Por Guilherme Reis
Redação RUA
Paul Schrader parece ter demonstrado de uma vez por todas o seu carinho com temas muito próximos. Esse filme está relacionado (de forma mais direta) linguisticamente e psicologicamente com os seus últimos dois, mas também com toda a sua obra. Não é coincidência que os protagonistas sejam homens com desvios morais, que os conflitos se desenvolvam a partir de fenômenos sociais contemporâneos, que exista um dilema ético ambientado no mundo moderno. O diretor e roteirista desse filme se interessa, como já havia demonstrado, na experiência corrosiva da modernidade para o homem, e, além disso, como seria possível suportar essa experiência quando a masculinidade já está completamente intoxicada.
Aqui, o filme alcança um distanciamento de seu espectador através de uma decupagem na qual predominam planos americanos (ou planos médios, no inglês) que não chegam tão próximos aos personagens. Dessa forma, os diálogos e a voz em off se tornam igualmente importantes para conduzir o filme. Essa distância está também representada na iluminação uniforme que toma conta dos jardins durante o dia e nos enquadramentos contemplativos dessas cenas. Toda essa forma de filmagem, manipula o espectador a se encaixar naquele mundo controlado que, mais para a segunda metade do filme, será desorganizado. Essa é uma característica presente em outros filmes do Schrader, mas, nesse, ele me parece conseguir utilizá-la de maneira mais concreta por meio de suas escolhas linguísticas, o que produziu um efeito mais interessante.
É particularmente interessante como Paul Schrader mostra os perigos da modernidade, geralmente com a tecnologia e a internet, que facilitam a comunicação entre indivíduos distantes, coisa que acontece também em Fé Corrompida (2017) e O Contador de Cartas (2021). De certa forma, esse aspecto também se manifesta nos momentos pontuais em que usa os efeitos especiais de modo exagerado – nesse filme, a cena fantasiosa (e quase entorpecente) das flores tomando conta da estrada quando o protagonista e Maya dirigem em sua “fuga espiritual” –. Entretanto, vale uma elaboração mais profunda dos motivos e das consequências desses momentos, pois acredito que eles demonstram uma faceta do trabalho de Schrader e de suas perspectivas sobre o cinema. De certa forma, nessas cenas em que ocorre uma espécie de “explosão” daquela atmosfera contida do filme, ocorre uma certa recuperação de um cinema transcendental inspirado por Robert Bresson, Carl Dreyer e Yasujiro Ozu, autores que o próprio Schrader já pesquisou sobre em seu livro Transcendental style in film (1972). Mas, além disso, momentos como esse reforçam como a tecnologia está presente na atualidade, de forma artificial, crua e indiferente, de modo que ela aparece com exageros, de maneira inesperada e fora do estilo asceta do filme.
Indo por esse caminho, percebe-se que o filme propõe uma auto-problematização, que vem de uma metalinguagem sutil. É possível imaginar um paralelo entre jardinagem (ou botânica) e cinema. Portanto, um paralelo entre o cineasta e o botânico, como reorganizadores do mundo bruto. Construtores da beleza e da arte a partir da realidade como ela é. Mas, além disso, eu sinto que a atmosfera distanciada dá espaço (pois é muito forte dizer que cria) para um ponto de vista sobre o seu próprio protagonista. Por exemplo, o final em que a música solene de amor acompanha a dança do casal demonstra uma paz que nunca foi e talvez nunca será concretizada para essa dupla de personagens que possuem distúrbios mentais e falhas de caráter. Ou seja, me soa como uma ironia (ou autocrítica) que o filme faz sobre a heroicização ou romantização de personagens com problemas sintomáticos da sociedade atual. Uma forma de discutir como não podemos aceitar os fins, sem antes considerar os meios.
É preciso compreender que o personagem não é simplesmente uma boa pessoa, e por isso eu acredito que existe essa distância. Por mais que exista um momento em que ele é claramente caracterizado como “mal” ou, no mínimo, “violento” – como na cena em que eles vão se vingar do RG e Sissy –, eu imagino que esse tipo de caracterização já era esperada em um filme onde o protagonista tem esse tipo de passado. Ou seja, embora esse momento mais direto exista, em um filme contemporâneo ele seria comum para representar um personagem como ambíguo, mas ainda podendo ser “bonzinho”. Aqui, não imagino que o filme o coloque como tal, e, justamente, imagino que o filme brinca com o fato de existir essa possibilidade na cabeça do espectador moderno.
REFERÊNCIAS (seguindo norma ABNT):