127 Horas (Danny Boyle, 2010)

André Renato*

Poster do Filme "127 horas"

Um indivíduo com vocação para o solitário dos amplos e inóspitos espaços da natureza, atraído irresistivelmente para o sublime dos abismos; Aron Ralston (James Franco) é um espírito incorrigivelmente romântico, seguindo intrepidamente a sua demanda por um Absoluto (1) que a sociedade de consumo e de trabalho (urbana e devidamente industrializada) não poderá – nem há de querer jamais – oferecer. Em vista disso, causará certa estranheza que a história (real) da luta pela sobrevivência deste jovem seja contada através das imagens e sons mixados por Danny Boyle, cuja predileção por um cinema pop, música pop e cultura pop (todos formas de expressão da mesma sociedade a que aludimos), não se casará muito em tom e significado com o vivido pelo protagonista deste intenso filme.

Com isso, ficamos imaginando que o maior e mais tenebroso risco que poderá advir da escolha / identidade estética do cineasta premiado pela Academia com Quem Quer Ser Um Milionário? (“Slumdog Millionaire”, 2008) é que sua mais recente obra passe a ser usada como motivo em famigeradas palestras “motivacionais” de grandes corporações. Mas o que é que a história deste filme tem a ver com Danny Boyle, além do fato de que seu protagonista é um pós-adolescente curtindo a vida boêmia e desregrada? O filme acaba não sendo mais perene do que uma canção qualquer do britpop. Seu fundo romântico não é mais explorado do que o fez o sampleamento da 5ª Sinfonia de Bethoven em versão disco, que apareceu em um episódio da série animada Family Guy.

Melhor (muito melhor) seria se tivessem pegado o relato de Aron Ralston e dado nas mãos cuidadosas de um Werner Herzog, não? De qualquer maneira, 127 Horas (“127 Hours”, EUA / Reino Unido, 2010) não é todo desprovido de pertinências. A sua mise en scène – incluindo a interpretação apaixonada de James Franco – busca potencializar ao máximo a experiência de desconforto que o espectador deverá compartilhar com o protagonista, conforme o próprio diretor já fizera questão de declarar. Isso se atinge através de uma predominância de primeiros planos (nem há tanta opção, uma vez que a maior parte do filme (a câmera) faz companhia para Ralston, preso pelo braço direito a uma pedra, numa fenda estreita no fundo de um canyon).

Cenas do Filme "127 Horas"

O auge deste “cinema-verdade” de Boyle se dará na polêmica cena da auto-mutilação, suposta responsável por desmaios e ataques epilépticos  em espectadores. É fato que, para o bem do efeito narrativo / fenomenológico que se vinha criando desde o começo do filme, talvez seja necessário mostrar tal acontecimento de maneira explícita. Mas isso não invalida a discussão ética (e não moral) sobre o risco de se banalizarem os efeitos provocados pelas imagens em movimento projetadas na tela grande de uma sala escura – limite que muitos filmes de hoje esqueceram, com ou sem explicação. Em nosso tempo, é tudo explícito demais no cinema; por outro lado, o seu discurso nunca deixou de apresentar uma relação de amor e ódio com o “real”.

A famosa colocação de Godard, de que nos filmes não existiria “sangue”, mas “vermelho”, pode servir mais uma vez como guia nesta discussão. O cineasta francês, a partir de Acossado (1959), tornou-se o mestre-sala de um cinema que se revela enquanto encenação, ou discurso no qual se “fabrica” a própria realidade mostrada (a montagem descontínua e a quebra da “quarta parede” pelos atores são grandes exemplos disso). Entretanto, o efeito de participação claustrofóbica que Boyle deseja criar no seu espectador exige que se trabalhe com mais inspiração na também famosa “ontologia da imagem fotográfica” de André Bazin. Neste ponto, o “vermelho” no corpo de Ralston seria sangue mesmo, para todos os efeitos.

O problema é que, atolada no lamaçal de filmes contemporâneos que mostram o sangue como sangue, mas que não têm os propósitos mais “elevados” de Boyle, a sensibilidade do espectador pode ficar um tanto quanto anestesiada aos efeitos legítimos que este filme quer provocar. Desse modo, 127 Horas poderia acabar sendo recebido com aquele olhar fatalmente fetichista que se dedica a coisas como a série Jogos Mortais (2004-2009), ou os “documentários” cult / trash da série Faces da Morte (1980-1996). De qualquer maneira, o fato é que os filmes dos tempos de Bazin dificilmente mostravam a coisa em si – ou nunca mesmo, à exceção dos fenomenais documentários Noite e Neblina (1995), de Alan Resnais, e O Sangue das Bestas (1949), de Georges Franju.

Cena do Filme "127 horas"

Visto em seu contexto midiático, 127 Horas não deixaria de guardar certo parentesco com a cultura do voyeur tão cara à nossa economia globalizada: há algo daqueles reality shows / documentários sensacionalistas do Discovery Channel na versão cinematográfica do caso de Aron Ralston. Enfim, no melhor e no pior, 127 Horas é um produto do seu tempo, o que talvez se revele de maneira mais impactante e significativa através do gosto que o protagonista tem por registrar toda a sua experiência (antes e após o acidente) com uma pequena máquina fotográfica digital e uma filmadora compacta. O personagem vivido por James Franco é um espírito romântico ; mas não é de se crer que os espíritos românticos de antigamente necessitassem constantemente de suportes eletrônicos para a memória. É por aí que depreendemos a sabedoria e o limite do cinema de Danny Boyle.

(1) Nota do Redator: “Absoluto” – a totalização da experiência humana, transcendida para um plano até mesmo metafísico, o que se atingirá, por exemplo, no contato com a Natureza – conforme consta na obra “Curso de Estética: O Belo na Arte”.

*André Renato é professor no Ensino Médio (língua portuguesa, literatura e redação), fotógrafo e cinegrafista. Colabora com a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog Sombras Elétricas (www.sombras-eletricas.blogspot.com), nos quais escreve sobre cinema.

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