“Sem Título” (Caio Polesi, USP, 2004)

Confira o curta “Sem Título” que problematiza os limites entre arte contemporânea e vida.  O filme contou com a colaboração de alunos do curso de Artes Visuais da USP e teve como locação o pavilhão da Bienal de Artes de São Paulo.

Por Nayton Barbosa*


RUA: O curta trata da exposição humana, como surgiu a essa ideia e vontade de realizar um projeto assim?

Caio Polesi: Veio da visita a uma exposição de instalações artísticas montada em um instituto financiado por impostos de um banco. Entre as obras, havia em particular as de Henrique Oliveira: construções de madeira formando passagens penetráveis, túneis e relevos, amplos, arteriais e carcinogênicos. Como é comum no caso de instalações, na maioria das obras era difícil traçar o limite entre o que é representação e o que é vida, e daí que seria engraçado se uma pessoa se visse numa situação onde essa distinção confunde-se.

RUA: Durante o curta há um ruído que acompanha todas as cenas, qual foi o intuito da inserção desse som?

C.P.: A ideia “pessoa se vê numa instalação e não se sabe se faz parte dela ou não” necessita de um cenário que é de fato uma obra de arte. Tal obra foi criada pela artista plástica Patricia Osses e foi ela que concebeu o mecanismo perverso ao qual é submetido o protagonista: um projetor de slides lança automática e incessantemente uma sucessão de imagens de recortes de jornal sobre ele, que não as vê, mas é apenas ofuscado pela luz; montado num pilar além do limite entre obra e exposição, o protagonista não pode chegar até o aparelho. Fruto de uma linha de trabalhos artísticos que já transitava em meios audiovisuais, a criação de Osses trouxe ao filme esse elemento sonoro que se mostrou muito proveitoso, o ruído de mudança de slides, e que foi reforçado a ponto de se tornar o elemento condutor da narrativa, marcando os traços da representação fora e dentro do filme — o início, o fim, o corte da montagem —, dentro de uma mesma sessão de tortura, afim de frisar, talvez, a violência presente em todo ato de representação.

RUA: Houve algum tipo de instruções ao ator principal ou uma direção de atores específica?

C.P.: Por confiar no ator principal, Paulo Federal, e por despreparo meu em dirigir atores, deixei-o bem livre para criar a atuação, a não ser por indicações ridículas durante o ensaio, como “faça de um jeito clownesco”, às quais ele protestava ou sabiamente ignorava. Com a precariedade do ensaio, durante as gravações tive que apelar para as formas mais equivocadas de direção de atores, do tipo “agora fale com mais ênfase”, por ignorar na época o básico da arte do ator. Na verdade, em muitos momentos foi ele quem dirigiu a mim como diretor, quando via que me exaltava demais. O filme perdeu muito de sua força por eu não ter conseguido dirigir bem os atores, e só deu certo porque Federal conseguiu no meio daquele caos manter até o fim a ambigüidade da situação do personagem.

RUA: Um dos observadores da obra se indaga: “Isso é um movimento de afirmação ou negação?”. A pergunta agora é: O seu curta é um movimento de afirmação ou negação da arte moderna?

C.P.: O filme que eu fiz vai contra tudo isso que está aí. Contra tudo o que vemos diariamente nos cinemas, nas tevês, no mercado especulativo, no complexo midiático, em digestivos culturais como este. É claro que é um filme para poucos, certamente não haverá, entre os leitores desta revista, dita universitária, quem seja capaz de compreendê-lo, testemunhando o lamentável estado da cultura neste e em outros cantos do Ocidente e alhures. Não subscrevo ao enredo enfadoso segundo o qual seria função do artista explicar sua obra. Estou farto de platonismos. É patético como a essa altura questões como essa ainda são levantadas. Trata-se, é claro, de um dispositivo pan-óptico tornado pivô de claro apelo ao semântico como artifício para deslocar a concepção de re-pres-entação empossada no quatrocento, ou seja, a imagem como âncora alçada primeiro a epistemologia e por fim a valor-ação, levado ao paroxismo não dualista, gerativo e autorreducionista. Mas, enfim, de que adianta o diálogo com os contemporâneos?

RUA: Quais foram às dificuldades de gravação?

C.P.: Erguer uma exposição inteira foi um trabalho obviamente megalomaníaco para a escala de produção de um filme como esse, um exercício de curso de cinema. A pouca experiência e muita afobação levaram a vários atropelos. Por exemplo, durante a gravação, o cenário da instalação chegou a desabar sobre o ator e a equipe. Mas acho que foi tudo perdoado! (swagatgrocery) Ao invés de filmar em uma exposição já montada, fomos seduzidos pelo maravilhoso espaço do pavilhão da Bienal no parque do Ibirapuera, cedido pelo Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo, e pela grande liberdade que ele nos dava. Gastamos muito do nosso entusiasmo estudantil, alavancado pela produtora Maria Gutierrez, produzindo e desproduzindo, sem verba alguma, tudo nesse espaço, contando apenas com os recursos materiais fornecidos pela Universidade, que são consideráveis, e a colaboração da equipe com a qual estou em dívida até hoje.

RUA: Como se deu a criação do cenário por parte da direção de arte?

C.P.: Integrantes do curso de artes plásticas (hoje, artes visuais) se mesclaram à equipe do curso de audiovisual do qual fazíamos parte. Além da instalação criada por Patricia Osses, todo o layout da exposição teve que ser pensado por Danilo Volpato e Tiago Marconi. Com restos de materiais achados no espaço do MAC, os então estudantes de artes plásticas criaram obras do nada para preencher o vasto espaço do pavilhão. Fizemos, de fato, uma mini-Bienal!

RUA: Qual foi o papel da universidade na sua formação e no processo de produção desse curta?

C.P.: Apesar de ter entrado no curso num momento em que ele passava por mudanças e experimentos curriculares (a fusão dos antigos cursos separados de Cinema e Vídeo e de Rádio e TV em um único curso Superior do Audiovisual), minha experiência, mesmo acidentada, tanto dentro do curso quanto na universidade como um todo, foi inegavelmente fundamental para minha formação profissional no campo que atuo até hoje, de produção audiovisual.

*Nayton Barbosa é graduando do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e editor responsável da seção Curtas na Revista Universitária do Audiovisual (RUA).

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta