Natália Vestri*
Freqüentar a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é uma experiência que vale muito a pena: respira-se cinema durante duas semanas e embarca-se em uma maratona que pode chegar a seis filmes em um único dia. E quando não se tem muito tempo disponível, é importante saber aproveitar esse evento. O ritual envolve selecionar os filmes que se quer assistir – dividido entre dois guias: o da programação e o das sinopses – e tentar casá-los com a sua disponibilidade de tempo e o lugar onde o filme será exibido. Se o seu tempo é ainda mais apertado, escolha uma região onde vários cinemas estão concentrados e… Assista qualquer coisa. Tente encaixar os horários para ver o maior número de filmes possível! O charme da Mostra não é ver filmes bons, mas ver filmes aos quais você jamais teria acesso, de países que você, às vezes, nem sabe onde fica, de uma Europa pouco óbvia, daquela Ásia ainda mais desconhecida ou de uma América muitas vezes desprezada.
Se em um primeiro momento a distância geográfica ou a diferente realidade do filme em questão nos afasta da sua proposta, a semelhança entre dilemas e indagações dos personagens nos aproxima de tal forma que sua origem, religião ou classe social passa a ser ignorada. O espectador torna-se o personagem, assim como o personagem também se tornou espectador nesse intercâmbio cultural que tem a duração do filme.
Em Uma Viagem (2011), por exemplo, road movie esloveno, três jovens decidem se reencontrar para realizar, mais uma vez, a tradicional viagem que faziam todo verão até uma região chamada Izlet. Essa viagem mostra-se desde o início como um divisor de águas entre o que eles devem fazer e o que eles querem fazer, embora essa segunda parte não esteja muito bem definida: os três temem o futuro e a maturidade, detestam a idéia de responsabilidade e fogem dela com todas as forças. Será papel da viagem e do convívio intenso entre esses jovens, que transita por momentos de calma e caos, prepará-los para as responsabilidades da vida adulta. Como era de se esperar, essas ansiedades e inseguranças mergulham Andrej, Ziva e Gregor em uma crise individual, o que implica em reflexos disso dentro do grupo. Antigos colegas de colégio, eles se conhecem há bastante tempo, mas o convívio entre Gregor e os outros dois diminuiu depois que ele foi para o Afeganistão.
Andrej é a figura cômica do grupo, que parece forjar, certas vezes, um estado de mal-humor para que as suas ironias tenham maior impacto – e isso funciona! Mas ele não é assim e nos revela mais de uma vez que é uma pessoa carinhosa e extremamente preocupada com a união do trio, além de ser um homem forte, de iniciativa e que assume suas insatisfações e desejos. Talvez seja por isso que ele acabe sendo o elemento que mais se demonstra insatisfeito com a sua situação: ele carrega raiva – e não deixa de verbalizá-la – não somente por se enxergar em uma condição que lhe causa revolta, mas também porque ele sabe que essa é a circunstância na qual se encontram tantos outros eslovenos que trabalham em coisas que detestam, com chefes que abominam, em uma vida que começa a se mostrar cínica e vazia para, no final do mês, receber uma miséria.
Ziva é o elemento feminino do grupo. E eles fazem questão de pontuar que ela é diferente, tratando-a como a irmã caçula. Ao invés de se zangar, no entanto, ela sorri diante da infantilidade dos dois, como se, de alguma forma, aquilo fosse reconfortante e agradável. E isso logo faz dela a mais madura do trio, posicionando-se também como a figura materna, muito silenciosa e sorridente, demonstrando uma sabedoria sutil que a permite certo orgulho. Mas ela não está bem: embora pareça estar sempre alegre, os segredos que ela carrega estão pouco a pouco a consumindo, e não só metaforicamente. Esconder isso dos seus amigos é algo que está atingindo as barreiras do impossível, transformando Ziva em uma bomba relógio.
Gregor talvez seja o personagem mais desinteressante dos três. Seu papel não é independente como os outros dois, cujas personalidades são tão marcantes e sedutoras. Ele funciona como um catalisador que provoca Andrej e Ziva, dando a eles matéria de conflito, de crise e de explosão. Um verdadeiro soldado, cuja individualidade é completamente desprezada, sem senso crítico e sem culpa. Somente outro rosto que não representa mais do que uma bandeira. Talvez seja por isso que seus traços físicos sejam a parte mais marcante dele: é forte e bonito, como se tivesse sido construído em uma fábrica. Mas apesar dessa falta de complexidade, é ele quem dá movimento e fogo aos conflitos da relação dos três. Não é à toa que o filme começa, praticamente, no encontro de Ziva e Andrej com Gregor: a única cena dos dois sem o soldado é a primeira, na qual eles fazem compras em um supermercado, tão contentes com a eminência do encontro com o amigo, que quase destroem o lugar. A vida que os dois tinham antes do retorno de Gregor não tem importância, a não ser que ele pudesse estar lá para acompanhá-la.
Ziva, Andrej e Gregor não fazem parte do universo que os rodeia. Eles são elementos que sobrevoam seus ambientes, sobrevivendo em suas vidas ao invés de viver. Eles buscam desesperadamente fazer parte de algo, sentirem-se seguros e confortáveis. A viagem é a chance que eles tem de encontrar isso, de relaxarem, pois o peso que sentiam foi retirado. O encontro causa uma mistura de alegria e desconforto, porque a expectativa que eles tinham dessa sensação de segurança parece ser maior do que o sentimento de fato. Com a viagem, eles percebem que realmente não é fácil: para encontrar essa zona de segurança tão desejada, é necessário que eles se machuquem, é necessário que eles se magoem e é necessário que eles se exponham. Até que finalmente entendem o óbvio: para deixar de ter medo, é preciso ter coragem.
Natália Vestri é graduada em audiovisual no Centro Universitário Senac.