Homens e Deuses (Xavier Beauvois, 2010)

João Paulo Capelotti*

Cartaz nacional do filme "Homens e Deuses"

Homens e Deuses é um filme lento e contemplativo. Mas, longe de ser uma pura opção estética de seus realizadores, como contraposição aos longas de cortes rápidos e ação incessante dos blockbusters, a composição dos quadros e do ritmo, aqui, serve claramente a um propósito: acompanhar a visão de mundo e o timing de um mosteiro na Argélia, em meados da década de 90.

Algum conhecimento prévio talvez facilite a compreensão da trama. Em 1995, a ex-colônia francesa encontrava-se em meio a uma sangrenta guerra civil. Extremistas islâmicos e o exército leal a uma ditadura corrupta se enfrentavam, ainda sob os escombros da emancipação política da França, em meados da década de 1970. O norte da África não havia escapado à sina do resto do continente, de ter servido de quintal para as tardias pretensões colonialistas da Europa, no apagar das luzes do século XIX.

Em um vilarejo pobre do interior do país, monges franceses trapistas (1) vivem pacificamente e mantém uma boa relação com os habitantes dali. Mantendo-se graças à sua própria horta, à venda do mel que produzem em seu apiário e aos carneiros de seu rebanho, os monges prestam atendimento médico à população, escrevem cartas e mantém um diálogo respeitoso com as lideranças locais. O chefe do mosteiro, Frei Christian (Lambert Wilson) fala árabe e estuda o Corão, em busca de pontos de contato entre o catolicismo e o islamismo.

A tolerância religiosa até então reinante começa a se abalar quando recrudesce a guerra civil. Europeus, vistos de modo geral como os grandes responsáveis pela miséria do país, e, por extensão, pelo conflito, tornam-se vítimas em potencial dos dois lados de combatentes. O sinal de alerta chega quando uma dezena de operários croatas é assassinada  não muito longe dali, sem motivo algum e com requintes de crueldade. (Clonazepam)

A partir de então, os monges terão que ponderar se permanecem onde estão, com o risco de serem mortos a qualquer momento, ou se continuam em sua missão de ajudar um povo que realmente tem apenas a eles. A escolha não é tão óbvia: se por um lado todos renunciaram a seus projetos de vida particulares pela devoção a Deus, por outro há a consciência de que sua ordem religiosa não incentiva o martírio.

A câmera do diretor Xavier Beauvois se move pouco. Os quadros, quando não são estáticos, deslocam-se em movimentos lentos e quase unidirecionais, para esquerda ou para direita, para cima ou para baixo, de modo não muito diferente de como o próprio olhar humano faria. E é o olhar  daqueles monges o retratado no filme. Natural, portanto, que ele o seja, no mais das vezes, não sobressaltado.

Interessante também é o uso que Beauvois faz do clima: a paisagem áspera e seca, logo no início da projeção, serve  para ressaltar a pobreza do ambiente ao redor; a chuva em outro momento-chave é, na semiótica, associada à transformação; a neve espessa, ao final, esconde um evento que não é claro e que, ao mesmo tempo, não deve ser visto. Mas, se no início vemos os monges cantando de costas para a câmera, é salutar que na última celebração a que assistimos, eles estejam com o rosto voltado para a câmera, em evidente sinal de que, no desfecho, finalmente os conhecemos.

Frei Christian interpretado por Lambert Wilson à esquerda

Não há trilha sonora e a transição entre as cenas é, quase sempre, feita por meio de cortes secos. Mas mesmo os cânticos gregorianos que acompanham parte das cenas não são escolhidos ao acaso, pois contêm sempre metáforas inteligentes às situações em curso. Não menos eloquente é a escolha de Frei Luc (Michael Lonsdale) para a única ocasião em que os monges ouvem música durante o jantar: o Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, ópera associada à tragédia, embora pareça prenunciar uma, não é sentida desta maneira pelos presentes, cujas reações podem ser acompanhadas em detalhes graças a planos fechadíssimos nos rostos enrugados dos personagens.

As atuações, precisas individualmente e harmoniosas em seu conjunto, trazem a lume as nuances do roteiro, preocupado em retratar a divisão moral enfrentada por cada um deles. Em face da situação, sentem medo, falam palavrões, se resignam, se culpam, querem fugir, perdem a fé, questionam suas próprias decisões, buscam válvulas de escape, engolem em seco, se decidem, voltam atrás. Igualmente complexos são os líderes militares e terroristas e a população local. Em vez de procurar estereótipos, os personagens diluem-se no intrincado jogo de xadrez que está posto nas relações entre países, culturas e pessoas.

Indicios de um cinema cristão na obra do francês Xavier Beauvois

A difícil relação entre o Islã e o Ocidente, e as variáveis que tornam tão difíceis a coexistência pacífica, já foram abordadas em obras tão diversas quanto Cruzada (Ridley Scott, 2005) e Syriana (Stephen Gagan, 2005).

Por sua vez, a relação da França com seu passado colonialista é um tema recorrente da produção recente do país ( como em Fora da lei e  Dias de glória), tangenciando, como um fantasma, também o formidável O Profeta (Jacques Audriard, 2009).

Graças a isso, Homens e Deuses torna-se um poderoso discurso sobre a tolerância religiosa, num local onde ela dificilmente se imaginaria. O fato de que o filme tenha se baseado em fatos realmente ocorridos na Argélia, em 1995 e 1996, potencializa ainda mais sua mensagem.

(1) Os trapistas são monges beneditinos cenobitas, isto é, vivem em comunidade, o que os difere, por exemplo, dos monges cartuxos, que são eremitas ou anacoretas, isto é, religiosos de vida solitária.

*João Paulo Capelotti é  graduado em Direito pela UNESP/Franca. Mestrando em Direito das Relações Sociais na UFPR.

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