Moscou Não Acredita em Lágrimas (Vladimir Menshov, 1979)

Por Carine Lorensi*

O cinema, no geral, tem por objetivo decompor as questões sociais existentes, registrando o tema através do molde da representação visual e/ou sonora e, com isso, discernir de forma realista o caráter social e o sentimento humano, caso contrário se direciona a um modelo puramente fictício, no qual filia o espectador a uma diegese que busca apenas apresentar uma narrativa de valor meramente artístico.

O diretor russo Vladimir Menshov é conhecido por retratar em seus filmes a classe trabalhadora e o cotidiano de pessoas comuns, principalmente mulheres, na luta por seus ideais, características presentes em Moscou Não Acredita Em Lágrimas (em russo: Москва слезам не верит. Transl: Moskva Slezam ne Verit), de 1979, que foi realizado com o intuito de evidenciar as relações humanas e sociais, esboçando o difícil cotidiano de pessoas que buscam, dentro de uma esfera social, os meios para sobreviverem e serem felizes de acordo com os moldes impostos pela sociedade.

A narrativa se passa em Moscou no fim dos anos 50, mais precisamente 1958, e nos leva a acompanhar a vida de três jovens amigas que vão para a cidade grande em busca de trabalho, de estudo e de um amor. É um filme que se desenvolve através das lentes femininas, mas não nos agrega às estâncias poéticas, pois mostra o mundo real de uma juventude que vive à mercê da insegurança e da falta de perspectiva na cidade grande.

O diretor divide o filme em duas partes, fazendo com que a narrativa tenha dois tempos distintos, duas histórias diferentes e, ao mesmo tempo, complementares pelo fato de se tratarem dos mesmos personagens. Dessa forma, Vladimir Menshov evidencia que uma parte da narrativa é o alicerce da outra, e anuncia que, da mesma maneira que o filme se deteriora em um momento, também pode triunfar em outro. Essa equação de partes também aguça o espectador à análise das qualidades internas de cada uma das divisões, o que, ao final, revela, em um processo de aglutinação, no qual a segunda parte tem relação com a primeira a fim de estabelecer uma compreensão.

Essa equação se soma à intenção de instaurar uma visão crítica no espectador, mostrando através da linguagem cinematográfica que as respostas e os caminhos que se constroem durante toda a vida podem nos surpreender e que a felicidade pode acontecer em uma fase em que já não há mais esperanças. É interessante como o filme explora certa preocupação com a passagem do tempo e com o futuro, como se mencionasse que as concretizações pessoais estão mais adiante, que é necessária a luta de hoje para o triunfo de amanhã, e isso está presente, inclusive em alguns diálogos dos personagens.

Katya (Vera Alentova), a personagem que norteia a narrativa, é apresentada como uma jovem que, junto com suas duas amigas, Ludmila (Irina Muravyova) e Antonina (Raisa Ryazanova), ambiciona uma vida mais digna por meio do estudo e do trabalho na cidade de Moscou. Com uma personalidade empenhada, Katya é centrada em seus objetivos, porém, o seu futuro estudantil e profissional se compromete quando ela se apaixona pelo operador de câmera Rudolf (Yuri Vasiliev), um rapaz preconceituoso. Nessa primeira fase do filme, o diretor tenta colocar os paradoxos em foco ao mostrar a protagonista Katya andando à noite, rumo à sua casa, enquanto as pessoas festejam em bares por onde ela passa. Esse contraponto vincula o espaço ao estado de espírito da personagem: as demais pessoas felizes festejando nos bares e Katya solitária na escuridão da noite.

Em outro momento, são mostradas duas realidades distintas quando as três amigas vão assistir a um festival de cinema francês e se encantam com a entrada dos astros e com o glamour. Quando o corte é feito para mostrar o dia de trabalho na fábrica, fica clara a intenção de mostrar o paralelo entre a vida utópica que as deslumbra e a vida real que elas enfrentam para sobreviver.

Ainda no intuito de supor um relacionamento romântico e próspero entre Katya e Rudolf, o filme nos permite testemunhar um jantar íntimo do casal, que mais tarde faz amor pela primeira vez, ao som da romântica canção Besame Mucho. Porém, dias mais tarde, quando Rudolf descobre que Katya é uma operária da fábrica acontece o esperado de sua personalidade preconceituosa, ele rompe o namoro sem dar a ela a chance de anunciar que está grávida.

Nessa fase, os acontecimentos são mais elípticos, deixando espaço maior para o desfecho da segunda parte e, com isso, o espectador, que geralmente espera final semelhante ao dos folhetins, torce para que os acontecimentos futuros privilegiem Katya, pois o filme, de certa forma, coloca propositalmente a heroína como vítima na primeira parte, justamente para implantar no espectador a inquietação e o senso de justiça. Katya dá à luz a uma menina e tem o apoio das duas amigas. Ela nomeia a filha de Aleksandra, nome homenageado durante boa parte do filme através da belíssima canção “Aleksandra”, de Tatyana e Sergey Nikitin.

Com as amigas já casadas e morando em lugares distintos, Katya se encontra ainda mais solitária. Mora em uma pensão com a filha e enfrenta a batalha difícil de estudar, trabalhar e cuidar do bebê, a fim de alcançar seus objetivos. Em uma noite, exausta de estudar, Katya acalenta o bebê que chorava, vai para cama, programa o relógio despertador para o dia seguinte e, em uma explosão se desespero, chora até adormecer.

Desperta o relógio programado por Katya, porém, 20 anos depois. Ela agora é uma mulher madura, de meia idade, bem sucedida, diretora de uma empresa e mora com sua filha.  A maturidade e a decepção amorosa do passado lhe transformaram em uma mulher solitária, que vive para a educação da filha e para os compromissos de trabalho. Neste ponto, Menshov busca elaborar no filme a outra face da moeda, apresentando os resultados dos esforços da personagem, a imagem de uma mulher bem sucedida que também é mãe em uma sociedade em fins da década de 70. Nesse momento, a narrativa tende a levar a personagem ao triunfo, mas é aos poucos que isso vai ocorrendo, pois o filme tem o objetivo de contrapor as duas partes, enfocando a realidade social e mostrando o resultado do encontro desses paradoxos. Em uma passagem, percebe-se a intenção do diretor ao modificar o ritmo de uma canção a fim de esboçar o sentimentalismo da personagem. A diferença na execução da canção Besame Mucho nas duas fases do filme enfatiza esse apelo de Vladimir, pois, na primeira fase, a música é executada como uma melodia romântica que serve como pano de fundo para o momento em que Katya e Rudolf fazem amor pela primeira vez, já na segunda fase, a música é executada mais ritmada, na cena em que Katya está bebendo vinho com o homem com quem mantém um relacionamento sem amor. O diretor enfatiza então não só o sentimentalismo – através da canção romântica, como também a maturidade da personagem – através da canção mais ritmada, aliada à percepção do espectador, para que este perceba que, na primeira parte do filme, a personagem viveu um amor, e, na segunda parte, vive sem esperança de amar outra vez.

Em uma noite, na volta para casa, Katya está no metrô lendo seu livro e acaba conhecendo um sujeito nada sedutor que inicia uma conversa, e, mesmo evitando dialogar com o desconhecido, a sensibilidade dele a deixa intrigada, principalmente quando ele diz “Sei que não és casada e não pelo fato de não usar aliança, e sim porque tem um olhar observador, olhar de mulher solteira.” Ela não finge ter ficado surpresa e os dois acabam tendo uma conversa mais divertida. Nos dias que seguem, Gocha (Aleksey Batalov), o homem do metrô, trama encontros casuais com Katya com o objetivo de conquistá-la. Seu jeito divertido surpreende a protagonista e, posteriormente, Aleksandra (Natalya Vavilova). Aos poucos, ele acaba conquistando a confiança e a estima de ambas.

A narrativa procede mostrando que Gocha conquistou Katya aos poucos, e que, de certa forma, esse aspecto privilegia uma relação harmoniosa e feliz, mesmo ele sendo um homem completamente diferente dos que ela imaginava conhecer. Durante um piquenique de domingo, em que Katya e Aleksandra são convidadas por Gocha, as relações entre eles se estreitam fazendo com que Katya o observe como um homem interessante, que conquista não só ela, mas também sua filha, evidenciando que as desilusões que nutria em relação aos homens e ao amor começam a enfraquecer.

Quando Rudolf reencontra Katya, por acaso e vinte anos depois, ela é a diretora da empresa e não mais a operária que ele descriminou no passado. Ele sugere um encontro para que possam conversar e percebe-se que o lugar em que marcam este encontro é o mesmo onde ele a abandonou no passado, ficando explícita a troca de posição entre os personagens: agora é Rudolf quem se lamenta de sua vida presente e é ela quem diz “tudo há de se arranjar”, da mesma maneira que ouviu dele quando era mais jovem. Essa cena deixa clara a inversão entre eles e, nesse encontro, ela dispõe de apenas quinze minutos para conversarem, e mais uma vez é enfatizado no filme os limites de tempo. Ainda nesta conversa, Katya, com leveza de espírito, agradece Rudolf por ele a ter abandonado, pois assim ela teve a sorte de conhecer o homem que ama de verdade.

Durante um jantar, quando Katya e Gocha discutem o respeito entre marido e mulher dentro de uma hierarquia familiar, são surpreendidos com a visita de Rudolf, quando Aleksandra atende a porta sem ao menos saber que o visitante é seu pai. Rudolf é tratado com muita gentileza por Gocha, que até então não sabia da proximidade existente entre o visitante e Katya. Porém, pouco depois, a observação perspicaz de Gocha não falha quando ele percebe que o visitante é o pai de sua enteada. Essa observação faz com que ele se retire da mesa e saia da casa, pois deduz que Katya e Rudolf poderiam retomar o namoro acabado há vários anos já que têm uma filha em comum. Com a saída de Gocha por se sentir envolvido em um triângulo amoroso, Katya aproveita o mau clima que se instaurou e apresenta Rudolf para Aleksandra como seu pai, uma surpresa que silencia a moça.

Pensando dessa forma equívoca, de que não havia mais espaço para ele na vida de Katya, Gocha se afasta das duas, causando desespero na namorada. Dias depois, Katya se reúne com suas amigas para discutirem o sumiço de Gocha, que ultrapassava oito dias. A protagonista, temendo sofrer outra desilusão amorosa, pede ajuda às amigas para que o encontrem e o convençam a voltar para casa. Para acalmar o pranto de Katya, Ludmila diz que “Moscou não acredita em lágrimas”, intensificando a ideia de que Katya deve, naquele momento, agir pela razão, mesmo que as situações que envolvem amor sejam complicadas. Através de informações alheias, o marido de Tonia encontra Gocha e consegue convencê-lo a voltar. Ao retornar a casa, Gocha adentra a sala onde Katya estava sozinha, chorando sob a penumbra, e a câmera faz um zoom in para o rosto de cada um, na intenção de frisar, em uma cena silenciosa, o sentimento através do olhar dos personagens nesse reencontro e, assim, Katya deixa transparecer que o ama e Gocha certifica-se de onde deve permanecer.

Mais tarde, durante o jantar, os três sentam-se a mesa e Katya serve sopa para Gocha de forma cortês. Gocha sorve a sopa sem perceber que Katya não faz o mesmo e sim lhe observa, porém, quando a olha e pergunta o motivo de tal observação, ela diz com a cabeça apoiada na mão: “Te procurei por tanto tempo.”. Ele responde friamente sem olhá-la: “Oito dias”. Katya meneia a cabeça em negativo e repete: “Te procurei por tanto tempo.”

A cena final do filme acontece na mesa de jantar, com Katya, Aleksandra e Gocha, ou seja, uma típica cena familiar. Katya finalmente construiu a família que esperou por vinte anos para ter. O diretor russo apresenta o filme de forma muito realista e, por vezes, emblemática quando percebemos que preconceitos não levam às conquistas, que o destino, muitas vezes, depende de nossos esforços e, principalmente, que as pessoas mais improváveis que cruzam o nosso caminho podem se tornar as mais surpreendentes. O filme fecha com a canção “Aleksandra”, sua principal trilha sonora. E, dentro de um mosaico de citações e correlações presentes na narrativa, Vladimir Menshov deixou evidente que a ausência que uma pessoa causa por uma semana pode ferir muito mais que a ausência causada durante 20 anos, e que, por fim, tudo está relacionado com o amadurecimento do ser e com a intensidade do seu sentimento.


*Carine Lorensi é graduanda de Letras Bacharelado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Jorge

    Eu gostei muito de sua análise.

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