Crítica | Tzarevna Descamada (2020), de Uldus Bakhtiozina


Texto realizado como cobertura para o 10° Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
Por Ana Vitória

Tzarevna Descamada (2020) é, sobretudo, um filme performático que abraça a cultura pop e a midiatização das relações, tudo sob a forma de uma desconstrução de usuais leituras de contos de fadas. É carregado de um estilo original ao mesmo tempo que é homenagem a autores surrealistas, sendo justamente essa composição da mise-en-scène a melhor coisa da obra de Uldus Bakhtiozina. Trata-se de um coming-of-age mirabolante que consegue associar seu aspecto onírico com uma realidade comum do amadurecimento. 

A desconstrução do conto de fada pautando-se em uma realidade ordinária é uma temática que muito me agrada no cinema, diretores como Ana Carolina (em Sonho de Valsa, 1987), Carlos Reichenbach (em Falsa Loura, 2007) e Catherine Breillat (em La Belle Endormie, 2010) são bons exemplos dessa desconstrução e isso devido à associação clara do cinismo ao representar tal mundo fantasioso. Em tais obras, o universo da fantasia existe justamente para ressaltar a sujeira cotidiana, de forma que tais elementos não deixam de estar presentes mesmo na fantasia. Mas, em Tzarevna Descamada, apesar de existir em algum grau essa ligação entre o fantástico e o comum, tudo não passa, ao meu ver, de artifícios para exaltar a imagem, sem que haja alguma coerência entre estes. Pois bem, a dicotomia presente no longa não parece ligada com a imagem, da mesma forma com que essa linguagem imagética parece muito alheia ao conteúdo da obra, uma vez que não assume em sua totalidade um caráter alegórico, apenas o sugere. 

Nossa protagonista é filha de pescador e possui uma barraca de vender peixe junto à uma amiga. A vida não realizada é evidente e a própria personagem comenta acerca de sua dificuldade em dormir (e sonhar) para uma senhora excêntrica que vai à sua barraca comprar cabeças de peixe, a senhora, ao ouvir isso, a oferece um chá que a faria dormir maravilhosamente bem, além de proporcionar muitos sonhos. São frases proferidas como “prepare o chá de noite e o seu sonho se tornará um conto de fada” que evidenciam de antemão o caráter onírico que será predominante no filme. O chá, aqui, serviria como a maçã envenenada entregue à Branca de Neve pela Rainha Má, e, inclusive, diversas referências à essa maçã serão postas no decorrer do filme, inclusive em seu final, onde se aborda isso diretamente. Temos aqui uma explícita releitura, moderníssima, dos contos de fada. 

Ao tratar do alegorismo da obra de Uldus Bakhtiozina, vemos uma das principais inspirações para a diretora russa, o cineasta Sergei Parajanov, o qual serve explicitamente como fonte de inspiração para o visual de suas personagens. Entretanto, o diretor armênio se utiliza da linguagem imagética como fonte principal de suas histórias, o contrário acontece aqui, já que Uldus parece não conciliar muito bem o aspecto pictórico com o discurso falado. E é justamente nessa não conciliação de fatores que surge um dos pontos mais toscos da obra (se não o mais), trata-se aqui das sequências musicais da obra, nestas a imagem parece ceder totalmente seu lugar à música, que, por sua vez, exprime os anseios e angústias dos personagens. E isso me recorre a outro ponto, a toda a dimensão instagramável presente aqui.

Ao abordar sua característica instagramável, abrimos caminho para se pensar acerca da midiatização e como ela é fortemente presente na presente obra. A personagem principal é noticiada sobre o mundo Tzareven a partir da televisão, mas há também uma forte presença do rádio e diálogos que abordam indiretamente as redes sociais. Nesse ponto, é interessante pensar como a diretora adapta a obra para o conto de fadas e sua desconstrução no mundo tecnológico. As transformações que outrora aconteciam por conta de uma fada madrinha agora ocorrem em razão à tecnologia, e nisso há também uma leitura que possa relacionar tal transformação com as personas criadas em virtude às redes. 

Essas características tecnológicas dão à obra, principalmente em seu início, preceitos de jogabilidade, uma vez que a personagem principal, para chegar de fato ao mundo Tzareven, precisa passar por algumas provações, assim como para se “tornar” cisne precisa acertar algumas coisas. Isso é reforçado, é claro, pelo aspecto tecnológico, mas também pela presença, em algumas cenas, da grande angular e da movimentação que se terá neste espaço. No entanto, toda essa noção de jogo faz com que o filme, em sua curta duração, tente abordar muitas formas de se narrar, e isso ao mesmo tempo. 

Para além disso, como comentado anteriormente sobre o cinismo em obras fantasiosas, a obra parece finalmente arranjar um modo de realizar isso, isso acontece ao final da obra, quando diálogos sobre acaso se fazem predominantes e somos encaminhados para o fim da protagonista no mundo Tzareven, morrer (ou dormir?). Um paralelo é montado então, novamente com Branca de Neve, a personagem bebe do veneno e caí, adormecida. Mas é justamente nesse encerramento que os medos, tão próprios do “subgênero” coming-of-age, são postos em cena, a personagem é insegura consigo mesma e, além disso, não possui coragem de ir para a luta. No entanto, o momento que estava reservado para colocar em mesa as inseguranças é resumido a um simples “o trabalho dignifica o homem”. Para a personagem conseguir sucesso e vencer suas inseguranças ela precisa, então, trabalhar, e só então ela acordará para a realidade. Isso fica mais evidenciado quando a tela escurece e então vemos uma dedicatória, Uldus dedica o filme à seu pai, que sempre dizia que apenas o trabalho e a perseverança fariam do homem uma personalidade. 

Paralelo visual com Branca de Neve.

Tzarevna Descamada é, no entanto, uma das obras que mais ousa em suas escolhas de encenação, cenário bastante diferente do que se predomina no cinema atual. Abraçar a fantasia e o alegorismo, no entanto, se mostra algo muito difícil para a diretora russa, uma vez que mesmo na tentativa de se evidenciar a sujeira mundana através da hiper estilização, outros aspectos se sobressaem e, por fim, toda a suposta dimensão crítica se esvai. Falta à Uldus Bakhtiozina o cinismo necessário ao tratar da contemporaneidade tendo por base a desconstrução do clássico, mas, mesmo assim, a diretora obtém um bom resultado e uma boa estilística, decerto será um prazer acompanhar seus futuros trabalhos e suas evoluções. 

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