The L Word: Caminhos e desvios de um protagonismo feminino lésbico

Por: Camila Freire

The L Word estreou em 18 de janeiro de 2004 com um aspecto que hoje apresenta bastante relevância, a vinheta de abertura. Normalmente desapercebida, as vinhetas de abertura trazem músicas e imagens que compõem pistas do que irá se tratar o seriado, e no caso de TLW, a vinheta de abertura da 1ª temporada era composta por uma repetição de tons eletrônicos constantes e ritmados, do qual faziam emergir de um fundo preto a letra L maiúscula. Posteriormente, subdivida em outras palavras que começavam com a letra L na língua inglesa, como Love, Lost, Lies, Laughter, Los Angeles, Lesbian, transformando novamente em um L único no qual formava-se o título do “The L Word”, como podemos ver na figura 1.

Figura 1: Vinheta de The L Word, 1ª temporada. Fonte: Rodrigues (2012).

Segundo Mertz (2014), o significante que traz sua significação de maneira denotativa é aquele que possibilita a analogia direta entre o signo e a mensagem; no seriado, a motivação direta para o uso da letra L está ligada a palavra Lesbian, ou Lésbica em português brasileiro, seu assunto e tema central. Posteriormente, a vinheta[1] foi substituída por uma nova versão, mais explícita. A abertura agora tinha a canção “The L Word Theme”, criada exclusivamente para o seriado; as cenas dirigidas para fotografias eram apresentadas em stop motion, trazendo sequências de nudez parcial, erotismo e sexualidade, referentes a personalidade individual de cada personagem; todas mostravam relações lésbicas de maneira sofisticada, luxuosa e poderosa, desconstruindo de vez o imaginário masculinizado, pornográfico ou casto imposto às mulheres lésbicas.

Figura 2: Vinheta de The L Word, 2ª temporada. Fonte: Rodrigues (2012).

Essas duas vinhetas já nos permitem algum aprofundamento sobre a representação do feminino lésbico. Segundo Butler (2003), a performatividade de gênero é algo imposto ao gênero biológico, feminino e masculino, no qual a sociedade introjeta que determinados comportamentos devem ser atribuídos de modo compulsório ao masculino e ao feminino. Este é um debate que tem sido amplamente discutido em nosso atual contexto sociopolítico, no qual ideias conservadoras convenientemente pautadas por fanatismos religiosos, têm ganhado projeção em sujeitos e práticas políticas interessadas em desviar a atenção pública para questões individuais em detrimento do interesse coletivo real.

Se antes a representação do feminino estava entre o binômio ativo/passivo, masculino/feminino (MULVEY, 1983) e transitava dentro e fora das telas seguindo esse parâmetro, com o advento da teoria de performatividade de gênero esse paradigma das  representações sociais heteronormativas começou a ser questionado, principalmente na comunidade LGBTQIA+.  Se antes as mulheres lésbicas performavam ou eram representadas no cinema e no audiovisual com características identificadas como masculinas, ao exemplo da personagem Randy, vivida por Lauren Holloman no filme The Incredibly True Adventure Of Two Girls In Love (1995), de Maria Maggenti. Posteriormente, começou-se a pensar em quebras de padrões estéticos para as personagens lésbicas, com o caso de Tina, personagem de TLW também vivida por Holloman, 10 anos depois, conforme vemos na figura 3.

Figura 3: Fotos retiradas do banco de dados do Google.

Essa quebra de paradigmas e das representações para o feminino lésbico foi algo que chamou enorme atenção em TLW. O seriado deixou de lado os estereótipos socialmente associados ao masculino e trouxe quase todas as suas personagens em roupas, joias e maquiagens glamurosas, fazendo uma espécie de contracultura que chamou bastante atenção para a época. Como todo processo contracultural, os debates a respeito apontavam pontos positivos e negativos sobre a nova representação da mulher lésbica. As críticas eram pulsantes dentro da própria comunidade lésbica, apontando que mulheres brancas, jovens, com ascensão profissional e bem sucedidas economicamente não representavam as experiências de um grupo tão invisibilizado e discriminado. Já outras críticas apontavam que TLW queria justamente quebrar com as marcações do patriarcado e mostrar outras facetas para que mulheres lésbicas pudessem pensar e transitar em outras formas de experiência e consumo, inclusive ditá-lo se achassem que deviam.  

É importante apontar também que TLW trouxe uma nova perspectiva para as cenas sexuais entre mulheres. Por ser um seriado criado e dirigido por uma mulher lésbica, com muitas outras mulheres participando da produção e da pós-produção, temos mudanças significativas na maneira como as cenas sexuais são gravadas e apresentadas ao longo da série. Se em outras produções víamos pelo ponto de vista do olhar masculino, no qual a objetificação da mulher é indiscutível e as cenas de relações sexuais são extensões de intenções pornográficas (MULVEY, 1983), a figura 5 mostra que TLW trazia cenas sexuais explícitas de modo muito sensível e erótico, mesmo que as personagens envolvidas não tivessem um enlace mais sentimental.

Figura 4: Frames da 1ª, 3ª e 5ª temporadas. Fonte: Globoplay

Esta sensibilidade materializa-se em cenas construídas em planos abertos, iluminados por uma paleta de cores quentes que mexem com os sentidos das espectadoras. O erotismo fica por conta dos planos fechados, conduzidos por recursos sonoros que apresentam crescentes em sincronia com os momentos que representam ápices orgásticos. Ou seja, as cenas são direcionadas ao prazer visual das mulheres, estimulando seus imaginários a partir de construções visuais nas quais uma mulher lésbica possa reconhecer e validar como possíveis.

Em 2004/2005, os modelos de representatividade lésbica que a geração da década de 90 teve a oportunidade de conhecer eram profundamente limitados por fatores como “faixa etária e localização geográfica”. A “faixa etária” impediu que boa parte dessa geração pudesse acompanhar e experimentar a “ascensão” de pessoas GLS nas décadas de 70/80; já pelo contexto “localização geográfica”, se sabe que quem estava fora do eixo Centro-Sul nesta época tinha pouquíssimo acesso ao consumo de materiais e conteúdos audiovisuais fora da hegemônica heteronormatividade.

Assim, pensar que em meados dos anos 2000, TLW possibilitou uma ampliação de perspectivas para públicos mais jovens pertencentes a comunidade LGBTQIA+, não somente pelo viés da diversidade estética e do consumo, mas principalmente pela visibilidade de uma representação do feminino lésbico mais aproximado à geração Millenials[2], que transitava ainda de modo muito incerto sobre como vivenciar experiências comportamentais, relacionais e sexuais de modo mais livre, sem o peso da culpa e da invisibilidade promovidos em décadas anteriores.

O seriado produziu 6 temporadas completas, sendo a 1ª uma mistura de glamour, leveza e descontração que foi se adensando em temas mais complexos do que meros objetos de consumo e códigos de performatividade de gênero. Constituição de famílias homoafetivas e seus desdobramentos,  conflitos de aceitação de sexualidade, abuso de drogas e álcool, a tensão sociocultural entre sexualidade e o ambiente de trabalho, tipos de relacionamentos fora do padrão monogâmico e críticas à visibilidade de indivíduos que se reconheciam como bissexuais foram alguns dos temas explorados na 1ª temporada.

Já a 2ª e a 3ª temporadas tinham como temas centrais a paternidade homoafetiva de mães separadas, abuso sexual, envelhecimento feminino – e seus desdobramentos pouco convencionais, câncer de mama e, novamente, preconceitos dentro da comunidade LGBTQIA+, agora no que tangia a transexualidade, e sobre como estes indivíduos sofriam dupla discriminação, tanto fora quanto dentro de sua comunidade.

Faço aqui uma pequena pausa para comentar um dos temas apresentados nessas 3 primeiras temporadas. HOOKS (2019) nos apresenta o conceito de olhar opositor como aquele olhar que busca quebrar com o acordo parcimonioso da branquitude em relação a seus hábitos, suas representações e seus privilégios. Aponta inclusive que pensar as representações midiáticas fora de uma lógica intersecional entre raça, classe e gênero, é fazer uma análise esvaziada das estruturas que compõe nossa sociedade. Desse modo, ao olharmos hoje para TLW é oportuno pontuar que, para além dos possíveis acertos nas representações do feminino lésbico, muitos outros erros foram cometidos dentro da sua proposta narrativa.

Uma delas está amplamente relacionada com a hierarquização dos indivíduos dentro da comunidade LGBTQIA+, dado no qual TLW caía no mesmo pressuposto problemático já apontado por diversos grupos em relação a Queer as Folk. A representação única de indivíduos comercialmente aceitos, dentro do padrão binário, homens e mulheres. Homossexuais brancos, bonitos e bem sucedidos eram comercialmente visibilizados, ao contrário de outros diversos indivíduos também pertencentes a comunidade. Personagens bissexuais e transsexuais presentes em TLW não foram protagonizados de maneira relevante, serviram apenas para experiências narrativas não muito bem concretizadas.

Posterior a estes apontamentos temos nas 4ª, 5ª e 6ª temporadas um pouco mais de abertura e sensibilidade a públicos e narrativas que não eram somente voltadas ao padrão comercial bem aceito. A inserção de personagens lésbicas representadas por mulheres de meia idade descobrindo sua sexualidade, personagens portadoras de deficiência auditiva, personagens lésbicas das classes trabalhadoras, mulheres latinas e negras em relacionamentos diretos com as protagonistas, foram todas estratégias usadas para alcançar uma equidade de representatividade da diversidade de mulheres lésbicas que poderiam e deveriam ser representadas em sua integralidade, conforme podemos ver na figura 6.

Figura 5: Atrizes que participaram de TLW ao longo das 6 temporadas. Fonte: Google.

A modificação do roteiro e essa diversificação de personagens só foi possível depois dos primeiros anos, nos quais a série já havia se consolidado e se percebia mais segura para adentrar em temas mais complexos, principalmente para o contexto norte americano. Nas 3 últimas temporadas, foi possível discutir temas como a política do “Don’t ask, don’t tell” (“não pergunte, não responda”), na qual a personagem Tasha, militar de carreira, com distinção pela guerra no Iraque, começava a se envolver num conflito dentro do exército americano ao relacionar-se com “Alice”, uma das protagonistas da série, que além de lésbica era uma crítica ferrenha ao governo e nem um pouco discreta em relação a sua sexualidade.

Em uma cena canônica do seriado, Tasha é julgada pelo tribunal militar, e mesmo com oportunidade de vitória, faz um discurso final apresentando a liberdade pela qual luta em nome dos EUA. Liberdade que agora lhe é negada, finalmente assumindo sua relação com Alice. Tasha é dispensada do serviço militar e em uma cena memorável, ainda fardada, a ex-capitã beija a protagonista no meio do quartel militar (figura 6) onde outros militares dividem-se entre surpresa, apoio e negação.

Figura 6: The L Word – 5 Temporada, 8 Episódio. Fonte:The L Word online/imagens.

Há também muitos momentos nos quais conflitos raciais são apontados no seriado. Bette, personagem principal, é uma mulher negra pouco retinta, fruto de uma relação birracial entre um homem negro e uma mulher branca, fato que, vez ou outra, é apontado em conflitos de raça, gênero e sexualidade em uma sociedade assumidamente racista.

Bette repete sua estrutura familiar e se casa com uma mulher branca. Sendo ela agora parte de um relacionamento birracial, ambas escolhem um doador negro para gerar sua filha. Em uma cena tensa da trama, Bette conversa com uma advogada sobre seu divórcio e uma possível guarda exclusiva da filha, uma vez que a menina é negra e sempre que está com Tina, mulher branca que concebeu a criança, é tratada como adotada, diferente de quando a criança está com ela, passando naturalmente a impressão de ser sua filha de sangue, visto que ambas são negras e ela pode apoiá-la em questões raciais em uma sociedade majoritariamente racista.

Apesar da escolha narrativa de decidir mergulhar em questões mais densas, TLW ainda manteve a sensualidade e a leveza que deram origem ao seriado, conforme mostra a figura 7, principalmente nas temporadas finais, no qual o seriado propõe uma espécie de metalinguagem, que fica evidente através da trama da personagem Jenny. Jenny é uma das protagonistas e, por ser escritora, resolve escrever um livro contando suas experiências no mundo LQBTQIA+. Tais experiências envolvem todos os dilemas, romances e questões das demais protagonistas. E o livro  não sendo suficiente, a história torna-se filme no qual todas se veem diretamente ou indiretamente envolvidas na produção, deixando que nossa imaginação passeie entre assistir o seriado e desconfiar se o que nos é mostrado aconteceu ou não nos bastidores.

Figura 7: Foto de divulgação da 5ª temporada. Fonte: Google.

The L Word realizou sua 6ª e última temporada em 2009, tendo sido dividida em prós e contras que até hoje reverberam dentro do nicho lésbico. Mas para além do final contraditório, o seriado deixou o legado de novas e diversificadas representações do feminino lésbico dentro do audiovisual. O pioneirismo de TLW proporcionou reflexões profundas dentro da estrutura da comunidade lésbica, que certamente ultrapassaram questões de consumo e comportamento, pois trouxe assuntos e questões que envolviam diretamente conceitos de família, trabalho, performatividade e relações de amor e amizade entre mulheres lésbicas.

De 2010 até hoje, tivemos um “boom” de produções de cinema e audiovisual com protagonismo lésbico diversificado, proporcionando assim uma visibilidade maior para que novas personagens lésbicas fossem representadas, em suas mais variadas singularidades, em tantos outros seriados, permitindo com isso uma maior materialidade de produções com as quais um maior número de pessoas possa se reconhecer, diversificando a sociedade e obrigando-a a vivenciar pluralidades.

Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

hooks, Bell. O olhar opositivo: a espectadora negra. Olhares Negros: raça e representação, 1992.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2014

MULVEY. Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 1983.

RODRIGUES, W, Lilian. The L Word em movimento: convergências de uma série lésbica, 2013. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Comunicação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Orientadora: Marta de Araújo Pinheiro.

PONTO TEL. Geração Millennials e o mercado de trabalho: quais os impactos, principais características e o que buscam! Acesso em: 26. Set. 2022. Disponível em:<https://www.pontotel.com.br/geracao-millennials/>


[1] Vinheta disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kRnlpBCDYgY

[2] Geração nascida entre 1981 e 1995. Este grupo social presenciou a ascensão da internet e das mídias sociais em seu cotidiano, transitou entre mudanças socioculturais e políticas oriundas dessas ferramentas digitais (PONTOTEL, 2021).