O Garoto de Liverpool (Sam Taylor-Wood, 2009)

Thiago Köche*

O quarteto de Liverpool conhecido como The Beatles é considerado o grupo musical mais famoso até hoje criado. John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr marcaram época com suas músicas e “simplesmente” tudo que faziam – e ainda fazem, no caso de McCartney e Starr. Ou que ainda reverberam, no caso da banda e dos falecidos Lennon e Harrinson. Os adolescentes ingleses foram tão marcantes que suas músicas ainda ecoam não somente nos ouvidos dos contemporâneos de sua época, mas também nos das novas gerações. Poucas bandas conseguem ter este efeito.

Pôster inglês de "O Garoto de Liverpool"

São poucos os filmes que contam a história tão rica e marcante dos garotos de Liverpool. São poucos os cineastas que se atreveram a tocar numa trajetória tão importante para a população mundial. Alguns filmes feitos pela banda e seu empresário e mais algumas poucas obras de realizadores corajosos são o que existem. A grande maioria, com fracos resultados. Talvez seja muito pesado para qualquer artista pôr na tela uma realidade tão importante e que apenas os poucos que conviveram com a banda – muitos deles falecidos, infelizmente – conhecem e cometer injustiças talvez seja o maior medo. Sam Taylor-Wood faz isso no mais recente longa-metragem a ilustrar parte do trajeto do Fab Four – O Garoto de Liverpool (2009), pessimamente traduzido de um título mais eloquente: Nowhere Boy.

A diretora inglesa é realmente ousada por demasia, talvez como era John Lennon, personagem central de seu primeiro longa-metragem. Taylor-Wood só havia feito alguns curtas-metragens antes de se aventurar em mais de vinte minutos. Fora do cinema, Taylor-Wood era fotógrafa e, juntamente com Henry Bond, fotografou John Lennon e Yoko Ono deitados na cama, símbolo icônico de uma geração de give peace a chance. Era época da Guerra Fria, e num período de ameaças, tudo que se queria era paz. Depois de algumas exposições consagradas e trabalhos com televisão, ela se aventurou a contar a história de um homem que ela mesmo santificou, baseado no livro biográfico Imagine This: Growing Up With My Brother John Lennon, escrito por Julia Baird, uma das irmãs de Lennon.

O Garoto de Liverpool conta a história de John Lennon de forma fragmentada, desde sua infância problemática até o início e o estouro dos The Beatles. Lennon (Aaron Johnson), criado por sua tia Mimi (Kirstin Scott Thomas), volta a ter contato, durante o equivalente ao ensino médio escolar da época, com Julia (Anne-Marie Duff), sua ausente mãe. A relação com sua progênita é complicada – um misto de materna e incestuosa. A conotação sexual entre os dois é muito explorada, chegando em alguns momentos a questionar a verdadeira índole de Julia (e de sua sanidade, já que a depressão da mesma é ilustrada). A primeira banda de Lennon, The Quarrymen, o encontro com seus amigos Paul McCartney (Thomas Brodie Sangster) e George Harrison (Sam Bell), a sua adolescência revoltada, a sua paixão pela música, os palcos, suas relações amorosas e sexuais, o encontro com as drogas e o álcool. Tudo o que foi o cerne de um gênio musical é explanado no filme. Mas o foco é a dicotomia entre Mimi e Julia, duas mulheres com as quais ele alternava a convivência todos os dias. Mimi representava a velha família tradicional inglesa proletária, que prima pelos modos e pela ordem. Julia representa o oposto: o rock’n’roll – ela mesma faz questão de dizer: Sabe o que significa, John? Significa sexo! –, a bagunça, o descompromisso, a depressão, a vida de forma mais crua e simples. E Mimi, apesar de Julia ser sua irmã, não a suporta. São antagonistas, no estilo de vida e nos rumos que o futuro de cada uma tomou com suas escolhas. Um verdadeiro triângulo amoroso, mas curioso, por ser entre uma tia, uma mãe e um sobrinho/filho.

Julia e Mimi, num raro momento de paz

Audiovisualmente falando, o filme é perfeito. Direção firme, com belos planos, atores em sincronia, bela fotografia, edição e som competentes. A oposição filosófica (que tanto confundiu Lennon) entre tia Mimi e sua mãe Julia, foi tratada pela direção de arte de modo que a diferença fosse discrepante aos olhos, tanto pelo figurino quanto pela decoração e objetos nas casas de cada uma. E claro, com atuações geniais das mesmas. Aaron Johnson firmou seu nome no cinema quando interpretou um marco de uma geração e dos quadrinhos: Kick-Ass – Quebrando Tudo (Matthew Vaughn). Mas em O Garoto de Liverpool ele teve mais liberdade de atuação. E, interpretando simplesmente um dos homens mais influentes da história, ele dá conta do recado.

John Lennon interpretado por Aaron Johnson: Um verdadeiro metrossexual dos anos 60

O roteiro é o que incomoda. Incomoda pela infidelidade. No caso dos The Beatles no cinema, não cabe a nenhum realizador ter a ousadia de dizer a Paul McCartney, quando o mesmo questionar a fidelidade da obra: “está bem Paul… é só um filme”. E Taylor-Wood disse isso à McCartney. Por exemplo: Lennon nunca deu um soco em McCartney – e Taylor-Wood simplesmente cria uma cena na qual Paul tenta acalmar John no velório de Julia. John dá um soco na cara do amigo, fazendo-o cair e sangrar o nariz. McCartney ficou incomodado: “É um grande tributo que aquilo que fizemos ainda permaneça e as pessoas ainda consigam fazer filmes sobre os The Beatles que tenham sucesso. Mas, para mim, não são verdadeiros e isso é o que têm de infeliz”. Irreverente e simpático, como sempre, ele ainda brinca: “O John nunca me esmurrou como o faz em Nowhere Boy, mas meu personagem é cool e por isso não me importo de ser esmurrado”.

Lennon, o estilo, o violão e o cigarro.

“Só” e “The Beatles” não cabem na mesma frase. Pela trajetória do grupo musical, nenhum realizador deveria ousar dirigir um filme com tamanha liberdade criativa, onde a grande maioria dos espectadores esperava por conexões com os fatos ocorridos. Apesar de um belo filme, foi uma infelicidade Taylor-Wood não condizer com a realidade e ter dado uma resposta tão inconsequente para um Beatle vivo. E pior: no pôster do filme está escrito “The extraordinary untold story of John Lennon”, ou seja, “a extraordinária história de John Lennon que nunca foi contada”. Algo tão forte usado como publicidade perde credibilidade quando McCartney contesta a veracidade do roteiro. A diretora rebaixa sua própria obra dizendo que “é só um filme”. Mas o recado é dado, e condiz com o título original: Nowhere Boy, ou seja, “Garoto de lugar nenhum”. É exatamente isso que John Lennon é no filme. Ele às vezes simpatiza mais com o jeito de Mimi levar a vida. No outro dia, concorda mais com Julia na maneira de como lidar com o cotidiano. Misture a isso sexo, drogas e rock’n’roll. O resultado é um garoto de lugar nenhum, mas de um destino certo, melancólico e glorioso, que já conhecemos.

Thiago Köche* é graduado em realização audiovisual pela universidade UNISINOS.

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