O Estudante de Praga (Paul Wegener, 1913)

A essência de Poe no cinema mudo alemão

Por Carine Lorensi *

“Não sou Deus, nem posso ser o Demônio, mas com desprezo, pronuncio o teu próprio nome. Porque em qualquer lugar, você será também eu.”

O cinema se relaciona à literatura com o intuito de registrar o texto literário no modelo da representação visual e/ou sonora, fazendo com que se estabeleçam pontos de encontro entre as duas artes. Por essa e outras razões é que ao longo do tempo diversas obras literárias serviram como base para o cinema, ganhando versões e até mesmo recriações de seus roteiristas e cineastas.

Baseado no conto William Wilson de Edgar Allan Poe, o filme alemão O Estudante de Praga (em alemão: Der Student von Prag) de 1913, dirigido por Paul Wegener e Stellan Rye conta a história de Balduin (o próprio Paul Wegener), um estudante que vende o reflexo de sua imagem para uma figura mefistofélica (personagem diabólico e sarcástico) com o intuito de ficar rico e conquistar o coração da Condessa (Grete Berger), e a partir desse momento, vê sua vida arruinada pela perseguição de seu duplo espectral.

O filme se passa na cidade de Praga, na época pertencente ao Império Austro-Húngaro, e explora cenários sombrios como o cemitério, situações igualmente sombrias como o incomum encontro com a Condessa acontecer também no cemitério. Além disso, incorpora o misticismo à narrativa fílmica ao aderir elementos místicos como a cigana, que faz previsões aos dois protagonistas e o espectro mefistofélico, que persuade Balduin a aceitar um sósia.

As adaptações cinematográficas requerem certas medidas para explorarem os temas abordados do livros, dos quais se basearam para construir a narrativa fílmica. Quando um filme não se apresenta muito fiel à obra literária, cabe ao diretor ou ao roteirista explorarem temas diferentes no filme, porém utilizando a ideia da qual se propõe no livro. Acontece essa maneira de adaptação em O Estudante de Praga, pois a estratégia de articular o efeito da duplicidade tem um valor diferente em relação ao texto literário, o que acrescenta certa particularidade ao filme, porque não se trata de um personagem insano e com transtornos de identidade que é vítima da perseguição de seu sósia como Edgar Allan Poe nos apresenta no conto, mas sim sobre as relações amorosas junto com o desejo da correspondência da amada que levam o personagem a ter um sósia, pois Balduin é um rapaz de sã consciência que aceita o duplo por estar passível de uma paixão.

Balduin gladiando com sua imagem ao espelho

O filme é creditado como gênero de drama/terror, mas é sob uma perspectiva amorosa que a ideia do duplo se concretiza na narrativa fílmica. A relação do sósia se estabelece através da busca do personagem por uma identidade alheia, para suprir uma característica social que ele não possui para conquistar a Condessa. Em resumo, tem-se que o duplo no conto William Wilson é resultante de uma insanidade do personagem e o duplo de O Estudante de Praga é resultante da necessidade de uma correspondência amorosa. Ainda vale ressaltar que o conto e o filme divergem no que diz respeito às aparições do sósia, pois, em William Wilson, o sósia se apresenta de forma física, mas não é visto pelos demais personagens, por isso não se descarta a possibilidade de que ele exista apenas na mente perturbada do protagonista. Já no filme, o sósia de Balduin se apresenta como um espectro, mas é visto pelos demais personagens, despertando reações de temor, por isso o filme, além de evidenciar pretensões amorosas, também encadeia uma esfera de medo e misticismo.

O final do filme apresenta conexões com o conto quando os desfechos ocorrem de maneira similar, pois em William Wilson acontece um duelo de espada entre Wilson e o seu duplo, resultando no suicídio do personagem. No filme, Balduin se encontra com o seu sósia e no desespero de se desfazer da perseguição, dispara um tiro contra ele, mas quando põe a mão em seu próprio peito e percebe o ferimento do projétil, ele se reconhece na imagem que julgava ser a sua imitação e nesse instante se certifica de que acabara de atirar contra si mesmo.

Portanto, o que se vê nesse filme é a não adoção de uma imensa fidelidade à obra, e é interessante a maneira singular com que o conto foi adaptado pelos diretores alemães ao construírem uma narrativa fílmica a partir da essência retirada do conto de Poe. Tanto no conto quanto no filme, os dois personagens se suicidam com a certeza de ter assassinado o seu sósia, porém o filme deixa claro que o espectro triunfa no final quando este aparece sob o túmulo de Balduin.

O espectro e sósia sentado sob o túmulo de Balduin

*Carine Lorensi é graduanda de Letras Português Bacharelado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta