O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012)

por que não só nós dois e os cães de guarda e os vigias noturnos e os guarda-costas?

Por Guilherme Farkas*


Kleber Mendonça Filho, o cômico. Luta de classes, a espera, planos fatiados ao meio, demasiada informação, sons não diegéticos, filme dividido em três partes, metalinguagem, comentários sobre o mundo, sinais de segregação social e, por fim, a escravidão.

Foi com muita expectativa que me relacionei com O Som ao Redor, segundo longa metragem de Kleber Mendonça Filho, diretor pernambucano que já tinha se consagrado com curtas-metragens como Vinil Verde (2004) e Recife Frio (2010). São visíveis vários traços de direção que acompanham os curtas e eclodem agora em seu novíssimo longa. Entre eles podem-se destacar: investigação de uma super-moderna e brasileira segregação social e espacial, cinefilia aguda e algumas pitadas de um horror cômico.

O Som ao Redor nos apresenta um ambiente de indicações e comentários sobre o mundo. São comentários que não buscam um conflito final, um clímax ou uma resolução. Parece-me que é na passagem ao relativo (passo dado pelo cinema moderno de Bresson e Sganzerla) que os personagens pernambucanos de Clodoaldo, João e Bia são representados. Imagens de uma câmera cínica e conflitos de heróis fechados. São tensões tão inconclusas quanto as do próprio diretor, que vive essa mesma realidade, típicas de qualquer metrópole contemporânea brasileira: luta de classes, especulação imobiliária, consumismo neoliberal, domínio da sociedade do automóvel e etc. Que o capitalismo está cheio de contradições e paradoxos, não é novidade, mas que essas aglutinações (aqui por hora parte de uma ficção) sejam apresentadas de forma fílmica, brasileira e por coincidência da cidade do Recife, isso sim é uma lufada no espírito.

O que nasce aqui de forma revigorante é o trato com o som. Além de assinar a direção do filme, Kleber é coautor do desenho de som, transparecendo assim a intenção (rara no cinema brasieliro) de utilizar o som como recurso narrativo. Cinema é som-imagem, imagem-som ou áudio-visão (como percebeu Michel Chion) e não imagem acrescida de um acessório, como muito bem nos alertou Ismail Xavier há alguns bons anos, desde a publicação de “O discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência” em 1977.

Em entrevista cedida à revista eletrônica Cinética em maio de 2011, Kleber diz que apesar do título do filme ser centrado no som, ele mesmo não considera o filme espetacular sonoramente. Modéstia a parte, o filme soa bem, muito bem. O fato do próprio diretor co-assinar o desenho de som do filme, deixa claro que existiu no processo criativo um cuidado especial para com a banda sonora.

Particularmente pude perceber uma característica sutil no som direto, mais especificamente na captação de diálogos. Trata-se de sobras de ambiências com reverberações da própria locação. Podemos perceber a entrada dos diálogos junto com o ruído ambiente. Passa-me uma sensação de evidenciar a presença do som direto no filme (como escolha estética inclusive), mas que cabe aqui, e combinados com sons não-diegéticos criam uma atmosfera singular. Conseguem traduzir no som, o ambiente cheio de tensões e contradições mostrado pelas imagens. As baixas frequências (sons graves) emitidas pontualmente ressoam em nós e criam um clima de suspense. Basta uma vaga noção de psicoacústica para perceber que essas baixas frequências do filme são muito próximas das baixas frequências emitidas pelo nosso sistema nervoso, causando uma reação física no espectador, som interagindo com nosso corpo. Aqui, o som está em perfeita sintonia com a proposta de direção do filme. O som grave (de baixa frequência, entre 20 e 120 hertz) já virou pastiche de filme de terror e suspense, caro ou barato. Isso já nos remete ao medo, e Kleber sabendo muito bem disso, usa em seu favor. Mas o medo aqui não é o mesmo proposto por Kubrick em O Iluminado (1980) ou por Carpenter em Halloween (1978). O medo, aqui, é índice da luta de classes na modernidade, ou super-modernidade como preferem alguns autores. Problematizado em uma conjuntura de fatores, sociais sobretudo, onde o bairro de Setúbal (locação do filme) na cidade do Recife é apenas a ponta do iceberg.

Se em Recife Frio (2010) já percebemos o interesse de Kleber pela exclusão social através da especulação imobiliária e do capital como agente de planejamento urbano, em O Som ao Redor isso é levado ao extremo. O medo está difundido na classe média brasileira, e é através dele que essa parcela da sociedade se relaciona com as cidades, aqui, por hora, a metrópole do Recife. É possível comparar a representação da classe média de Recife com a classe média paulistana representada em Trabalhar Cansa (2011) de Juliana Rojas e Marco Dutra. Duas representações tão distantes (Recife – São Paulo), mas faces da mesma moeda, frutos da mesma noção de desenvolvimento, da mesma sensação de medo e segurança. Kleber consegue canalizar em seu novo longa uma angústia comum a muitos realizadores (incluindo ele mesmo) e a transpor para o campo fílmico, em específico neste texto, o campo do som.

* Guilherme Farkas é graduando em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Fernando Motta

    Viva Gui! Belo texto!!
    Abç

  2. Author Image
    Carla Caffe

    Gui,

    De boa mira o seu texto, gostei. O som do filme, a angustia, o medo do brasileiro, nossa desigualdade social. E tudo fica muito a flor da pele. Adorei o filme, bjo

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