A verdade e questão da culpa em Procurando Elly
Por Fernanda Sales Rocha Santos*
Em Procurando Elly (Darbareye Elly, Asghar Farhadi, 2009), assim como no aclamado vencedor do Oscar A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, Asghar Farhadi, 2011), articula-se a questão da impossibilidade de acesso à verdade, tanto pelas personagens quanto pelo espectador. Partindo de um fato concreto, o desaparecimento da professora Elly, inicia-se uma transação fluida de culpas e mentiras. A verdade impossível dos fatos se metaforiza nas questões: “Onde Elly está?” e “Quem tem responsabilidade sobre tal incidente?”. O tema da culpabilidade ganha força no enredo. É impossível alcançar a inocência de qualquer personagem, até mesmo das crianças – que em determinado momento são cúmplices dos pais em uma “pequena” mentira. Ao mesmo tempo, sem acesso à inocência, também não há acesso ao polo oposto, ou seja, a culpa completa. Valores e discursos morais se misturam com a intencionalidade de ação de cada personagem diante do que pode ter sido um mero acidente.
Um grupo de amigos casados se reúne para passar um fim de semana na praia. Sepideh, uma das jovens esposas, convida a professora de sua filha, Elly, para acompanhá-los, em vistas de apresentá-la para seu amigo, Ahmad, que acabou de se divorciar. Elly, no segundo dia de estadia, subitamente desaparece. O desaparecimento dela vincula-se à possibilidade de morte e, a partir daí, é tratado como uma catástrofe, ou seja, um incidente trágico. Sem evidência concreta de como ocorreu o desaparecimento, possibilidades são desenhadas na narrativa, sempre esbarrando em elementos que conduzem a incapacidade de superação do problema. A situação angustiante causada pelo desconhecimento do paradeiro de Elly gera uma constante transferência de culpa entre as personagens. Todos, em algum momento, mentem ou escondem informações para, na maioria das vezes, pouparem outra pessoa ou evitarem uma situação desagradável. São comportamentos mentirosos sutis, naturalizados, que visam um bem estar, mas que induzirão um mal-estar maior. Como, por exemplo, a brincadeira de chamar os recém-conhecidos, Elly e Ahmad, de recém-casados. Ou, quando Sepideh esconde a mala de viagem de Elly para fazê-la permanecer com o grupo.
A principal personificação do sentimento de culpa é Sepideh. Ela, através de ações que, a princípio, considerava um bem, torna-se o maior alvo de acusações. Diante disso, confusa e carregando uma responsabilidade na qual no início não era consciente, começa a padecer, fica rouca, vomita. Apanha do marido que, em um acesso de raiva, desconta nela o absurdo da situação. É importante pontuar que existe o cenário da cultura iraniana, na qual há um discurso de conduta moral muito forte e isso certamente é um dos pontos do longa. Todavia, no filme de Asghar, os valores transcendem a esfera cultural e acessam o domínio de questões morais maiores, envolvendo também sentimentos humanos gerais como o medo, vergonha e a já comentada, culpa.
Apesar da exploração de tais sentimentos e noções morais, Procurando Elly, está muito longe de ser um melodrama. Tanto na própria dramaturgia quanto nos artifícios fílmicos não há indicação para um entendimento melodramático de mundo (por exemplo, não há uma trilha musical carregada). Pelo contrário, há o realismo próprio do cinema de Farhadi, presente nas interpretações, na decupagem e, de forma mais enraizada, na narrativa. A noção de certo ou errado que é fluida e dependente da intencionalidade das ações das personagens já indica que o espectador não irá “torcer por um herói” e muito menos haverá um “vilão”, um personagem totalmente responsável pela catástrofe. Está é a chave do filme.
O realismo aplicado tanto em Procurando Elly quanto em A Separação se pronuncia diante da dicotomia entre realidade e verdade. O quão mais realista é o filme, mais distante de uma noção maniqueísta – do limite entre certo e errado – o longa estará, o que nos afasta de supostas “verdades” vinculadas a um juízo de valor. O mais peculiar nesses dois filmes é justamente seus temas e enredos girarem em torno da busca da verdade de situações na tentativa, infrutífera, de se encontrar responsáveis pelos danos causados e categorizar o mundo. As estórias articulam-se intrinsecamente com a noção de mundo que a forma fílmica passa: um mundo confuso, onde os seres estão à mercê da relatividade do fato. Diante disso, o trabalho com a dramaturgia é excepcional: as personagens crescem em realismo quanto menos conseguimos embutir nelas um valor moral. E nós, como eles, nunca teremos respostas claras.
Vinculados a essas questões, elementos imagéticos e sonoros recorrentes tanto em Procurando Elly, quanto em A Separação, podem ser interpretados por um viés metafórico. Em A Separação o vidro adquire um aspecto importante, de modo que inúmeras vezes ele se interpõe entre a câmera e as personagens. Janelas e portas translúcidas indicam ser impraticável uma visão completa e real dos fatos para se emitir uma sentença, um veredicto. Aquela antiga hipótese que diz algo como o quanto mais perto se chega da verdade mais longe dela se fica, é aplicável ao filme. Já em Procurando Elly a figura e o som constante e angustiante do mar durante quase todo o filme, parece, a meu ver, envolver as personagens e o espectador em um fluxo de fatos impossíveis de serem analisados, um fluxo sufocante, onde todas as partes envolvidas definham sem obter respostas.
*Fernanda Sales Rocha Santos é graduanda em Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Editora da Revista Universitária do Audiovisual (RUA).