 2005).

Destacamos este procedimento, com origem no cinema documental, como uma das principais características do cinema de Brillante Mendoza. Nos seus filmes, a câmera sempre em movimento acompanha os personagens em longos planos-sequência. O cinegrafista, muitas vezes o próprio diretor, age conforme a situação retratada – corre, sobe escadas, etc. – registrando a ação com o mínimo de cortes. Para nós, examinando textos críticos da filmografia do filipino, fica claro o entusiasmo com que é recebido o seu trabalho de câmera no universo da cinefilia. Citamos alguns comentários: “com agilidade impressionante, a câmera persegue sem piedade a vida tal como ela acontece” (CULTUGERST, 2010, p. 13); “a câmera na mão acompanha a ação, observando sem comentar o que de outra forma seria sentimentalizado” (CULTUGERST, 2010, p. 14); “a câmera ao ombro agarra com urgência a vitalidade do ambiente sob todos os ângulos” (SOESANTO, 2009 apud CULTUGERST, 2010, p. 17). Estes são exemplos do destaque dado ao estilo visual de Mendoza. A impressão de realidade proporcionada pela câmera na mão é tamanha que há quem pense que ele filma por acaso os figurantes. Mas na verdade é o contrário. Embora deixe espaço para a improvisação, o cineasta coreografa os movimentos de todos os seus atores, sabendo exatamente o que quer em cada cena.

Como dito anteriormente, em busca de uma relação de verdade entre filme e espectador, os realizadores buscam componentes documentais para enriquecer suas ficções. O que nos faz questionar o quanto ainda é necessária esta separação. Debate que perdura há muito tempo, quando, frente às mudanças de tema e estrutura nos filmes do pós-guerra, Gilles Deleuze em suas teorias sentenciou o fim da fronteira que classifica os filmes em ficção e documentário. No artigo de Manuela Penafria, que problematiza a realidade no cinema relacionando com questões éticas, a autora decreta que ficção e documentário têm a mesma natureza. Para ela:

Todo filme é documental porque remete para pontos de vista, para modos de pensar, para modos de ver o mundo. Documentário e ficção são dois modos de documentar, de comentar o mundo. Retirar o componente documental dos filmes de ficção é retirar-lhes um componente essencial mas, também, podemos dizer que retirar ao documentário a sua parte ficcional é retirar-lhe um componente essencial. Não havendo uma fronteira nítida, colocamo-nos nessa zona de fronteira para dizer que da nossa parte o que nos interessa é a verdade cinematográfica. (PENAFRIA, 2005)

“Ética” é um dos fundamentos no estilo do cineasta filipino. As primeiras críticas italianas de seu trabalho o compararam com o diretor e roteirista Cesare Zavattini, ícone do Neorrealismo Italiano (PAOLO, 2009 apud CULTUGERST, 2010, p. 6). O que não surpreende, muito pelo contrário, já que a estética de Mendoza se assemelha com o movimento de Rossellini, Visconti e Vittorio De Sica, que marcaram época ao impor novas regras ao fazer cinematográfico. Na Europa arrasada física e psicologicamente do pós-guerra, o Neorrealismo inovou refletindo essa sociedade devastada a partir de um cinema que utilizava o próprio real como representação do real, com o uso de cenários naturais e atores não profissionais. Nele, os realizadores preocupados com questões políticas e sociais assumiram o papel de cronistas, registrando os fatos cotidianos dos mais humildes. Essas são as principais características que definem o Neorrealismo Italiano, movimento cujo princípio era captar a realidade de maneira simples e ética, porém, com finalidades ambiciosas: “inventar uma nova linguagem cinematográfica que o grande público pudesse entender e por meio do qual adquirisse uma maior consciência social e cultural” (FABRIS, 1996, p.137). Assim também é o trabalho de Brillante Mendoza. Cineasta de postura crítica e engajado em retratar a realidade de maneira honesta, coloca os mais pobres da sociedade filipina no papel de protagonistas de seus filmes, formando os elencos com a mescla entre atores experientes com outros não profissionais, pessoas das próprias localidades retratadas que vivem o cotidiano que é interpretado.

O Neorrealismo renovou a ficção e influenciou o surgimento dos principais movimentos cinematográficos das décadas de 1950 e 1960, entre os quais o brasileiro Cinema Novo. Até mesmo os conceitos de cinema revolucionário escritos por Glauber Rocha se originam no movimento italiano. Entre eles a questão da “ética da imagem”, citada anteriormente neste texto, já que o Neorrealismo se fez ético renunciando ao “cinema espetáculo”, caracterizado por filmes de gênero com regras dramáticas bem definidas. O cinema puramente estético que, “ao se fingir autônomo em relação às coisas do mundo, se põe a serviço de sua preservação” (FABRIS, 1996, p. 147). Percebemos essa fuga dos mecanismos do espetáculo e da dramatização exagerada em Mendoza., com destaque para Kinatay. No filme acompanhamos a história de um jovem policial cúmplice de um assassinato. O tratamento cru e documental imposto pelo cineasta filipino lhe rendeu elogios do estadunidense Quentin Tarantino, que em bilhete escrito logo após a exibição do filme em Cannes reforça esse modelo de renúncia às seduções dramáticas:

Parabéns por seu difícil e complicado filme. Sua decisão de nunca dramatizar o assassinato, nunca ceder ao suspense foi corajosa, ousada e, para mim, representa todo o sentido de fazer o filme. Senti-me como uma testemunha ocular de um terrível assassinato. E acreditei em tudo que vi. (TARANTINO, 2009, apud TORRES, 2010)

Utilizamos Kinatay como exemplo. No entanto, reconhecemos em toda a filmografia do diretor a postura de não julgar os acontecimentos retratados, deixando essa tarefa para o público. O cineasta busca a verdade essencial, “sem glamurizar e glorificar os personagens” (LERINA, 2012). Afirmação que remete à ideia da “ambiguidade”, teorizada por André Bazin, quando os filmes demandam uma participação maior do espectador no estabelecimento de significados. O crítico francês tem alguns dos seus mais representativos ensaios relacionados com as formas neorrealistas. Neles, Bazin defende o realismo espacial e opõe-se à decomposição de um acontecimento em planos, além da manipulação excessiva do realizador na sala de montagem. O plano-sequência e a profundidade de campo favorecem essa impressão do real, da verdadeira duração dos eventos. A partir destas teorias, o filósofo Deleuze define esse período como a divisão entre o cinema clássico e o moderno, distinguindo os dois períodos como “imagem movimento” e “imagem tempo”, respectivamente. A “imagem tempo” baseia-se no conceito de imagem inteira e da duração real dos eventos, dos espaços puros que devem ser atravessados pelos personagens e da contemplação do cotidiano. Aspectos do cinema de Mendoza, onde os personagens ditam o ritmo ao cineasta, que os acompanha nas andanças pela desordem urbana ou nas comunidades remotas afastadas dos grandes centros. “A minha estética é o tempo real […] quero captar a realidade” (MENDOZA, 2010, apud CÂMARA, 2010). De certa maneira o tempo real está presente também nas premissas de seus filmes, já que contam histórias de períodos curtos da vida dos personagens.

Brillante Mendoza assume a importância do Neorrealismo em seu cinema, mesmo admitindo só ter consciência da existência do estilo após o lançamento de seus primeiros filmes. No entanto, segundo o autor, o que lhe influencia são as histórias reais e as experiências das pessoas comuns. Vidas sofridas como as das avós retratadas em Lola.

3 Lola: ética e estética neorrealista

Em Lola (“avó” em tagalog), oitavo filme de Brillante Mendoza, a abordagem realista está a serviço da crítica às instituições, mais precisamente ao sistema judicial de seu país, que permite acordos amigáveis em casos de homicídio. A violência, tema recorrente na obra do cineasta, é apresentada de maneira indireta, com as consequências de um crime na vida de duas famílias em primeiro plano. Duas avós que enfrentam a pobreza e a burocracia em busca de justiça para seus netos – um foi assassinado e o outro preso por suspeita da morte do primeiro. A premissa do filme origina-se novamente de fatos verídicos que o diretor busca nas periferias de Manila. Mendoza contrata pessoas para lhe trazer histórias das ruas. Pesquisa os temas e a partir deles molda argumentos ficcionais, transformando histórias que não dariam mais que pequenas notas nas páginas policiais dos jornais, em filmes repletos de humanidade que, ao retratar os problemas enfrentados pelos mais pobres, visam criar consciência para as questões sociais que afetam os filipinos. Este compromisso ético aproxima o cineasta da postura moral dos realizadores neorrealistas. Na sua obra também podemos destacar a urgência em apreender a realidade e o baixo orçamento de seus filmes como características que remetem à corrente cinematográfica do pós-guerra. Usando Lola como exemplo, filme escolhido para análise deste artigo, apenas três meses foram necessários para o começo da produção ao seu lançamento no Festival de Veneza em 2009, com orçamento que não ultrapassou o equivalente a R$ 450 mil.

Gravado durante a estação das chuvas, a atmosfera encoberta confere melancolia ao cotidiano das personagens principais de Lola. Duas avós que Mendoza opta por apresentar em paralelo, com trechos intercalados da vida de cada uma, onde acompanhamos as dificuldades das idosas na busca de seus objetivos. Lola Sepa perdeu o neto, esfaqueado no reagir ao roubo de seu celular. Agora a frágil senhora se desdobra nos preparativos do funeral e a busca por dinheiro para enterrar o rapaz de maneira digna. Paralelamente, Lola Puring está com o neto trancafiado um uma cadeia superlotada acusado de cometer o assassinato. Visando libertá-lo busca atendimento gratuito no gabinete de serviços jurídicos públicos, onde é aconselhada a fazer um acordo extrajudicial com a outra parte envolvida – a família da vítima. Mesmo com as limitações impostas pela idade, as senhoras lutam para solucionar os problemas de seus familiares. Na busca por dinheiro acompanhamos as andanças de Lola Sepa e Lola Puring pelo caos urbano de Manila, enfrentando a miséria e a burocracia para alcançar suas metas. Determinadas a fazer tudo pelos netos, as senhoras pobres penhoram objetos, buscam empréstimos de agiotas e pedem auxílio de porta em porta entre os moradores da vizinhança. A avó de Matteo – que sofre na prisão – se mostra forte, seduzindo os familiares do rapaz morto com a promessa de ajuda para o funeral. Matreira, ela alcança a quantia desejada através de pequenos golpes na feira de frutas e legumes que possui e viajando para pedir dinheiro emprestado a parentes distantes. Na visita a essas pessoas, a mulher inverte as histórias e justifica a necessidade de arranjar dinheiro para tratar o neto que está internado após ser esfaqueado por um ladrão de celulares. Mesmo relutante a princípio, Lola Sepa acaba por ser convencida. O arranjo informal é feito e a queixa contra o neto de Lola Puring retirada. O final, com as avós saindo lado a lado da audiência no tribunal, reflete a falência das instituições em um país onde as pessoas resolvem os problemas à sua maneira. Sobre essa crítica, Mendoza diz que o governo não se preocupa com as pessoas, e os filipinos, vivendo no mais baixo escalão da dignidade, aceitam essa situação sem se importarem.

Assim como os cineastas do Neorrealismo, Mendoza assume o papel de cronista das condições de vida do povo filipino, relatando a partir da história das avós os problemas comuns enfrentados pelos idosos nas grandes cidades. No filme podemos identificar os demais procedimentos da escola cinematográfica italiana, os quais fundamentaram o conceito de “estética ética”. São eles: a descoberta da paisagem natural, com filmagens em cenários reais; elencos formados pela junção de atores não profissionais com intérpretes já consagrados; a recusa por efeitos visuais e manipulação do realizador a partir da montagem, com a dramatização dos fatos; e o uso do dialeto do local retratado, para representar de maneira fiel à fala das personagens da região.

As Lolas de Mendoza vivem na extrema pobreza, situação evidenciada pelas condições precárias de moradia de cada uma delas, que o cineasta buscou em cenários naturais da periferia de Manila. Lola Puring vive no bairro de lata, usado anteriormente como cenário para John John e Tirador. Já Lola Sepa sofre com a perda do neto vivendo sobre as águas da comunidade de Malabon, localizada a cerca de 45 minutos do centro de Manila. A região está inundada o ano inteiro e as casas são construídas em palafitas. O nível da água sobe conforme a queda das chuvas e o filme foi rodado no período chuvoso, escolha do diretor, que queria mostrar as condições de vida das pessoas que, por falta de opção, decidiram morar na área alagada. No filme chove o tempo inteiro, a partir do registro de chuva verdadeira com chuva criada artificialmente. A presença do clima em Lola ganha destaque já na primeira cena, quando a idosa enfrenta uma forte ventania na tentativa de acender uma vela no local onde seu neto foi morto.

No filme, gravado sem luz artificial, os problemas são apontados e não reproduzidos. Guiados pela câmera voyeur de Mendoza, somos testemunhas da realidade filipina. Acompanhamos as personagens por ruas, becos e vielas de Manila, conhecemos o interior de funerárias, escritórios de penhora e gabinetes jurídicos. As cenas da prisão por exemplo, quando Lola Puring leva refeições para seu neto Matteo, foram gravadas em um presídio verdadeiro, com guardas e prisioneiros reais como figurantes. No livro de Mariarosaria Fabris, a autora escreve sobre “a descoberta da paisagem natural e o gosto pelo ambientes naturais” (FABRIS, 1996, p. 66), quando os cineastas italianos do pós-guerra, de forma quase documental, “percorreram cidades e campos em busca de uma maior autenticidade” (FABRIS, 1996, p. 69). O mesmo se dá no cinema de Brillante Mendoza. Em Lola, quando as personagens embarcam em transportes públicos, a câmera é voltada para o lado de fora, exibindo a paisagem das Filipinas, imagens da pobreza generalizada que atravessa lentamente os limites geométricos do quadro cinematográfico.

Em Lola, assim como nos demais filmes de Brillante Mendoza, o elenco é composto pela mescla de atores profissionais com outros não profissionais. Sabendo disso, a representação naturalista das duas avós fez com que muitos espectadores acreditassem que eram mulheres encontradas pelo cineasta na vida real, no entanto, elas são Anita Lindo (Lola Sepa) e Rustica Carpio (Lola Puring), duas importantes atrizes profissionais com longa história no teatro, no cinema e na televisão nas Filipinas. Anterior ao filipino, o neorrealista Roberto Rosselini  pregava a importância do uso de atores não profissionais, já que essas pessoas viviam no seu dia a dia as situações retratadas nos filmes, cabendo ao diretor apenas “reconduzi-las à sua natureza verdadeira, em devolver-lhes os gestos habituais” (FABRIS, 1996, p. 82). Explicando seu método de trabalho com essas pessoas sem experiência na arte de interpretar, Mendoza diz:

Faço sempre uma mistura entre atores profissionais e não profissionais e tento dirigi-los de forma diferente. Não tenho argumento. Falo com eles sobre as personagens, dou a cada um apenas a sinopse. Nunca a história toda. Tudo se torna assim mais espontâneo. (…) Não ensaio. Nem lhes digo onde está a câmera. Se algo cai no chão enquanto eles se dirigem de um ponto ao outro, eles têm de apanhar, não digo corta. Às vezes surpreendo-os: eles não sabem coisas que vão acontecer na cena (apud CÂMARA, 2010).

Ainda segundo o cineasta filipino, o maior desafio do uso de atores não profissionais, bem como de cenários autênticos, é saber lidar com os elementos surpresa. Mendoza faz uso desses momentos inesperados em suas obras, o que lhe aproxima do dispositivo documental que dá margem ao acaso e permite a improvisação. Para Comolli, “o não controle do documentário surge como condição de invenção, dela irradia a potência real deste mundo” (COMOLLI, 2008, p. 177).

As personagens de Lola falam em Tagalog, língua predominante de Manila. O uso de dialetos remete a uma característica pouco lembrada do Neorrealismo Italiano, quando na busca de aderência à realidade e por uma postura política contrária aos conceitos fascistas que almejavam uma unidade linguística nacional, o estilo adotou a língua cotidiana das diferentes regiões do país, empregando os dialetos em seus filmes. O mesmo ocorre no cinema de Brillante Mendoza. As Filipinas têm dois idiomas oficiais: Filipino e Tagalog; mas há, além desses, mais de uma centena de dialetos espalhados pelas ilhas do arquipélago. Além disso, o país sofre uma grande influência da língua espanhola e da inglesa, herança dos períodos de colonização. O inglês é a língua franca, utilizada no tribunal de justiça apresentado durante o filme, por exemplo.

A sutileza para tratar dos temas que afetam a sociedade ganha destaque em Lola. No filme, o cineasta denuncia os problemas do sistema judicial do país, no entanto, retrata também o drama dos menos favorecidos, envoltos na violência, na miséria e na burocracia de um país em desenvolvimento. Mesmo de forma indireta, a violência está na premissa de Lola, com um assalto que resulta em assassinato. O crime cometido por Matteo não está no filme ao acaso, o furto de celulares é muito comum nas Filipinas, tanto que a fiança para este tipo de roubo é mais alta do que para qualquer outro objeto. Ocorrendo fora da narrativa principal, vemos em Lola uma série de atos violentos em resposta a crimes banais. Como na cena em que Lola Sepa está no transporte público, um homem rouba a bolsa de uma mulher desatenta, foge, mas é capturado por pedestres e espancado em plena rua. O dinheiro desempenha papel fundamental durante a história, representado já no primeiro plano do filme, que mostra o detalhe de uma cédula na mão da avó que compra velas em memória do neto. As idosas de Lola precisam de dinheiro para alcançar seus objetivos. Vivendo na extrema pobreza, elas reclamam seus direitos apelando para órgãos públicos, onde têm que enfrentar a burocracia de um sistema falido. Assim, Mendoza nos mostra como a vida é complicada para os idosos, principalmente no que se refere à burocracia, onde uma grande quantidade de formulários deve ser preenchida na busca de seus direitos. Isso é exposto em tempo real no filme em vários momentos: no contrato com a funerária, na busca pelos benefícios no emprego do jovem morto, na delegacia para visitar o preso, na necessidade de fotos atualizadas para fazer uma penhora; na busca por auxílio gratuito no gabinete de serviços jurídicos públicos.

Considerações finais

Na última década presenciamos a democratização da realização cinematográfica, através da tecnologia digital, a qual trouxe para o mercado equipamentos de baixo custo e de ótima qualidade. Porém, não percebemos avanços nos métodos de produção e na estética empregada pelos novos cineastas. Pelo contrário, os melhores expoentes do cinema digital buscam na linguagem documental da década de 1960 e no movimento italiano do pós-guerra o estilo para seus filmes. Longe de classificar essa atitude como retrógrada, o presente estudo a entende como uma escolha adequada, já que o modelo neorrealista – além de proporcionar métodos baratos – colabora com o discurso dos realizadores independentes, principalmente daqueles engajados em questões sociais.

Muitos dos aspectos técnicos e estéticos do Neorrealismo Italiano foram ditados por razões econômicas e políticas. O ideal cinematográfico consistia em produzir filmes com poucos recursos, retrato de um país que buscava se reerguer após a Guerra, no entanto, com forte discurso social. A recusa dos cenários fabricados e o uso de atores não profissionais surgiram da postura política para desobedecer as normas do regime fascista italiano da época, que pregava a representação de uma Itália idealizada. Estas escolhas estéticas de origem ideológica contribuíram também para os filmes terem um baixo orçamento, confirmando a hipótese de que o estilo serve de exemplo para os realizadores contemporâneos, já que é uma opção barata e eficiente que contribui com o modo do artista se expressar. Eficiente no discurso social porque, ainda hoje, provoca ruptura com os padrões dominantes. As normas do “fascismo” de outrora, são substituídas pelas regras do cinema industrial de hoje.

Partindo destes conceitos, a pesquisa se propôs a identificar procedimentos documentais e da estética neorrealista na filmografia do diretor filipino Brillante Mendoza. Apesar de viver uma longa estagnação, que começa a ser superada com a atual geração de cineastas independentes, as Filipinas têm uma história cinematográfica bastante significativa. Com destaque para o diretor Lino Brocka e seus filmes políticos da década de 1970. Mendoza herdou de Brocka essa função social: fazer filmes que reflitam a realidade, registrando a vida real de maneira honesta e ética. Para alcançar este objetivo, o cineasta grava sem iluminação artificial no próprio local onde se passam as histórias. “Cenografia viva”, segundo Glauber Rocha, princípio básico para um cinema que pretende discutir a realidade. Os procedimentos documentais ganham destaque no trabalho com a câmera na mão, prática introduzida na década de 1960, com o Cinema Verdade e o Cinema Direto, abordados neste estudo.

Durante a pesquisa, se fez necessário selecionar um filme do diretor para análise segundo padrões neorrealistas. O escolhido foi Lola, obra por nós considerada a mais consistente na filmografia de Mendoza, que narra as consequências da criminalidade na vida de pessoas simples. Nesta crônica do cotidiano de duas idosas, o cineasta filipino faz um filme neorrealista na essência, com todas as características da corrente italiana: filmagens em cenários reais; uso de atores não profissionais; plano-sequência com a duração real dos eventos, etc.

Ao fim deste estudo, destaca-se que a simples utilização do sistema digital não representa uma revolução para a realização cinematográfica, sendo necessária a busca por parte dos realizadores de estéticas que contribuam com a própria postura moral. Partindo das análises, concluímos que a estética do Neorrealismo Italiano, em Mendoza, talvez seja ainda aquela que melhor representa um cinema de ambições políticas e sociais.

*Márcio Renato Costa compra mais livros do que consegue ler e baixa mais filmes do que consegue assistir. Ele também é técnico em Desenho Industrial e graduando em Cinema e Animação pela Universidade Federal de Pelotas.

Artigo realizado como requisito parcial a obtenção do título de Bacharel em Cinema e Animação pela Universidade Federal de Pelotas.

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