Por Vitoria Rocha
A perspectiva do processo da montagem como um dos pilares criativos fundamentais da técnica cinematográfica, remontam ao início do século XX à um período entre os anos 1902 e 1907 quando os filmes de múltiplos planos passaram a ser norma. Entretanto, nesta época não havia verdadeira continuidade entre os planos e, portanto, as descontinuidades eram evidentemente flagradas na passagem de um plano à outro. Todavia, apesar da técnica de montagem cinematográfica começar a ser discutida por teóricos de cinema desde os anos 1920, é importante fazer menção ao ilusionista e cineasta francês George Méliès (1861-1938) e do diretor de cinema D.W.Griffith (1875-1948), que desenvolveram, em diferentes épocas e escalas, a relação entre os planos cinematográficos.
Como explica David Bordwell e Kristin Thompson (2013, p. 350): “Pode-se pensar na montagem como a coordenação de um plano com o seguinte”. O profissional responsável por essa articulação trabalha na seleção dos melhores planos, no corte de planos desnecessários e na junção final do material fílmico. Esta tarefa se torna uma poderosa possiblidade de reinterpretação do mundo a partir de seu caráter sensível e do envolvimento do editor tanto com a mise-en-scène e cinematografia, quanto com a imersão do profissional no sentimento e pensamento das emoções no filme. Para realizar as junções entre os planos desejados, o editor pode realizar fades, fusões, transições e cortes. Todos esses meios se caracterizam como componentes principais da configuração visível que tornam o tempo, o espaço, o ritmo e as configurações gráficas, dimensões cinematográficas da montagem do filme que modificam a experiência do espectador de forma que a passagem de um plano pra outro, em cada uma dessas dimensões, pareçam constantes e em perfeita harmonia para criar a ilusão de continuidade.
Todos os cortes estabelecem uma relação gráfica entre os planos e, estes, por sua vez, possibilitam montagens puramente gráficas (BORDWELL, THOMPSON, 2013, p.353). As correspondências gráficas podem se valer da composição, iluminação, cenário e movimento das figuras. De forma mais específica, as configurações gráficas podem ser mais exploradas individualmente nos padrões de claro e escuro, linha e forma, volumes e profundidades, movimento e estase. Ademais, as correspondências gráficas são responsáveis por evitar choques visuais através do nível de iluminação constantes e o centro de interesse através dos cortes entre um plano e outro. Entretanto, a montagem pode não ser graficamente contínua de modo que choques entre posições da figura na tela, por exemplo, podem estabelecer descontinuidades gráficas. Por conseguinte, a exploração das possibilidades gráficas é um importante meio de transformar a sensação do espectador através da interação por meio de diferenças e similaridades das qualidades visuais entre os planos.
Na série de televisão sul-coreana O Rei Eterno (The King – Eternal Monarch), dirigida por Baek Sang Hoon, temos diversos exemplos de relações gráficas de montagem em continuidade e descontinuidade, que aprimoraram a série como um todo elevando suas características dramáticas e fantásticas. Nos cortes mostrados a seguir (Figuras 1 – 10) são mostrados exemplos de como a iluminação e a posição das personagens trabalham em conjunto com a narrativa a partir de continuidades gráficas. Nestes dez quadros separados por nove cortes, temos uma sequência que acompanha o herói e o vilão em diferentes planos, quando ambos chegam à conclusão final de um mistério. Apesar de existir uma montagem paralela e certa descontinuidade espaço-temporal, pelo fato de estarem em lugares diferentes, a continuidade gráfica se torna presente ao colocar as figuras, interligados de forma inimiga e parental, do lado direito do quadro (1 – 4). Ocorre uma mudança de enquadramento da câmera que reposiciona o vilão do lado direito lateralmente para o lado esquerdo em ângulo frontal. A partir de sua mudança, os próximos dois planos subsequentes passam a estar do lado direito (5 – 7). Quando novamente ocorre uma alteração, o vilão passa do meio primeiro plano do lado esquerdo para o primeiro plano do lado direito, e a partir daí as figuras estarão do mesmo lado do quadro (8 – 10). Além disso, o contraste entre da iluminação do cenário destaca o herói vestido com uma roupa preta em um fundo claro com o vilão também vestido, mas em um fundo escuro.
Como já dito anteriormente, a montagem não precisa ser graficamente contínua. Uma montagem levemente descontínua pode ocorrer em composição widescreen em torno de personagens que se confrontam (Figuras 11 e 12). Cada uma das personagens completa o espaço vazio deixado pelo outro e o olhar do espectador se ajusta a composição.
A montagem graficamente descontinua causa em certo nível, um choque de plano para plano, como apresentado do plano 13 ao plano 19. O posicionamento das personagens em lados opostos do quadro, formam uma correspondência na direção do olhar, como se o herói na infância olhasse para o herói adulto (Figuras 13 e 14). Em seguida, enquanto uma figura cai para o lado esquerdo, o movimento se completa no plano seguinte com a queda da outra figura para o lado direito. Em ambas situações, o herói adulto passou por um momento semelhante ao que passou durante a infância, o que causou o flashback, ou seja, é a mesma personagem em conflitos semelhantes da vida, mas em períodos diferentes (Figuras 15 e 16). Já nas figuras posteriores, 17 a 19, houve correspondência gráfica a partir de uma fusão que fez junção entre a posição da mesma pessoa em diferentes épocas da sua vida através de um flashback. Nota-se o fato de a personagem estar apresentada lateralmente no lado direito, compensa-se com a chegada de uma figura no último plano que preenche o espaço vazio do lado esquerdo do quadro.
REFERÊNCIAS
Figura 18
COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas, São Paulo: Papirus, 2006. P. 17-52.
BORWELL, David, THOMPSON, Kristin. “A arte do cinema: uma introdução.” Campinas, São Paulo: Editora Unicamp/Edusp, 2013. P. 349- 358.
O REI ETERNO (The King – Eternal Monarch). Baek Sang-hoon, Jung Ji-hyun, Yoo Je-won. Coreia do Sul, 2020. Temporada 1, capítulo 13 (73 minutos).
MINUTAGEM DOS PLANOS (Temporada 1 – capítulo 13)
1 a 10 – 15:59 a 16:02
11 e 12 – 1:10:05 a 1:10:4913 a 19 – 1:11:18 a 1:11:48.