Amantes (James Gray, 2009)

Este novo filme de James Gray funciona como uma espécie de bipolaridade estrutural que parece, aos poucos, ir contagiando todos seus entornos. Seja o humor inconstante de seu protagonista, um mais do que fragilizado Joaquim Phoenix, seja a indecisão desse protagonista perante duas mulheres bastante distintas, seja ainda pela instabilidade de tons em que o diretor constrói seu filme.

Através de uma mise-en-scène quase Sirkiana: clássica, tanto em seus movimentos como em sua busca por uma dramaticidade digna e acima de tudo real. A câmera de Gray, talvez mais discreta que a de Douglas Sirk, às vezes se atreve mesmo a uma certa dilatação, filmando longas sequências em tempo real que reforçam ainda mais um certo sentido naturalista a toda essa realidade dramática que aos poucos o diretor vai nos envolvendo. Isso acontece principalmente quando Michelle (Gwyneth Paltrow) e Leonard (Joaquim Phoenix) estão em cena, seja na primeira vez em que se conhecem, seja na tensa cena de sexo no terraço. Gray parece que vai subvertendo a idéia de uma mise-en-scène clássica norte-americana usando como referência a própria filmografia de seu país. Podemos pensar em Hitchcock (a “entidade” loira que Leonard persegue), podemos pensar em Woody Allen (a estrutura labirintica-impulsiva em que o protagonista vai se afundando)

“Two Lovers” nos remete a força maior do cinema: transformar uma simples e mais do que comum história em uma espécie de tratado sobre a universalidade de certos temas. No caso, o impulso, protagonizado por uma loira (Paltrow), bastante convicta de sua sensualidade porém sofrendo de uma carência quase patológica. Contrapondo-se ao convencional, protagonizado por um reconfortante ambiente familiar de classe média, que tem na imagem de uma bela e segura morena (Vinessa Shaw) sua perfeita resolução.

Nosso protagonista, uma vez seduzido pelo impulso, se vê dividido entre esses dois paradigmas. Leonard é um homem marcado pelo tempo e com cicatrizes afetivas que ainda hoje o levam a idealizar situações e mulheres que quase sempre terminam com uma ação auto destrutiva. Ele é uma espécie de analfabeto sentimental, como bem defini Ingmar Bergman em seu “Cenas de um Casamento”. De um lado existe a segurança e o conforto na imagem de Sandra, a filha do sócio de seu pai, um casamento aqui levaria tanto a estabilidade familiar-religiosa, como também seria bom para os negócios. Do outro lado existe Michelle, sedutora e imprevisível, misteriosa em vários sentidos. A escolha moralmente certa nos levaria ao nome de Sandra. Mas Leonard, um homem criativo e de pouca adaptação ao círculo familiar – ainda que esse círculo revele uma intensa influência em sua pessoa, especialmente pela figura da mãe – não parece ser um homem de escolhas corretas.

Fica bastante claro que a felicidade de Leonard é quase sempre infantilizada, suas brincadeiras com a atendente da loja de seu pai, seu “rap” improvisado dentro do carro, seu plano impulsivo de fuga com Michelle. Mas será mesmo que existe uma diferença entre a felicidade infantilizada e a felicidade “madura” ou “real”? Felicidade é apenas felicidade. Na escadaria do prédio, quando a mãe de Leonard, que parecia saber de tudo simplesmente por “ser mãe”, se despede do filho e pede para que ele tenha cuidado, Leonardo olha em seus olhos e diz “Eu estou feliz”. A felicidade agora não é mais infantilizada, mas simplesmente verdadeira, ainda que tenha como mote um impulso infantil e inconsequente.

Felicidade essa inclusive que dura apenas alguns minutos. Depois de mais um “coração partido”, Leonard parte em uma caminhada simbólica. Nesse momento, tudo opera para deixar claro seu papel de marginal. Solitário na rua, enquanto pessoas reunidas, alegres e bêbadas passam ao seu redor ou se destacam ao fundo, o senso auto destrutível, inevitável como sempre, é o que resta. Mas ele se lembra de Sandra, ele olha as luvas que ela o deu de presente, quando ela mesma disse “eu quero cuidar de você” e resolve, outra vez, se agregar aquela ambiente que obviamente não é o de sua natureza. Na sala daquele apartamento tão bem filmado por Gray, em uma festa de ano novo tão típica, Leonard se senta, desajeitado, ainda vestindo seu casado, fora de sintonia em todos os sentido. Sua mãe sorri, reconhecendo o filho de volta. Reconhecendo, inclusive, essa nova tentativa de se agregar. Se a felicidade agora é tão intensa ou “real” quanto aquela anterior, nunca saberemos. Mas sabemos, acima de tudo, que o indivíduo aqui é somente presa de certas forças. Leonard é o típico Lobo da Estepe, alguém solitário que é capaz de levar uma vida quieta e tranquila, ainda que desintonizado desse ambiente, mas que, atiçado por qualquer gênero de intensidade, pode colocar tudo e qualquer coisa a perder. É claro que nesses casos nunca existe a escolha certa e a escolha errada, apenas a resolução de que, apesar de qualquer esforço, ainda somos reféns dessas forças intuitivas, destrutivas e ainda assim dignas.

A coragem de James Gray em realizar um filme aonde seu protagonista é simplesmente a vítima dessas forças, sendo raros os momentos em que o mesmo tem qualquer tipo de controle sobre suas ações e os objetos-situações pelos quais é seduzido, expões a fragilidade de um homem contemporâneo muitas vezes convicto de seu destino, mas que no final das contas é tão suscetível ao acaso quanto qualquer outro ser vivo desse planeta.

Arthur Tuoto (http://www.arthurtuoto.com) trabalha com vídeo, fotografia e novas mídias. Conta com exibições em mais de 40 festivais e exposições no Brasil e ao redor do mundo. Já publicou textos na Revista Muro, Revista Zoom e Revista Juliette.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta