O Homem Elefante

INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo traçar semelhanças entre o livro de Raymond Bellour, “Entre-Imagens Foto, Cinema, Vídeo” e o filme “O Homem Elefante” (“The Elephant Man“), filmado em 1980 sob direção de David Lynch. Considerando ainda a obra de Roland Barthes “A câmara clara“, pretende-se analisar o filme de Lynch sob a perspectiva da fotografia still: a foto da mãe do Homem Elefante, que o acompanha até sua morte.

A análise fílmica é apresentada primeiramente, contextualizando-se a narrativa. À medida que a importância da figura da mãe na vida sofrida de John toma a consciência do espectador, o dialogismo com Barthes e Bellour é possível.

Foram usados, para tanto, falas do filme; descrições de planos e sequêmcias; os conceitos de punctum e studium de Barthes e citações de Bellour acerca da análise pictórica no cinema.

O HOMEM ELEFANTE E O JOGO DE SENTIMENTOS DE DAVID LYNCH

“ROMEO

If I profane with my unworthiest hand  this holy shrine, the gentle sin is this. My lips, two blushing pilgrims, ready stand to smooth that rough touch with a tender kiss.

JULIET

Good pilgrim, you do wrong your hand too much, which mannerly devotion shows in this. For saints have hands that pilgrim’s hands do touch, and palm to palm is holy palmers’ kiss.

ROMEO

Have not saints lips, and holy palmers too?

JULIET

Ay, pilgrim, lips that they must use in prayer.

ROMEO

O, then, dear saint, let lips do what hands do, they pray: grant thou, lest faith    turn to despair.

JULIET

Saints do not move, though grant for prayer’s sake.

ROMEO

Then move not while my prayer’s effect I take.

He kisses her.”[1]

O Homem Elefante (Elephant Man, 1980), de David Lynch é baseado na história real de Joseph Carey Merrick, representado por John Hurt no papel de John Merrick. O verdadeiro Merrick sofria de uma doença até então desconhecida no século XIX, diagnosticada oficialmente como “Síndrome de Proteu” apenas em 1996, após exames no esqueleto de Merrick.

Baseado em livro de Sir Frederick Treves e Ashley Montag, o roteiro de Christopher de Vore, Eric Bergren e David Lynch adapta para o cinema a história do homem conhecido como Homem Elefante. Os primeiros planos nos mostram um retrato de uma mulher, em plano detalhe dos olhos, como uma alucinação. O retrato é sobreposto pelo andar retumbante de elefantes, cujo som lembra inclusive a marcha de um trem. Sem saber sobre o que se trata o filme e esperando de Lynch algo insólito, podemos interpretar que o Homem Elefante seria filho, literalmente, daquela mulher e de um elefante. Após o ataque do elefante à mulher, que é empurrada ao chão com a tromba, a tela é parcialmente preenchida por uma névoa branca, seguida de um choro de bebê. Pode-se interpretar tal seqüência como o ato sexual entre o elefante e a mulher. Este é o mito criado pela sociedade em que Joseph Carey Merrick viveu a respeito dele. Em todas as sociedades humanas, o desconhecido torna-se mítico; na Era Vitoriana não foi diferente com uma doença completamente desconhecida.

O filme prossegue com a imagem de fogo; a lente da câmera abre e vemos um parque de diversões, um circo. Antony Hopkins[2], no papel de Dr. Frederick “Freddie” Treves, pára em frente a uma placa: “Freak” (aberração). A partir desse plano o espectador sabe sobre o que é o filme. O homem elefante é uma das atrações do circo e entretém um público variado, principalmente bêbados e casais.

Uma das primeiras vozes que ouvimos é de um policial dizendo o quão degradante é aquela exibição, tanto para quem vê quanto para a pobre criatura. Bytes, que se auto-intitula, contraditoriamente, sócio-dono de Merrick, seu tesouro, diz que está na hora de outra mudança. Mas Lynch nos dá uma pista. A mudança não é só de lugar de “apresentação”. Merrick não irá apenas se “apresentar” em outro local, mas mudar completamente suas relações humanas. Merrick conhece Dr. Treves ainda em situação degradante. Bytes o apresenta com discurso circense:

“A vida é cheia de surpresas

Pense no destino da mãe desta pobre criatura
Atacada no quarto mês de gravidez

Por um elefante selvagem

Atacada numa ilha perdida

Na África.

O resultado está aqui.

Senhoras e senhores

O terrível

Homem Elefante”

Mas, terrível é a condição que a “atração” nos é mostrada. Sob a luz da escuridão e um gemido dolorido, Bytes e o seu ajudante o ordenam a levantar e virar-se. Tanto o médico quanto  (certamente) o espectador, ficam boquiabertos. Treves fica com os olhos marejados [3]e paga bem Bytes pela visita e para que permita a vinda de um táxi para buscar Merrick no dia seguinte, para estudá-lo. Para Bytes, o pagamento é apenas o que importa.

Lynch aqui faz uma séria crítica à sociedade estruturada no lucro, na qual o lucro sobressai a qualquer outro sentimento. Lynch faz um jogo de sentimentos: o insólito, o diferente, o exótico, o delirante, a ternura, o amor, o respeito, o preconceito, a dor.  Merrick era o diferente, o exótico, o insólito, o delirante. Até os 21 anos conheceu apenas a rejeição e o preconceito; a dor da doença e dos maus tratos. Foi apenas com Frederick Treves que descobriu o respeito, a ternura e o amor.

O preconceito[4], por definição, é fundamentado no desconhecido. Ele corroeu a vida de John mais do que a própria doença sozinha faria. Ao lado de pessoas também com anormalidades, como nanismo, gigantismo, gêmeas xifoonfalesquiópaga (popularmente conhecidas como gêmeas siamesas) a Maverrick também resta ser apenas acondicionado a ser atração de circo. Vivendo em traillers semelhante a jaulas, eles convivem, ajudando-se. Em determinada sequência, John é preso a uma jaula, separado de macacos violentos por uma grade apenas. Sua “família”, seus companheiros de sofrimento resolvem soltá-lo e ele parte numa viagem em busca de achar-se.[5]

“Não sou um elefante. Não sou um animal! Sou um ser humano. Sou um homem…”

John grita e desmaia para o público, pessoas curiosas de olhar preconceituoso, como alguém que, acuado pela vida, busca a aceitação. Nas sequências seguintes ele, ao invés de cair no chão de um banheiro, como no plano anterior, cai nos braços de Treves:

“Minha vida é plena porque sei que sou amado. Eu descobri. Sem o senhor não poderia dizer isso.”

Merrick fica grato pela atenção e preocupação do médico, que apesar de também exibi-lo à comunidade médica, trata-o com dignidade, lhe dá cama, comida, respeito e um lar. John, à medida que ganha a confiança de Treves passa se comunicar, mostrando seu lado intelectual evoluído e ultrapassando expectativas. Aos poucos é aceito na alta sociedade, aplaudido com carinho e admiração, não mais como objeto de exibição degradante. John é convidado a ir a um teatro, é homenageado pela atriz[6] famosa da época e recebe visitas ilustres em seu quarto de isolamento no hospital em que Treves trabalha.

Ele parece compreender com resignação[7] sua posição frente às pessoas, ao choque primário que causa. Ao apresentar o retrato de sua mãe ao médico e sua esposa, comenta o quanto sua mãe era bonita, o quanto seu rosto se assemelhava ao de um anjo:

“As pessoas se assustam com aquilo que não conhecem. Eu também não entendo. A minha mãe era tão bonita.”

E uma música doce, infantil, nos mostra o retrato de sua mãe.

“A fotografia é um simulacro. Quando muito, uma lembrança, com o que isso implica de ausência e separação. A lembrança não tem relevo, não tem nada de verdadeiramente presente. Do passado, ela é apenas a decomposição. A foto é, por natureza, essa decomposição; ela atenta contra o esquecimento, do qual surge a revelação da memória involuntária. Só esta, nascida ao acaso, da disponibilidade metamorfoseia o passado em presente, fazendo com que se juntem na escrita, que terá por objeto fundar-se a apreensão na duração.” BELLOUR. P.70

O retrato da mãe de John é seu elo com a aceitação. Ela, considerada tão bela e ele, tão freak. Lynch não nos coloca o porquê de sua separação dela, mas nos põe a frente a sua lembrança, a sua ausência e a sua separação, como nos coloca Bellour. O belo e a aceitação são conceitos, para Merrick, pouco auto-explicativos, mas ele aceita a forma (mesmo que dolorida) com que lhe são apresentados. A foto de sua mãe o acompanha sempre, como a imagem infantil de seu anjo da guarda.

Ela é bela e morta (?) olha nos olhos da lente da câmera. Mas seu olhar, apesar do direcionamento, parece mais olhar pelo filho. John reza o tempo todo, diz a Treves ler a bíblia desde sempre. Sua mãe realmente é o anjo pelo qual ele reza e dedica seu amor, como acrescenta Barthes: “toda fotografia é um certificado de presença”.[8] “A subjetividade absoluta só é atingida em um estado, um esforço de silêncio (fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio)”[9].

“Chevrier mostra claramente até que ponto a rejeição à fotografia, assim como o fato de ter se tornado uma idéia fixa, revelam em Proust uma obsessão pela ‘imagem única’. Aquela que no batisfério de São Marcos, na forma imutável de um mosaico, representa para ele sua mãe: ‘o ícone de um amor único’ é a imagem da qual a fotografia sempre se torna a ausência, mas da qual deveria, poderia, ser um índice tangível. Tal é a fotografia do Jardim de Inverno que , segundo Barthes, realiza ‘a ciência impossível do ser único’. A fotografia da qual se vale para escrever, porque não a mostra. Do mesmo modo que Blanchot, em O espaço Literário, associa de forma mais abstrata e geral a escrita ao ‘fascínio da imagem’, ele também refere esse fascínio pela mãe e o concentra no olhar do menino.” (BELLOUR p.77)

Bellour comenta sobre o livro de Proust destacando no universo fotográfico, um universo pór trás de uma foto. Em Proust, a figura da mãe representa o amor único, o fascínio pela mãe, concentrado no olhar de menino. O retrato de sua mãe é de acordo com ele, um lugar de honra em cima de sua cabeceira. Ao ganhar a foto da atriz famosa, com a qual lê um trecho do texto de Romeu e Julieta, de Shakespeare, diz colocar a foto num lugar de honra, ao lado do de sua mãe. Merrick neste momento abre espaço ao seu amor, dedicado e único. Ele, nesta singela ação de guardar o retrato, nos mostra que é capaz de amar mais pessoas, assim como outras pessoas podem amá-lo; outras formas de amor, além do maternal, também podem existir.

“A foto é como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo, a figuração da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos”. BARTHES p. 54

O Homem Elefante” dialoga diretamente com esta frase de Barthes, já que John guarda consigo o retrato de uma atriz e de uma mulher possivelmente morta. Da fotografia, de acordo com Barthes, a morte é o punctum e o belo é o studium. O punctum, o invisível, “essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto[10]. O studium o palpável, o que segue conceitos. John Merrick foge, devido a sua aparência, do studium. O lado humano que Lynch pretende nos mostrar é, portanto, correspondente ao punctum do protagonista. Lynch  prioriza o caráter de John mais do que sua estética.

“De um lado, o movimento, o presente, a presença. Do outro, a imobilidade, o passado, uma certa ausência. De um lado, o consentimento, à ilusão, do outro, uma busca de alucinação. De um lado, uma imagem que foge, mas que nos prende em sua fuga; do outro, uma imagem que se dá inteira, mas cuja inteireza me despossui. De um lado, um tempo que duplica a vida, do outro, uma inversão do tempo que acaba por desembocar na morte.” BELLOUR. P.84

Bellour ao dissertar sobre a linha divisória traçada por Barthes entre cinema e fotografia, nos faz entender o final escolhido por David Lynch. A morte de John, ao lado dos retratos das mulheres que lhe possibilitaram a possibilidade do amor, nos põe à frente da libertação de um ser humano sofrido, que encontra na morte a tranqüilidade. A foto de sua mãe simboliza a volta ao “amor único” e a foto da atriz, o amor tangível (talvez impossível como o de Romeu e Julieta – John morre logo após ter conhecido o “romance do teatro”), mas talvez também seja representação do amor da amizade, que Dr. Treves lhe dedicava. A morte, o abandono dos choques preconceituosos e o não abandono, o reencontro, talvez, com o colo materno.

“A sentença que pronuncia a morte é também o que vem suspendê-la, virá-la pelo avesso e devolvê-la á vida, ao tempo de uma vida indeterminada; a narrativa se prolonga para substituir a morte por uma força encantadora, de uma plenitude de enigma, lá onde não haveria senão abandono. ” BELLOUR p.13

CONCLUSÃO

Lynch, em “O Homem Elefante” provoca a discussão e a repulsa na sociedade capitalista (londrina vitoriana), na qual “o maior monstro do mundo” (John, por Bytes) nos é mostrado como produto embalado em situação humana degradante. Após tal reflexão, o término do filme, o conceito de asqueroso não é mais o corpo do protagonista, mas a venda e os preconceitos humanos.

“Uma deformação física que aumentava sua cabeça descomunalmente e enchia suas costas de protuberâncias, John Merrick é um retrato alegórico do achatamento visual, ou mesmo invisibilidade social, trazida pelo preconceito. Assim passa pelos nossos olhos a tragédia de uma pessoa que é “coisificada” e perde sua dignidade em função de ser diferente dos demais. Para o mundo John Merrick era um monstro. Para Lynch o monstro são aqueles para quem o monstro é espelho”. POPCORN

O congelamento da imagem do retrato da mãe de John Merrick é o encontro entre o presente e o passado. O que ele foi, produto; e o que ele é, um ser humano em processo de aceitação no meio que vive. É o interior e o exterior. O interior de John, suas virtudes e seus dons sensíveis e intelectuais; e o exterior, o elefante selvagem que aparenta ser. É a frente e o atrás. É o carinho pela mãe (o retrato como lembrança palpável), um passado eternecido na fotografia; e a frente, o possível retorno ao útero materno (com a morte) e a compreensão existencial do filho intrínseca a condição de mãe.

“A foto permanece como a menor unidade decomponível da imagem submetida a seu transcorrer (como fotograma, portanto), e ao mesmo tempo, como a efígie de uma dispersão planetária que a leva a ser em toda a parte e sempre, esse fragmento de iconicidade a circulação das imagens, cujo índice notável representa incansavelmente” (BELLOUR. P. 17)

Seus frames repitidos e contínuos causam uma intensificação na angústia, o espectador se aproxima do jogo de sentimentos que John vive. Com o congelamento da imagem, o efeito de contemplação e fascínio iconográfico despertam uma busca em parar a máquina (cinema) e viver nela. O espectador se coloca no lugar de John e compartilha de suas dores e alegrias. John, de tanto olhar a fotografia, aceita-a como real. A fotografia de sua mãe era o que era de mais aceitável no real que vivia. “A imobilidade da foto é como o resultado de uma confusão perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo[11]“.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. A câmara clara: Nota sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1984

BELLOUR, Raymond .  Entre-Imagens: Foto, Cinema, Vídeo. Tradução de Luciana A. Penna. Papirus. Campinas. 1997

HOWELL, Michael and FORD, Peter. The True History of the Elephant Man. Penguin Books. Dallas, Pennsylvania. 1980

http://www.adorocinema.com/filmes/homem-elefante/homem-elefante.asp

http://www.poppycorn.com.br/artigo.php?tid=1033

http://www.imdb.com/title/tt0080678/plotsummary

FILMOGRAFIA

The Elephant Man“. David Lynch. 1980

Camila de Carvalho Alves é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] SHAKESPEARE. Trecho de Romeo & Juliet

ROMEU – Se minha mão profana o relicário em remissão aceito a penitência: meu lábio, peregrino solitário, demonstrará, com sobra, reverência.

JULIETA – Ofendeis vossa mão, bom peregrino, que se mostrou devota e reverente. Nas mãos dos santos pega o paladino. Esse é o beijo mais santo e conveniente.

ROMEU – Os santos e os devotos não têm boca?

JULIETA – Sim, peregrino, só para orações.

ROMEU – Deixai, então, ó santa! que esta boca mostre o caminho certo aos corações.

JULIETA – Sem se mexer, o santo exalça o voto.

ROMEU – Então fica quietinha: eis o devoto. Em tua boca me limpo dos pecados.

(Beija-a.)

[2] Anexo 01

[3] Anexo 02

[4] Anexo 05

[5] Anexo 03

[6] Anexo 04

[7] Anexo 06

[8] BARTHES, p.129

[9] BARTHES, p.84

[10] BARTHES, p.20

[11] BARTHES p.118

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    carla

    gostaria muito de receber informaçoes sobre a doença pois tenho um filho de 11 anos portador da mesma e vivo em prol de conseguir informaçoes mas nao tenho muito exito abraços

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