Occupy Love (Velcrow Ripper, 2012)

Occupy Love: Sonhando uma nova realidade e realizando-a com amor

Por Thiago Rocha*

Tudo começou com a Primavera Árabe, no final de 2010. Depois, a partir do grande estrondo provocado pela música envolvente das possibilidades, as orquestras da utopia passaram a se espalhar por todo o planeta, fazendo com que aqueles que já sabiam dos problemas do mundo e sentiam que as coisas deveriam mudar acreditassem de fato que isso é extremamente possível se se tem um envolvimento emocional, uma vontade coletiva forte o suficiente para tanto. Foi com esse espírito, em suma, que surgiram o movimento dos Indignados na Espanha, o Occupy Wall Street em Nova Iorque e todos os Ocupas que daí derivaram nos cinco continentes. Todos eles, na verdade, conectados por uma grande ideia e motivados por uma causa comum: construir um grande laboratório de ‘impossibilidades possíveis’ em meio a todo o ambiente de descrença capitalista na própria humanidade que acabamos construindo entre nós e ao nosso redor e terminamos por tomar como ‘natural’ nos últimos séculos. Um ‘laboratório’, neste sentido, cujo ingrediente básico trabalhado por todos é o próprio sentimento fundador de qualquer relação genuinamente social: o amor.

É a partir deste fundamento, portanto, que o diretor Velcrow Ripper se lança em uma jornada no que ele chama de “revolução do coração” para entender o que esses movimentos – em especial, o Occupy Wall Street – têm feito (e como o têm feito), a fim de averiguar “de que maneira a crise pela qual estamos passando poderia se tornar uma história de amor”. Ou seja: de que forma exatamente podemos transformar esse sistema caduco, ineficiente, autodestrutivo e negador da própria vida em uma sociedade cooperativa, verdadeiramente significativa para todos – incluindo, naturalmente, os não-humanos. O filme tem a duração de 1h 20min., e embora o tempo seja razoavelmente curto para tratar de um tema tão complexo, ele sem dúvidas consegue passar de forma tão clara quanto inspiradora a mensagem central dessas mobilizações: de que um outro mundo não apenas é absolutamente possível, mas que, acima de tudo, ele precisa ser construído agora mesmo, por todos nós em conjunto.

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É assim que Velcrow faz um oportuno passeio revolucionário, partindo da Primavera Árabe, passando pelos indignados espanhóis, até mergulhar mais especificamente no Occupy Wall Street durante o acampamento de dois meses no Zuccotti Park, a fim de entender como essas novas alternativas estão sendo construídas. Neste caso, além dos próprios manifestantes, ele conversa com ativistas das mais variadas frentes (em especial, ambientalistas), biólogos, economistas, zen-budistas, líderes espirituais de diferentes tradições, cientista políticos, estudiosos de movimentos sociais, poetas, artivistas, futuristas e os mais diversos militantes da causa do amor e da vida, que só se realiza plenamente através da convivência harmônica com a natureza.

Velcrow participa também da Conferência do Povo sobre Mudança Climática na Bolívia para vivenciar um pouco a própria realidade de um dos primeiro países a eleger um índio como presidente da república, visita as areias betuminosas de Alberta – o maior projeto industrial do planeta – para conversar com os nativos dali e mostrar toda a destruição que o espírito capitalista é capaz de provocar, visita algumas comunidades alternativas que se estruturam a partir de uma relação extremamente amorosa com o mundo e relaciona tudo isso com o que os movimentos recentes vêm fazendo, sempre girando em torno do seu questionamento inicial – de como transformar essa crise numa história de amor. É uma abordagem, para alguns, exageradamente otimista – e, para outros ainda, um tanto ‘ingênua’. Mas, o que nos resta nesse momento senão superar todo esse pessimismo de tantos séculos – disfarçado sempre de um pretenso ‘realismo’ altamente paralisador – a partir do comprometimento com a realização das nossas utopias mais profundas?

Neste sentido, a ideia geral do documentário é mostrar que enquanto o nosso sistema econômico nos impõe o tempo inteiro a perspectiva de que mais para você significa necessariamente menos para mim, uma relação de amor verdadeiro parte do princípio de que mais para você significa precisamente mais para mim também: que a sua felicidade é a minha felicidade, que eu estou em você tanto quanto você está em mim, e que, desta forma, necessitamos, por meio da expansão da nossa consciência para além da ótica individualista à qual estamos atrelados, nos comprometer com uma forma de organização social que se estruture ao redor dessa mesma lógica do amante para superar a clara crise existencial pela qual estamos passando. E o mais legal é que o próprio formato de distribuição do filme segue bem a proposta desses movimentos: ao invés de apenas exibi-lo friamente em uma sala de cinema onde as pessoas vão consumi-lo a partir de uma ótica um tanto individualista, fechado na sua vivência particular, independente dos outros, abre-se a possibilidade para que qualquer interessado possa organizar uma exibição na sua comunidade (preferencialmente grátis e em praça pública) para que o próprio ato de assistir ao filme já represente uma experiência coletiva bastante intensa, bem no sentido do que os Ocupas vêm se propondo a realizar.

Neste caso, o caráter inspirador do documentário, para além do grande potencial de convencimento individual em relação à causa, tem grandes chances de se tornar algo concreto e extremamente produtivo do ponto de vista coletivo. Na primeira exibição que organizamos em Aracaju, por exemplo, no início de junho, embora não tenhamos conseguido fazê-lo em praça pública, adaptamos o auditório que nos foi cedido – substituindo as cadeiras por cangas no chão e estimulando as pessoas a levarem comida para compartilhar, por exemplo –, e em seguida tocamos um debate bastante interessante, do qual surgiu, quase que naturalmente, a ideia de criar o “Ocupa Aracaju” – um grupo dedicado a colocar em prática todos esses princípios que emanam desses movimentos, de forma amplamente inclusiva e horizontal.

Dois dias depois, coincidentemente, surgiram os protestos em São Paulo que logo se espalharam por todo o país, e isso com certeza deu um gás bastante importante ao grupo recém-criado, que passou a se reunir presencialmente para discutir questões pertinentes referentes aos protestos e para tentar desenvolver ações conjuntas em várias frentes: levar “artivismo” para as manifestações, promover assembleias gerais pela cidade, realizar ocupações temporárias em diferentes comunidades numa abordagem lúdica para fortalecer os laços dos indivíduos entre eles mesmos e com o seu próprio espaço etc. – o que vem sendo construído aos poucos. Em resumo, por mais que a criação do grupo pudesse ter acontecido independentemente da exibição do filme, sem dúvida, todo o cenário que ele retrata e a maneira como o faz contribuíram bastante para impulsionar as pessoas ali a tentar fazer algo parecido. Mas entremos um pouco mais a fundo na difusa ideologia que está por trás de toda essa concepção dos Ocupas.

Neste sentido, a primeira coisa que se pode dizer dela é que se trata de um confronto simbólico à realidade social existente a fim de mostrar infinitos outros caminhos que a humanidade poderia se propor a seguir. Pois a verdade é que as crises capitalistas representam um fenômeno claramente cíclico, uma contradição já bastante inerente à própria lógica do sistema ao qual todos nós estamos inevitavelmente atrelados, e embora em cada momento específico cada uma dessas crises se expresse em diferentes graus e com determinadas particularidades, as justificações dadas pelo status quo são normalmente as mesmas, sempre ancorando-se no argumento geral de que não, não é possível que as coisas sejam diferentes: o capitalismo existe porque é uma expressão quase natural da própria ‘natureza humana’ (pretensamente egoísta), ele é bom porque representa o máximo que o homem pode conseguir extrair de si mesmo, e ele é melhor ainda porque, sem ele, a única alternativa que nos resta é uma ditadura socialista. É assim, portanto, que somos de alguma forma levados a conformar-nos com a realidade disponível: afinal, de acordo com este pensamento, a realidade é assim justamente porque ela é ‘real’.

Só que é precisamente para se rebelar contra essa descrença dos humanos em si mesmos e dotar a realidade geral de infinitas outras possibilidades, de mais imaginação proativa, por assim dizer, que surgem esses movimentos, normalmente de modo espontâneo, a fim de ampliar a concepção de todos nós sobre tudo que nos rodeia e nos fazer ver que nada é definitivo ou inevitável, que tudo depende da vontade conjunta, criativa, de superar os problemas que nós mesmos acabamos impondo à vida coletiva. O Occupy Wall Street, neste sentido, como resultado direto da crise de 2008 nos Estados Unidos, é uma grande expressão um tanto mais indireta de uma insatisfação geral que tomou conta de todo o planeta pelos mais diversos motivos – em última instância, convergentes no que se referem às consequências geradas pelo capitalismo global, independente do modelo político a ele atrelado em cada lugar e da realidade social que emana dali –, uma clara reação a esse pensamento conservador que só se alimenta da exploração e da desigualdade, e que serve, em última instância, para manter-nos sempre distantes uns dos outros, proliferando o tempo inteiro uma concepção de individualismo tão irreal quanto perversa.

Em termos gerais, é possível dizer que a inspiração do Occupy Wall Street é de origem um tanto anarquista. Porém, é também muito mais do que isso. Cansados do pensamento dialético que sempre almeja uma síntese, ainda que temporária, os manifestantes decidiram – talvez mesmo inconscientemente – apegar-se a uma tendência muito mais ‘complexa’, por assim dizer: extrapolar a segregação da luta social ancorada em ideologias fechadas que não permitem uma relação construtiva com aquilo que lhe é estranho; e superar igualmente a fragmentação das causas em mobilizações limitadas e isoladas – por mais que num sentido mais amplo elas resultem do mesmo problema sistêmico –, a fim justamente de instaurar o dialogismo polifônico que permite que todos se juntem em torno de um mesmo objetivo – uma sociedade mais justa, mais livre, mais igualitária, mais fraterna, mais amorosa – sem necessariamente gerar uma fórmula reprodutível qualquer. É a ideia de que tudo está em tudo ao mesmo tempo; de que, independentemente do grau, todos somos vítimas do mesmo fenômeno; de que a verdadeira luta social pode ser resumida, de modo simplificado, à relação dos 99% (a população em geral) contra o 1% que controla tudo, do capitalismo financeiro que dita os rumos da economia mundial aos governos do planeta inteiro.

Foi assim que o Occupy Wall Street, por exemplo, decidiu ocupar não apenas uma praça pública no coração do capitalismo global, mas a imaginação de tantas pessoas quanto possível. Em suma: a própria realidade compartilhada por todos através da extrapolação do espectro político formal e de todas as dicotomias baseadas no pensamento racionalista que limita a realidade (e todas as suas possibilidades) simplesmente ao que conseguimos ver. E o que é mais revolucionário aqui é que essa nova tendência acaba trazendo tudo para os meios, para o presente, para o fazer, juntamente com a eliminação de qualquer tipo de intermediário entre nossas vidas e a adoção da horizontalidade como princípio fundamental de todas relações. E é este precisamente o compromisso básico daquilo que se convencionou chamar de “política prefigurativa”: a ideia de que o mundo só se muda no presente, prefigurando claramente o futuro que se quer tornar realidade o quanto antes. No fim das contas, duas grandes características emergem desse ambiente constituído com base no amor coletivo: 1) a mediação tecnológica usada em prol da completa ‘desmediação da vida’; 2) a ‘carnavalização da política’.

Quanto ao primeiro aspecto, é muito claro que essas possibilidades tecnológicas mais recentes não só têm dotando os indivíduos de certo ‘poder’ individual e coletivo muito grande, por meio da ampliação da sua voz política, mas, acima de tudo, elas os fizeram perceber que este ‘poder’ resulta precisamente da capacidade fundamental de organizar-se para conquistar novamente a praça pública – em oposição à tendência mais geral de isolar-se e manter-se numa atuação crescentemente virtual –, onde as relações acontecem de fato e onde o amor brota como consequência mais natural. E foi justamente essa grande ‘descoberta’ (em relação às possibilidades da internet de transportá-los de volta ao mundo real), ou ‘redescoberta’ (da sua condição humana em contato direto com todos os outros), em suma, que fez com que esses indivíduos indignados com o sistema político-econômico ao qual estão vinculados percebessem o grande potencial que eles tinham, em conjunto, de viver a sua grande utopia ali mesmo, sem depender de nenhum intermediário (tecnológico, institucional ou mesmo temporal), ocupando a realidade no exato momento em que suas vidas estão acontecendo. É nesse contexto, em suma, que os aparatos tecnológicos deixam de estar localizados entre os indivíduos e passam a estar ao lado destes – ou, mais especificamente, passando das suas mãos para seus bolsos num movimento ininterrupto.

E aqui, enfim, surge o segundo aspecto, o fenômeno da ‘carnavalização da política’: a transcendência da concepção prometeica, focada necessariamente no futuro, inerente ao pensamento político formal (de direita ou de esquerda), em prol da intensa vivência do agora por meio de uma abordagem dionisíaca do mundo, da consciência de que cada um só existe plenamente perante o outro, ligados por essa conexão inexplicável que é o próprio amor; de que é no reconhecimento mútuo da igualdade que a liberdade de todos é potencializada; de que esses elementos são claramente intensificados por meio do riso democrático que culmina na celebração da vida no seu mais alto grau como uma grande obra de arte coletiva.

Afinal, o que é o carnaval popular tradicional, senão a festa do povo, pelo povo e para o povo, o momento em que todos são tão livres, iguais e solidários quanto se pode ser? O momento do radicalismo democrático do riso, em oposição à seriedade autoritária do Estado? O momento mais anárquico da existência social, em que todos os tabus são quebrados e todos os “não pode” são rompidos para que a grande utopia conjunta se torne a mais pura realidade? O momento da relativização completa de todas as regras que normalmente tomamos como quase ‘naturais’, com a total inversão destas e a sua consequente superação através da arte e de elementos como a paródia e a ironia, por exemplo? O momento da intensa vivência do presente já prefigurando o que o futuro deverá ser em breve? No fim das contas, é essa grande energia que nos conecta de forma potente com tudo e com todos ao mesmo tempo – com todo o cosmos, em suma –, em oposição ao grande distanciamento que a frieza mecânico-racional sempre tende a nos proporcionar, ao negar de modo quase irresponsável o forte aspecto emotivo da nossa condição humana a fim de isolar cada indivíduo em sua própria cápsula, mantendo-os desconexos de todo o resto.

É tudo isso, portanto, que tem levado esses manifestantes a superar de maneira radical o isolamento proporcionado pela mediação tecnológica, a passividade diante da mediação da democracia representativa e o conformismo a respeito da mediação de um presente sacrificado que serve apenas como ponte para que determinadas realizações possam ocorrer num futuro abstrato – um ‘sacrifício’ sempre justificado pela pretensa impossibilidade de que as mudanças aconteçam já, neste exato momento, o que faz com que, tradicionalmente, os benefícios esperados acabem sendo transferidos sempre para gerações seguintes hipotéticas que nunca são alcançadas de modo pleno. Só que agora, para além desse pessimismo em relação ao presente, a luta política está comprometida com uma causa um tanto distinta: os fins só existem se já estiverem contidos nos meios, refletindo os princípios.

Em outras palavras: se o nosso sonho é o de construir uma sociedade estabelecida o máximo possível a partir da conexão amorosa entre todos os seres e a natureza como um todo, então ela só será realizada de fato se desde o ponto de partida todos nós já estivermos comprometidos em ocupar o mundo inteiro e todas as relações que emanam dele com o próprio amor que nos funda e nos sustenta. Se, como diria Raul Seixas, sonho que se sonha junto é realidade, esse sonho só é capaz de se realizar verdadeiramente se cada um de nós, sonhadores, estiver fortemente conectado com todos outros através do mais puro e intenso amor coletivo.

  

*Thiago Rocha é mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e autor da coleção de quatro livros sobre o Occupy Wall Street (no prelo) intitulada “Reocupando a vida e reconstruindo a realidade”, cujas bases gerais encontram-se resumidas neste texto.

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