Por Marcella Grecco *
Grandes transformações econômicas, políticas e sociais ocorrem de tempos em tempos. Talvez a mais radical de todas tenha sido a que resultou no desenvolvimento de uma primeira sociedade industrial, rompendo com antigas noções de tempo, espaço e produção. Da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX, descobertas no campo científico transformam rapidamente a vida de muitas pessoas e um fluxo incontrolável partia do campo em direção às cidades, em busca de conforto e tecnologia. A população cresce em meio a uma nova cultura de consumo e logo o mundo se torna cinza para os olhos de muitos artistas. É a explosão do modernismo, uma nova forma de arte que viria romper com o tradicional e com o imposto. Fugir do academicismo e proclamar a liberdade.]
A produção em série de bens de consumo permite o enriquecimento de uma classe produtora, a burguesia. Logo, não mais somente bens de consumo seriam produzidos em série, e, paulatinamente, passamos de uma ênfase materialista para uma ênfase cultural. A reprodutibilidade técnica alterou não somente nossa relação com o material como também com a obra de arte. Walter Benjamin (2000) apontou a perda da aura, da experiência única frente à determinada forma de expressão. A produção em série das obras de arte as aproximou do público e os diversos meios de divulgação converteram a arte em um fenômeno de massas.
Pós-modernismo? Talvez. O termo ainda é polêmico e muito se questiona o uso do prefixo “pós”, pois, a época em que vivemos não representa exatamente uma superação do modernismo. O ponto é que, o modernismo, ao propor a quebra com o convencional e a constante produção do novo, entra em um processo de autodestruição passando, com o tempo, a criticar a si próprio. Segundo Adorno (1982), o modernismo, ao romper com o tradicional, acaba instaurando uma nova tradição: a tradição do novo.
O cinema, ao contrário de outras artes como a literatura, a dança, o teatro e as artes plásticas, viria a conhecer tardiamente as influências de um modernismo. É somente no pós Segunda Guerra Mundial que o Neorrealismo Italiano e os Cinemas Novos surgem rompendo com a saturação de um Cinema Clássico. Devido a sua breve linha de tempo, as mudanças no cinema ocorrem com maior rapidez, e, já no final dos anos 60, começariam a surgir aspectos de um pós-modernismo.
O cinema pós-moderno não contradiz o moderno. É chegado um ponto em que o modernismo já não apresenta o mesmo furor e romper barreiras torna-se não mais vanguardista. Linda Hutcheon (1991) considera o pós-modernismo uma formação cultural paradoxalmente ligada ao modernismo. O “pós” não traz a ideia de superação, mas sim de uma junção híbrida e plural. Não se trata de uma oposição novo versus antigo ou arte versus cultura de massa. O pós-modernismo é a junção de tudo, é intertextual e propicia uma interessante revisão histórica.
Há uma mistura de ilusionismo clássico e modernismo. Em meio a frias sequências de uma câmera observadora que retrata e denuncia o cotidiano podemos notar inserções de procedimentos usuais nos filmes hollywoodianos, como o romper de uma trilha sonora sentimental, closes exagerados ou manipulações no roteiro que chegam a beirar o pastiche.
Originalidade não é a premissa do cinema pós-moderno, o que, entretanto, não significa que seus filmes sejam apenas cópias indiscriminadas de um antigo original. Há muitas paródias e flertes com elementos da indústria do entretenimento, como videoclipes e propagandas. Inclusive, uma das grandes características desse novo cinema é justamente a conversa com a cultura de massa. Ao incorporar elementos de diversas mídias ele institui um jogo que ao mesmo tempo quebra o ilusionismo e aproxima o discurso do grande público.
Sofia Coppola é uma diretora que tem conseguido trabalhar muito bem nesse limiar entre o pós-moderno e o pastiche. Seu filme “Maria Antonieta” (2006), por exemplo, recebeu duras críticas na época do lançamento, sendo classificado injustamente por muitos como um filme fútil e vazio. Realmente, não são discutidos durante a obra muitos aspectos políticos e só nos deparamos com a realidade da França pré-revolução de 1789 nas últimas sequências, durante a fuga da família real.
Frente às novas possibilidades do cinema, a diretora escolheu um recorte inusitado da corte francesa. Somos apresentados à jovem austríaca Maria Antonieta chegando com 14 anos de idade em um novo lar. Todos a olhavam com desdém, nada lhe trazia segurança e tudo que lhe era conhecido ficara para trás. Seu marido, o monarca Luís XVI, não lhe dava atenção e levou cerca de sete anos para o casamento ser consumado. Sofia Coppola nos introduz no mundo interior desta jovem deslocada. Ela não é Maria Antonieta, a histórica tirana. Ela é a menina colegial que é excluída pelos colegas. Ela é a adolescente não compreendida pelos pais. Ela é alguém buscando se encontrar.
Através de corajosos artifícios Sofia Coppola nos transporta para aquela época. Melhor, transporta aquela época até nós. Ao invés de pomposos escritos à pena, a introdução do filme conta com grafismos em rosa, lembrando uma estética meio punk. A música de fundo é um rock moderninho. Maria Antonieta é retratada como uma “patricinha”: gasta milhões em roupas e acessórios e frequenta festas constantemente. Ela é como uma celebridade, pois sua vida faz parte do interesse de todos. Sonha com o amor do conde Axel Von Ferson ao som de uma música do The Strokes, banda de rock dos anos 2000 e, entre os variados pares de sapato que encomenda, há um Converse All-Star roxo.
Como um filme histórico sobre Maria Antonieta tem as festas da corte embaladas ao som de bandas recentes como The Cure e New Order? O que significa a variedade de tons pastéis na dura realidade da França pré-revolução? Um tênis All-Star em meio a sapatos de época? E o estranhamento causado quando em uma corte francesa todos falam um perfeito inglês? São estes alguns dos elementos que podem render ao filme uma má interpretação. A questão, entretanto, é que a diretora não se propôs a rodar um filme de época. Antes de tudo é um filme sobre a personagem Maria Antonieta e a escolha destes elementos contribui para a compreensão de que a personagem não se diferenciava muito de uma jovem dos dias atuais.
O filme é composto por um jogo de equivalências que guiam para um melhor entendimento do momento retratado. Maria Antonieta sonhava com milhares de pares de sapato assim como muitas garotas de hoje possuem diversos modelos de tênis All-Star. Não se importava com as questões políticas da França, porém, ela era praticamente uma criança e nenhuma das mulheres que faziam parte do seu cotidiano e lhe serviam de exemplo pareciam se importar. Se as festas da corte acontecessem nos dias de hoje estaríamos escutando The Cure e New Order. O que lhe importava era ser feliz. O filme faz um retrato humano de um personagem histórico.
E isso é muito pós-moderno. É a incorporação de elementos da cultura de massa, é a intertextualidade, é a revisão da história e a aproximação com o grande público. Muitos cineastas modernos são de difícil assimilação, como Glauber Rocha, Antonioni, Godard… Sofia Coppola reinterpretou a história facilitando a sua absorção. Equivocadamente, podem dizer que Maria Antonieta é um filme mal feito e peca pelo uso inadequado de alguns elementos de cena. Porém, é difícil o público dizer que não entendeu nada.
Este é o cinema pós-moderno que, sob a máscara do entretenimento, opera criativamente valendo-se de ferramentas de diversas mídias para atingir o grande público e deliciar aqueles com um olhar mais atento. Ele incorpora traços do cinema de gênero e elabora uma constante autocitação que vai muito além da mera homenagem à arte. É subversivo por não ter medo de conversar com o grande público e é inventivo por conseguir, ao mesmo tempo, apresentar um discurso composto por diversas camadas de compreensão.
Bibliografia
ADORNO, Theodor. Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na era da reprodutibilidade técnica. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: StudioNobel, 1995.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006.
*Marcella Grecco é graduada em Comunicação Social – Midialogia pela UNICAMP e pós-graduanda em Jornalismo Cultural pela FAAP.