Ver e aprender: Elimination

Terça-feira, 06/05/1969

“Elimination” vem reforçar a nossa afirmação em relação à vitalidade e riqueza do cinema (indústria) italiano de hoje, cuja estrutura e política de produção vêm-se orientando para uma  verdadeira revisão de um tipo de cinema dito “comercial” (em oposição ao dito “filme de arte”,  como se uma coisa fatalmente excluísse a outra; aliás, parece que, pelos últimos exemplos, as denominações deveriam ser invertidas). Dessa forma, revigora, dentro de novas estruturas, gêneros clássicos do cinema e se converte, sem dúvida, na manifestação mais clara de que o cinema mudou radicalmente e vive hoje dentro de novas formas-conteúdo. “Elimination” representa uma síntese do cinema moderno. É propositalmente isto. É a incorporação e o domínio, dentro de uma produção industrial comercialmente estratificada, das conquistas de uma nova linguagem em processo (Godard está aí para ensinar, e atrás dele ainda dá para extrair alguma coisa de Lester, Kubrick ou mesmo Antonioni). É também a “gozação” lúcida das novas diluições também em processo (Lelouch é o rei e atrás dele tem muito cineasta-autor). “Elimination” é a citação do cinema, estrutura-se através das citações do velho e do novo, fundidos e articulados. Enquanto filme policial consiste num grande blefe, na grande elimination. O que importou a Tinto Brass foi a síntese de várias tendências do cinema de aventura, através de uma articulação que gira em torno de Godard, enquanto reflexo de suas inovações, e se vale de elementos (ora levados a sério, ora citados ironicamente) que se encontram integralmente em filmes badalados de “geniais cineastas”. As ações se produzem em função dessa mostra (festival, exposição internacional) de mitologias. Ou melhor, dessa fusão de mitologias – a de “massa”, manifesta nos esquemas novos da fita de perseguição (seja “western” ou policial urbano), e a de “elite” (sic), manifesta na utilização de elaborações cuidadosamente trabalhadas, que produzem nas platéias dos cinemas de arte uma expressão que “define” tudo: “Lindo”.

Enumerar todas as situações-citações, seria contar o filme, mas vejamos a amplitude da faixa. A situação-chave e o seu desfecho citam “O Acossado” de Godard; o crime é relacionado com uma fotografia e há toda uma seqüência num estúdio fotográfico que cita e inclusive se refere claramente a “Blow-up” (Antonioni); as mudanças de cor (banhos de laboratórios), o uso exagerado de lentes grandes-angulares (provavelmente de distância focal 9 mm, para grandes deformações) lembram e ironizam ao fotógrafo-rei Lelouch; o crime na banheira tem um cartaz de referência: Marat-Sade; a música é uma balada de faroeste italiano, eu disse italiano, que fala de amantes e ainda aproveita sons do Rolling Stones; a decupagem se faz em torno de um grande número de primeiros planos – fórmula típica do cinema dos últimos 4 anos; os atores falam quase sempre olhando diretamente para a câmara (o velho Godard); a seqüência final se faz num Happening, cujo tom apocalíptico se refere a “Privilégio” e a “As Psicodélicas”; há uma discussão e reconciliação dos personagens que, sob os olhares da velha população londrina, lembra Lester; uma moça cai no rio Tamisa numa tarde cinza e o suspense nos leva a Hitchcock; um rapto e um salvamento da heroína recebem uma velha pontuação: a dos sons de uma estação de trens e uma contagem regressiva na operação salvamento nos leva ao velho cinema em que por um triz a mulher é salva e desamarrada dos trilhos ou de outro perigo qualquer; as perseguições de carro nos levam ao filme de gangster e especialmente a “Goldfinger”. Tem tudo isto e muito mais. Basta assistir e ir lembrando. Um filme síntese é necessariamente um filme de montagem, e “Elimination” é inteligente na montagem, porque estruturar e articular direcionalmente um mundo de citações não é coisa simples. É preciso dominar o cinema para “brincar” com suas estruturas e evitar o caminho fácil da diluição latente (não pretendida) que marca grande parte  dos “autores”.

Tinto Brass descobriu que o cinema de hoje gira em torno de um eixo que passa por Godard. O resto foi fácil.

Ismail Xavier

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