O Homem Subterrâneo em Paulo Honório e Alejandro

INTRODUÇÃO

Neste trabalho pretendo utilizar o conceito de “homem subterrâneo” (ou “homem do subsolo”) usado por Dostoiévski e melhor desenvolvido em seu livro Memórias do Subsolo, depois problematizado pelo crítico literário Antônio Candido nas obras de Graciliano Ramos, para comparar o caráter e a construção dos personagens de Paulo Honório [1] e de Alejandro [2] como sendo possíveis exemplos de subterrâneos e pertencendo a este modelo, estabelecer suas relações e diferenças.

Para a confecção deste, procurei identificar as características que demarcassem o que é o “homem do subsolo” para depois assistir aos filmes Escravos do Rancor, de Luís Buñuel, e São Bernardo, de Leon Hirszman, analisando especificamente estes personagens, tentando identificar neles, as características que permitiriam dizer se estão relacionados com o personagem-narrador das Memórias. Para essa análise, li outros artigos em que este conceito é usado comparativamente com outras obras e suas implicações sociais e psicológicas.

Como forma de aprofundar a pesquisa, li críticas e resenhas sobre os filmes e livros envolvidos, tendo em vista que os objetos fílmicos analisados são adaptações de romances –  O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë e São Bernardo, de Graciliano Ramos – e o conceito principal utilizado é de um livro de Fiodor Dostoiévski.

DESENVOLVIMENTO

HOMEM SUBTERRÂNEO

No livro Memórias do Subsolo, conhecido pelo caráter existencialista e por discutir questões de identidade no mundo moderno, o protagonista é um homem da baixa burguesia, aposentado e morador de São Petesburgo. O livro é dividido em duas partes: O Subsolo, em que o personagem narrador se apresenta e expõe seus pontos de vista, e A propósito da neve molhada, onde ele começa a analisar suas lembranças de maneira crítica.

Fazendo uma síntese das características demarcadas por ele ao longo de seu discurso, pode-se dizer que o homem do subsolo reflete um conflito entre

“um ser social, ligado à necessidade de ajustar-se a certas normas convencionais para sobreviver, e um ser profundo, revoltado contra elas, inadaptado, vendo a marca da contigência e fragilidade em tudo e em si mesmo.” [3]

E desse conflito entre o “eu” (subjetividade) e o “mundo” (objetividade), também presente de outras escolas literárias como o Romantismo, surgem os defeitos que justificam o uso do termo “subterrâneo”, com algo que está abaixo da superfície visível do ser.

Os principais detritos deixados no caráter desse personagem são a revolta interior, instabilidade em não saber lidar com a realidade exterior, introspecção como uma fuga e uma visão muito crítica do mundo a sua volta e de si mesmo, sentindo-se culpa pela inadaptação e possuidor de um “desejo profundo de aniquilamento, abjeção e catástrofe” [4].

PAULO HONÓRIO

Personagem principal da obra São Bernardo, livro escrito por Graciliano Ramos. O romance pertence à primeira fase do autor, em que ele procura conhecer melhor a personalidade humana pondo em contraposição: a aparente harmonia social e a parte oculta e tumultuada do ser (CANDIDO, op. cit., p. 97).

Numa perspectiva anti-naturalista, o mundo é reduzido a perspectiva do personagem, em que o contexto reflete o drama pessoal dele. A animalização de Paulo Honório, causada pela luta na vida, o faz ocultar uma parte de si. O desejo por uma vida completa é irrealizado devido a um não conhecimento dos valores essenciais que a formam (CANDIDO, op. cit., p. 104-5).

Criando uma relação direta com a obra de Dostoievski pela sua estrutura em analepse [5], a narrativa de São Bernardo conta a história de um lavrador, que por diversos meios obtém a fazenda onde trabalhava e as mudanças causadas por essa conquista.

Analisando o personagem sobre esta perspectiva, ele revela características que permitem classificá-lo como um homem do subsolo, assumindo que “o drama de Paulo Honório nasce […] da observação de dois processos simultâneos, [o da] formação da riqueza [e o da] deformação da personalidade”.

Na adaptação de Leon Hirszman, ocorre uma “identificação estética entre livro e filme [que] faz de São Bernardo um dos exemplos mais felizes de […] adaptação literária no cinema brasileiro” [6]. O tom seco e duro do livro é passado para o filme, principalmente na fotografia e som, e o aspecto econômico daquele também está presente neste.

Ao longo de várias ocasiões, o protagonista não mede esforços para conseguir o que quer, como exemplificado em sua fala: “não tive remorsos” [7], quando finalmente consegue a propriedade da fazenda, depois de cobrar insistentemente a dívida de seu ex-proprietário – Luís Padilha – falido visivelmente pelo estado do cenário. Isso permite pô-lo como “um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável” [8].

Assumindo uma posição mais elevada como fazendeiro, ele começa a ter que seguir as convenções da classe por motivos das esferas política e social, procurando ser bem aceito no “novo mundo” que está entrando e escondendo o seu lado mais profundo.

Mas por meio de lapsos de violência, essa revolta interna e desejo de aniquilamento contra o mundo exterior são mostrados, como no caso da morte de Mendonça, do espancamento de Marciano e da briga com Madalena.

Paulo Honório apresenta firmeza nas atitudes em que a lógica do capital é facilmente aplicada, porém nem sempre consegue se relacionar bem com seus sentimentos. Isso é muito evidente nas situações após a chegada e casamento com Madalena. Quando está com ela, ele se encolhe, vai para o canto do quadro, perde a luz, a potência; e acaba se comportando mais introspectivamente, subterraneamente.

Como uma pessoa em que os conflitos internos são recorrentes, a própria idéia da formação de seu “eu” é controversa. Em uma situação afirma que alguém “é [assim] porque nasceu [assim]” (citação do filme) e em outra diz que “a profissão que me deu qualidades tão ruins” [9].

Seu estado de inquietude, reforçado pelo repentino amor por Madalena, cria uma deambulação constante dentro do quadro, onde sempre está presente, seja sua figura ou por meio da voz over. Essa curva é crescente e culmina com o suicídio da esposa, situação que faz com que reflita sobre seu passado obscuro.

Então ocorre, por meio da reflexão e escrita, a tentativa de recuperação do controle de sua vida de um “homem [que] era parte do seu ser, não seu ser autêntico” [10]. Luta pela identidade, como se “a todo o momento [constasse nele] a existência de muitos e muitos elementos contrários a isso” [11].

ALEJANDRO

Representação do personagem Heathcliff, pertencente ao romance O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë, feita por Luís Buñuel em sua obra Escravos do Rancor. O roteiro do filme faz um recorte da história do livro, abordando: o retorno de Heathcliff ao Morro, sua tentativa de vingança e a morte de Catherine Earnshaw.

Assemelha-se com o conceito de “homem do subsolo”, uma vez que foge do seu ambiente natural em busca de “um rosto feio, mas em compensação, que seja nobre, expressivo e, sobretudo, inteligente ao extremo” [12] como forma de obter uma máscara social mais agradável, buscando aceitação.

Uma vez mudado (perda da identidade primitiva) e não conseguindo o resultado esperado, devido a sua estabilidade frágil, ocorre a frustração e posterior revolta interior manifestada em evitar o convívio social por exemplo, estando ele quase sempre alheio aos outros integrantes do quadro.

Identifica-se também “uma espécie de surda aspiração à animalidade, à inconsciência dos brutos” [13] nos seus gestos e no tom de sua fala. E segundo o próprio personagem isto decorre do processo de busca de um meio de adequação às várias normas sociais.

O planejamento de sua vingança é um traço do desejo de catástrofe e não conseguir realizá-la, mesmo tendo profundidade emocional para odiar, tem relação com uma maior preocupação em como o contexto pode refletir seu “eu” instável de forma danosa, fazendo com que ele se revele.

Quando está em quadro procura ser uma figura dominante, ativa. Em busca de uma identidade perdida, permanece em movimento no quadro, mas ao ser contraposto fica reduzido, paralisado. Procura não revelar seus sentimentos e dissimula socialmente como uma forma de conseguir o que quer, não sendo muito escrupuloso. Casa-se como forma de agredir Catherine que o abandonou, porém não consegue manter a farsa de amar outra pela necessidade buscar algo próprio, nativo, ou que remeta sua infância.

A perda do que o mantém vivo (“minha alma” como ele se refere), o amedronta mais que a sua morte, pois tem a crença no descanso em paz após a vida. Quando acontece de perder o que mais ama, chega a ponto de ver em um semelhante (o irmão) a imagem de seu desejo.

ANALOGIA ENTRE OS PERSONAGENS

Colocando os dois personagens como figuras semelhantes em relação a sua construção como homens do subsolo é possível agora estabelecer alguns paralelos entre as imagens e personalidades deles.

Em dois momentos decisivos dentro da narrativa, sendo eles a volta de Alejandro e o momento da tomada da fazenda por Paulo Honório, existe uma relação imagética que pode ser feita. Ambos os personagens estão vestidos de preto com chapéu, a noite está chuvosa e as figuras desses protagonistas são colocadas em primeiro plano e os habitantes do local em segundo plano. O encontro é tumultuado e agressivo, mas tem uma resolução não violenta.

A partir do momento da ascensão social desses personagens, representantes do passado, agora em situação inferior, são tratados de maneira hierárquica, assim como eles eram tratados, implantando um círculo vicioso.

A maneira como eles tratam a esposa em primeiro caso é violenta e não muito cordial em oposição à amada [14], com quem eles estabelecem uma relação de subordinação. Sendo a idéia da perda dessa pessoa, um ponto que os assusta, fazendo com que procurem uma fuga dessa verdade, por meio do planejamento de uma viagem ou a visão de uma imagem alucinada.

CONCLUSÃO

Pude concluir que os personagens pesquisados são homens subterrâneos e a partir dessa semelhança podem se estabelecer outras entre eles. Tendo como base o estudo psicológico e a construção de personagens de Dostoiévski e sua influência literária é possível identificar figuras com as mesmas características em diversos tipos de literatura que buscam um aprofundamento na parte oculta da mente dos seus caracteres.

BIBLIOGRAFIA

CALLEGARI, Bruna. Memórias do Subsolo de Dostoiévski. Disponível em: http://www.duplipensar.net/artigos/2005-Q1/memorias-do-subsolo-dostoievski.html. Data de Acesso: 24/06/2009 às 13:20.

CANDIDO, Antônio. Os bichos do subterrâneo In: Tese e Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. p. 95-118.

DUTRA, Sandra Rinco. A ética do subsolo. Disponível em: http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/Subsolo.pdf. Data de Acesso: 24/06/2009 às 14:20.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. 5ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Editora 34, 2006. 147 p.

GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Fernando Cabral Martins (Trad.). 3 ed. Lisboa: VEGA, 1995. 276 p.

MELO, L. A. R. Contracampo: São Bernardo de Leon Hirszman. Diponível em: http://www.contracampo.com.br/74/saobernardo.htm. Data de Acesso: 24/06/2009 às 15:30.

FILMOGRAFIA

ESCRAVOS do Rancor. Direção de Luis Buñuel. México: Producciones Tepeyac e Versátil, 1954. 1 DVD (90 min.), son., preto e branco, legendado. Original mexicano: Abismos de Pasión.

SÃO Bernardo. Direção de Leon Hirzman. Brasil: Embrafilme e Videofilmes, 1971. 1 DVD (111 min.), son., color., áudio original.

Henrique Dias Soares de Barros é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] Personagem-narrador de São Bernardo(1972).

[2] Junto com Catalina forma o casal protagonista de Escravos do Rancor (1954).

[3] CANDIDO, Antônio. Os bichos do subterrâneo In: Tese e Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. p. 108.

[4] Ibidem, p. 109.

[5] Ou retrospecção, processo de volta do discurso a um tempo anterior da história. Ppara mais sobre a questão do tempo ver GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. p. 51.

[6] MELO, L. A. R. Contracampo: São Bernardo de Leon Hirszman.

[7] Citação do filme São Bernardo.

[8] DOSTOIÉVSKI apud CALLEGARI.

[9] RAMOS, Graciliano apud CANDIDO, op. cit., p. 105.

[10] Ibidem, p. 106.

[11] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. p. 16.

[12] Ibidem, p. 56.

[13] CANDIDO, op. cit., p. 109.

[14] No caso de Paulo Honório seria sua esposa mesmo, mas apenas após a descoberta do amor dele por ela.

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