Retratos Fantasmas (2023) | Kleber Mendonça Filho

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Por: Helena Zoneti Rodrigues

O filme Retratos Fantasmas é sobre elaboração. Elaboração pessoal que o diretor Kleber Mendonça Filho realiza sobre o fazer cinematográfico: o espectador vê e experimenta com melancolia e euforia as diversas formas de reunir e formar ligações do espaço-tempo na formação da subjetividade de um artista, neste caso, a do diretor. Kleber resgata as lacunas de sua vida com o cinema, principalmente aquelas que o presente tirânico almeja conduzir ao esquecimento. Autobiografia de sua arte, álbum de família e história do cinema dentro de seu apartamento no bairro de Setúbal e nas telas dos cines no centro de Recife.

O filme inicia e termina com a música Happy End de Tom Zé, e aqui a trilha sonora do filme toca o espectador com afetividade em dois sentidos. No primeiro, como prenúncio do que está porvir na tela: ao iniciar o filme com uma canção um tanto experimental com crítica velada à censura, ao esquecimento e repressão da ditadura, o intuito do diretor, que também usa de sua voz para narrar o documentário, é de localizar os pontos de resistência e possibilidades artísticas no Brasil, sobretudo em Recife. No primeiro dos três atos do filme, Kleber aponta para o solo fecundo de sua arte cinematográfica, e no geral, do aporte e sustento que precisamos para produzir cultura no Brasil. Seu “solo”, que fez e faz morada em sua habitação na casa do bairro de Setúbal, ambiente de aprendizagem e experimentação, onde foram gravados filmes, como O Som ao Redor (2013); também, abundante e fertil à arte pelo apoio, respeito e afeto que recebeu de sua mãe Joselice Jucá, historiadora.

Este primeiro sentido, de emancipação pela arte, também está presente no segundo ato do filme ao mostrar os cinemas do centro de Recife, a produção artística e cultural cravada no espaço com belos cinemas, em que as marquises indicavam títulos dos filmes que se misturavam as ruas e transeuntes criando um ambiente fantasioso frente o centro que aglomeravam circuitos de quantias e trocas. O centro retratado dispunha de um espaço artístico, em que a fantasia e apreciação existiam livres nos cinemas, assim como o carnaval de rua do centro de Recife; outra música que compõe o filme e o preenche de afeto é Meu Sangue Ferve Por Você, de Sidney Magal, entoando “Ah, eu te amo meu amor” enquanto várias imagens dos cines são passadas na tela. Mas nem tudo é euforia e nostalgia. Ainda no segundo ato do filme, Kleber agrega a este passado glorioso dos cinemas um caráter espectral, fantasmático: são imagens e retratos que não existem mais, algum “veneno” exterminou, ou modificou parte do solo que possibilitava espaços de consumo de filmes, de cultura. Este é o segundo sentido comentado acima, que ainda não tem um happy end.

Há uma retratação melancólica do que os cines antigos se tornaram atualmente, do abandono e descaso com o cinema nacional, a começar na censura da ditadura e ainda perpetuando com políticas escassas à produção nacional de arte. Uma lógica destruidora do passado, em que tudo se atém e serve ao presente, “o presentismo é o rei, corroendo o espaço e reduzindo o tempo, ou o expulsando” assinala o historiador francês François Hartog. Assim é também o terceiro ato onde mostra os cinemas comprados e destituídos pelas igrejas evangélicas. Mas nem tudo do presente está perdido, há espaços de resistência, como o cinema São Luiz, antes Igreja Anglicana e hoje “templo” de arte. Retratos Fantasmas nos lembra que somos espectros do passado e que é preciso rememorar para não reiterar violências e negligências com a nossa cultura no Brasil.

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