Crítica | Drive My Car (2021), de Ryusuke Hamaguchi

Por Vitória Rocha

O insigne Drive my car (2021), dirigido por Ryusuke Hamaguchi, se consolida em sua maneira de tratar a incomunicabilidade, sobretudo por um fio tênue entre a sutileza melancólica e a soturna confissão. Adaptação de um conto de Haruki Murakami de mesmo título, o longa conta a história de Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um notável ator e diretor de teatro. Nosso protagonista se sente como o coadjuvante de sua própria história por efeito de uma falsa impressão em que ele se assegura: de que ele é também a prioridade de quem ocupa o papel principal em sua vida, sua esposa Oto Kafuku (Reika Kirishima). Essa certeza é colocada em dúvida quando o personagem passa a refletir sobre sua real importância na vida de sua amada, percebendo a fragilidade da forma como ela escolheu se comunicar com ele. 

Com o falecimento da esposa, os fantasmas das perdas de Yusuke, que outrora eram como vultos no espelho – com certa inconsistência a princípio -, se transformam em um fardo de culpa e tristeza. Tudo o que um dia ele pensou saber lidar, sobretudo em relação a figura fragmentada que tinha de Oto, o afastam de desempenhar a sua própria imagem de forma integral. Ele é um homem quebrado, frustrado e enfrenta dificuldades em acessar suas dores na tentativa de se comunicar consigo mesmo. Após uma crescente na onda de angústia que já sentia, em virtude da percepção de um relacionamento silencioso alimentado sobretudo pela energia vital da carnalidade, Yusuke inicia um processo de culpabilização e alienação do material. O primeiro se delineia por ele ter perdido a última possibilidade de ouvir algo de fato sincero, um grito em um ambiente de sussurros. O segundo se trata da perda do existir de forma corpórea, que era a única forma que sua falecida esposa existia e demonstrava a necessidade dele por perto. Essa ausência visual e concreta logo é manifesta em sua visão fisiológica – quase como uma reclamação de seu corpo -, fazendo-o perder o controle sobre a direção de seu carro, algo que ele amava fazer. Yusuke já não existe.

O cenário lutuoso e desolado é ainda mais evidenciado quando Yusuke passa a morar na cidade de Hiroshima, por causa de sua contratação como o diretor teatral da peça Tio Vânia, de Anton Tchekhov. O paralelo com a história de Vânia, um homem que percebe sua mediocridade à medida em que cai em uma intensa frustração, é o correspondente perfeito para tornar o panorama psicológico de Yusuke mais sensorial. Dar vida ao personagem nos palcos de teatro se torna uma tarefa árdua, na medida em que ele se insere entre a dicotomia de não atuar por uma possibilidade de interpretação gerada por identificação ou por não poder reviver em si algo que morreu com a voz de sua esposa. Yusuke passa a tentar negar em si e para os outros tudo o que ele possui do Tio Vânia. Toda esta atmosfera de autoconhecimento e reconstrução encontram fertilidade no solo reflorescido da cidade de Hiroshima, como se somente o que foi destruído pudesse ser capaz de reconstruir. Hamaguchi nos traz uma cidade com um aspecto de normalidade e melancolia com apelo para a ambientação externa, especialmente pelo prazer e liberdade do ato de dirigir em sua completude simbólica. 

O momento que evidencia a falta de controle e apoio do protagonista é quando ele é (forçosamente) amparado pela direção de Misaki Watari (Tôko Miura), uma jovem que irá dirigir seu carro, a qual também é cercada pela ausência e fragmentação da imagem de sua falecida mãe. O carro, se configurando como um espaço reservado e intrínseco às relações de interpretação de Yusuke com seu personagem e com as memórias da esposa, tornam a entrada de Misaki, tomando posse de sua direção, uma possibilidade inédita de Yusuke finalmente conseguir acessar suas dores pelos olhos de outra pessoa. Ambos solitários e acostumados com a ausência de conexão emocional, são compulsoriamente submetidos a tal situação pela necessidade de orientação mútua – Misaki dirige o carro de Yusuke enquanto ele dita os caminhos – e, por isso, tanto se cativam como também se interrompem. O espectador percebe que existe uma ligação se formando progressiva e lentamente, mas também se encontra conformado com o olhar perdido dessas pessoas. Por isso, a sensação que se cria é de que eles estão distantes. 

Esta característica sentimental que configura sua lógica em dinâmicas mais subentendidas, é demarcada pelos longos diálogos, pouco literais, que não caem na forma mecânica e verborrágica de oralidade. O paralelo da interpretação cinematográfica com a teatral, especialmente pelos ensaios em grupo e pelo hábito de Yusuke ouvir suas falas diariamente, se apropriam das colocações verbais como uma ferramenta de naturalizar as articulações interpessoais internamente e com o público que assiste. É através deste mecanismo que o espectador se relaciona tranquilamente com os personagens. Estes vão apresentando sua humanidade realista em contrapartida a atuação que precisam encenar (principalmente o personagem Koji Takatsuki, interpretado por Masaki Okada) e, por último, a lógica do cotidiano processo de cura de Yusuke se torna cada vez mais intensa, poética e familiar. 

Todo este processo é lento e agradável. Nada se estabelece com o objetivo de provocar uma adrenalina dramática no espectador, mas sim de apresentar a incomunicabilidade humana com a forma mais sincera e coerente possível. É por esse motivo que o relacionamento de Yoon-Su (Jin Dae-Yoon) com sua esposa Yoo-na (Park Yoo-rim) representa o desejo de se comunicar com quem ama, ainda que isso pareça impossível. Conhecendo o que é conhecer e lidando com o que se aprende disso, Yusuke e Misaki percebem que o fardo que carregam não é fruto de suas ações individuais e que só existe coragem para enfrentar o passado, o luto e a culpa quando se tem apoio. Não é pela presença física ou porque se vê na obrigação de ser o apoio ouvinte sempre resignado a viver para suprir uma necessidade que não é bilateral. É sobre reviver como quem abraça com sinceridade e como quem viaja silenciosamente ao seu lado até a raiz de sua dor.  É sobre a aflita jornada de aprender confrontando ausências do passado e enxergando que, para de fato ser completo, é preciso ser para alguém e ter alguém. Uma pessoa completa é incapaz de ouvir sem ser ouvida. Drive my Car (2021) reuniu em todos os elementos que constrói um filme uma belíssima edificação da estética de reconstrução do âmago de existir de fato, como uma alma vivente. 

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