
Cibele Barbosa Ferreira
Doutoranda em Letras na área de “Literatura e Vida Social” pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp)
No universo cinematográfico italiano, o neorrealismo expôs as feridas abertas de uma sociedade pós-guerra profundamente marcada pela violência e pela desigualdade perpetuadas pelo regime fascista. As produções posteriores buscaram incessantemente representar essas mesmas feridas, mas por caminhos muito diversos. Luigi Comencini é conhecido por transitar entre o humor e a crítica social em suas obras, com resultados variados ao longo de sua carreira. Em L’ingorgo: una storia impossibile (O grande engarrafamento, 1979), o diretor italiano aborda de maneira contundente as consequências do imobilismo social, representado por um engarrafamento que transforma os carros em metáforas de vidas estagnadas. Inspirado no conto La autopista del sur (A Autoestrada do Sul, 1966) do escritor argentino Julio Cortázar, o filme reflete sobre a inércia coletiva, o autoritarismo velado e o recurso à violência como prática comum de uma sociedade autoritária. O longa-metragem ganhou certo prestígio ao ser indicado ao prêmio Palma de Ouro no Festival de Cannes, perdendo para Apocalypse Now (1979) de Francis Ford Coppola. Apesar do reconhecimento da produção cinematográfica em um dos maiores festivais de cinema do mundo, o filme ainda é bastante incompreendido, talvez uma recusa em encarar o papel de cada um de nós na manutenção das opressões cotidianas.
Com um elenco estelar de atores como Alberto Sordi, Ugo Tognazzi e Marcello Mastroianni, L’ingorgo destaca as contradições da sociedade italiana de forma inédita na carreira de Comencini. O longa começa com uma imagem quase estática de uma pilha de carros amontoados em um ferro-velho, seguida pela brusca aterrissagem de um avião que traz um contraditório advogado De Benetti (Alberto Sordi) de sua viagem à África. Ele, junto ao seu assistente Ferreri (Orazio Orlando), conduz um Jaguar pelas ruas de Roma enquanto expressa seu acentuado desprezo pelas classes desfavorecidas, até desembocarem em uma rodovia com uma infinidade de carros que andam lentamente sob o barulho de enérgicas buzinas, integrando, por fim, um imenso engarrafamento. Indignado por sua posição social não lhe garantir a resolução imediata da interdição, o advogado em suas crenças mais ilusórias, chega a acreditar que um helicóptero pousará ali mesmo entre os carros para resgatá-lo.
À medida que a trama se desenvolve, há a revelação de como diferentes personagens enfrentam a espera pelo fim do congestionamento: uma família debate uma gravidez indesejada, um casal busca celebrar suas bodas de ouro, um jovem neurótico fuma descompassadamente, um ator famoso tenta fugir de seus fãs, um professor guarda segredos pessoais que envolvem uma traição, uma jovem é alvo de assédio por três rapazes, enfim, várias histórias que começam a se entrelaçar precariamente a partir do inesperado engarrafamento. A narrativa também introduz cenas absurdas, como um pedinte de carona entre os carros parados e um ensaio fotográfico realizado ali mesmo, imagens alegóricas da estagnação e hedonismo da sociedade ali representada. Tudo acontece em um cenário pálido e desolador, onde as ruínas de uma sociedade se expressam na indistinção entre os automóveis na estrada e as pilhas de carros empilhados em um ferro-velho, cenário que desde o início da narrativa sugere a decadência como consequência do imobilismo.
Determinados a intensificar ainda mais os seus conflitos particulares, os personagens resolvem lidar com o engarrafamento alimentando uma indiferença avessa às circunstâncias. O único episódio que une temporariamente esses indivíduos é a comemoração da vitória do time italiano de futebol anunciada no rádio. Centenas de bandeirinhas e faixas com as cores da insígnia nacional surgem entre os viajantes em uma súbita celebração, euforia passageira que restou estampada em uma faixa com a inscrição “Forza Italia” fixada entre a sucata, decoração caricatural do precário nacionalismo. Sujeitos a um congestionamento em que a inércia não está apenas na imobilidade dos automóveis, mas no modo como os viajantes priorizam seus problemas individuais em detrimento da coletividade, a indiferença diante da realidade social leva ao desenvolvimento de situações tão trágicas que a espera passa a se tornar o menor dos problemas.
A estagnação faz emergir diversas problemáticas da vida privada que transformam a realidade em um espetáculo perturbador. O desconhecimento das razões do engarrafamento, bem como a recusa em buscar soluções para o bem-estar coletivo diante de problemas como alimentação, por exemplo, agravam a situação. À medida que a noite avança e a escuridão invade a cena e a câmera intencionalmente esquiva-se, o que faz aumentar ainda mais a sensação de impotência diante das contingências. Exemplo dessa tensão velada é o episódio que envolve o personagem Marco Montefoschi (Marcello Mastroianni). O ator, que se refugia na casa de uma família humilde para escapar da multidão de fãs que o assediam, é a representação precisa da influência do status quo italiano e da importância da cumplicidade masculina para a manutenção do poder. Bem acolhido pelo casal de moradores, o ator não demora a dar suas investidas inapropriadas à dona da casa, Teresa (Stefania Sandrelli). A mulher que está grávida é reduzida a um objeto de manipulação por seu marido, que visa obter, com a influência do hóspede famoso, seu desejado emprego como motorista do Cinecittà. Assim, percebemos pouco a pouco que o cinismo e a conivência são apenas indícios do que ainda está por vir.
Entre acontecimentos que transcendem a mera trivialidade, o terceiro núcleo de protagonismo é revelado em um episódio determinante para a narrativa. Martina (Ángela Molina), uma jovem que viaja tendo seu violão como companhia, é perseguida desde o início por três rapazes a bordo de uma Range Rover. No calar da noite, eles se direcionam ao carro onde dormem Martina e Mario (Harry Baer), que se aproximaram graças ao engarrafamento. Mario é agredido enquanto os três rapazes estupram Martina, em meio a olhares dos motoristas que, em uma cumplicidade criminosa, validam a violência com comentários que refletem a lógica por trás do crime. A angustiante cena do estupro junto à conivência dos espectadores evidencia de forma pavorosa os valores de uma sociedade marcada por contextos históricos de violência, onde o silêncio é instrumento que perpetua as opressões. A cena alude ao “Massacre de Circeo” que aconteceu em San Felice Circeo, em setembro de 1975, em que três rapazes sequestraram, torturaram e estupraram Rosaria Lopez e Donatella Colasanti, de 19 e 17 anos, respectivamente.
A ocorrência do estupro elimina qualquer possibilidade de final feliz, procedimento comum nos filmes de Comencini. A tentativa de vingança por parte de Mario, momento em que nós espectadores nos aproximamos de uma débil caracterização heroica, dilui-se em meio às condições do engarrafamento, quando ele percebe que seu projeto colocaria a vida de todos em risco. Sua decisão acaba por ser, afinal, apenas mais um registro da sensação de impotência impregnada em cada cena. O sentimento de devastação desencadeado pelo crime resta estampado na expressão desoladora no rosto de Martina. Uma das cenas finais revela o impasse no que se refere à possibilidade de felicidade: em um gesto de mútuo acolhimento, Mario e Martina entrelaçam as mãos entre olhares resignados e absortos diante de uma realidade que já não é mais essencialmente estática, mas violentamente móvel. O único aspecto vívido está no sangue impregnado na camisa de Mario, resultado de uma luta corporal com os estupradores antes do crime acontecer.
Com um helicóptero anunciando a liberação da estrada, nasce uma frágil esperança de retorno à vida cotidiana. Para nós, espectadores, vê-los partir seria um alívio, deixaríamos cair no esquecimento as cenas de uma sociedade indiferente às desigualdades, violências e opressões. Ansiosos pelo aparecimento dos créditos finais, esperamos a arrancada dos carros como se fossem as primeiras estrelas a surgirem na noite que pouco a pouco vai se firmando sem, no entanto, um carro conseguir se mover. O filme termina com um gosto amargo de sangue na boca do espectador, que, agora, não só observa inquieto o imobilismo dos carros, a total desesperança do fim do engarrafamento e a inação dos personagens, mas se vê refletido na tela. Cúmplice da resignação, o espectador é engolido pelo entorpecimento, como se a imobilidade dos personagens fosse também sua própria condenação.
O cinema italiano do século XX foi profundamente influenciado pelos impactos da Segunda Guerra Mundial. As consequências dos desastres sociais causados pelo regime fascista eram objeto de representação do neorrealismo. Predominantemente emergentes na segunda metade dos anos 1940 e estendendo-se até os primeiros anos da década de 1950, as produções cinematográficas neorrealistas representaram uma resposta estética e política fundamentada pelo olhar crítico à realidade com evidente propósito antifascista. O cinema italiano pós-guerra ficou, então, marcado pela necessidade de reconstrução, frequentemente refletida na representação das classes desfavorecidas, as mais afetadas pelos conflitos.
Embora Luigi Comencini tivesse acompanhado as criações neorrealistas nas circunstâncias de maior fervor e buscado aplicar o que aprendeu em suas obras, suas primeiras produções são frequentemente classificadas por muitos críticos como um “neorrealismo menor”. Pela combinação de comicidade e sentimentalismo excessivo, seus filmes falhavam em provocar uma reflexão crítica sobre a realidade social, procedimento caro ao neorrealismo. Na busca por atrair as camadas populares através do humor e da apropriação de temas como a desigualdade entre as classes sociais, o desemprego e as questões agrárias, esse tipo de narrativa fundou o gênero mundialmente reconhecido no final da década de 1950 como commedia all’italiana. Quando influenciados pelas produções hollywoodianas vigentes, os filmes do gênero eram caracterizados por narrativas com personagens tipificados, enredos cômicos e desfechos otimistas. Entretanto, em um contexto marcado pelo fascismo, o riso provocado pela commedia refletia um paradoxo: uma diversão momentânea confrontada pela violência sempre presente.
Frequentemente associado ao gênero cômico, Comencini ficou preso ao dilema de tentar provocar e sustentar o riso com a utilização de temas e técnicas apreendidos com os mestres do neorrealismo. Esse contraste entre abstração e realidade já se manifesta no título de sua mais conhecida obra, Pane, amore e fantasia (Pão, amor e fantasia, 1953). A comédia romântica narra as aventuras amorosas do marechal aposentado Antonio Carotenuto (Vittorio De Sica) e retrata com humor a vida rural na Itália do pós-guerra. A narrativa explora a luta pela sobrevivência (pão), as relações afetivas (amor) e a busca pela felicidade por meio da imaginação (fantasia). Dessa forma, alcançar as classes populares não dependia tanto da construção de seu retrato fiel, mas da habilidade de entretê-las, muitas vezes, às custas de suas próprias desventuras.
O ponto alto das realizações de Comencini se deu em meio à crise do cinema italiano, marcada não por uma falta de estilo, mas de uma ética que fosse capaz de redirecionar a estética em seu teor político. A dificuldade em realizar uma síntese entre a linguagem cinematográfica e a experiência histórica resultou na preferência por um imaginário pequeno-burguês, caracterizado por uma visão conservadora e de estabilidade ilusória. Contudo, L’ingorgo se destaca por romper com o padrão de entretenimento e desafiar a pretensa passividade do público. É possível que os anos que se sucederam às primeiras incursões no cinema testemunharam o amadurecimento da visão autoral de Comencini, o que possibilitou a utilização de novos procedimentos cinematográficos, como é o caso da adequação do tom humorístico como forma de sátira aos costumes italianos e não mais como simples procedimento de distração.
Nos anos 1970 e 1980, o cinema italiano afastou-se da representação direta das consequências nefastas da guerra. No entanto, os ecos do conflito ressoaram por anos, mantendo vivas as tensões socioeconômicas, políticas e culturais, que, frequentemente, culminam em experiências históricas marcadas pela violência. Esse período foi marcado por uma atmosfera opressiva, uma vez que uma onda de terrorismo estatal e repressão política dominou diversos países do mundo, gerando disputas armadas constantes entre posições políticas antagonistas. É nesse contexto dos “Anos de Chumbo” que o filme L’ingorgo se realiza, entre as forças revolucionárias e reacionárias em um país marcadamente autoritário como a Itália. Nesse sentido, o longa-metragem revela os problemas sociais decorrentes da extrema violência vivida e do sentimento de temor que dominava a experiência cotidiana, diante do espectro fascista que nunca deixou de assombrar o mundo todo.
Apesar de ter mantido certa postura alheia à antifascista de alguns cineastas italianos, com L’ingorgo, Comencini parece tentar se redimir com aqueles autores dos quais aprendeu técnicas e procedimentos fundamentais para a representação crítica da realidade social. Em outras palavras, buscou compreender “a diferença essencial que existe entre abastecer um aparelho produtivo e modificá-lo” (Benjamin, 1934). Embora o longa-metragem não explore as formas de resistência do povo italiano em meio às situações de privação e violência, mantendo a tendência burguesa de representação dos conflitos de classe a partir da figuração estereotipada, o filme expõe o modo como o fascismo impregnou-se na vida cotidiana, partindo da desigualdade entre as classes sociais à violência escancarada. A trama, ao transformar a comicidade habitual em dramaticidade, revela as incoerências de uma sociedade que tenta superar um passado que insiste em se perpetuar.
Como espectadores, devemos nos permitir ser conduzidos pelo processo reflexivo que a obra de arte exige. Isso implica não apenas desconstruir os estereótipos, frequentemente planejados pelo autor, mas situá-los como produto de um contexto histórico específico. Esse procedimento coloca as produções artísticas em justaposição aos seus contextos sociais de criação e desenvolvimento (Betella, 2016). Por isso, nossa interpretação da obra deve ultrapassar a relação entre forma e conteúdo, em favor da análise de sua função social exercida no interior das produções. Um filme não é simplesmente uma sucessão de imagens, são instrumentos que reconfiguram a nossa percepção sobre a realidade, por isso, a atividade reflexiva é inerente à obra de arte. Quando Benjamin (1934) questiona a qualidade de uma produção artística que não transforma os leitores/espectadores em colaboradores, isto é, que não instiga ou desafia a passividade da recepção, corremos o risco de alimentar um sistema que nos seduz a aceitar nossa própria dominação e exploração. Lembremos que a proposta do crítico alemão em revelar o autor como um produtor ocorre justamente em uma conferência que discute o papel dos artistas no combate ao fascismo. “O espírito (Geist) que fala em nome do fascismo deve desaparecer” (Benjamin, 2012: 146), não somente aquele que se materializa na mobilização das massas, ou que nos silencia cotidianamente, mas também aquele que nos obriga a criar reproduzindo perspectivas ideologicamente oportunas. Nesse sentido, o cinema sempre será um poderoso instrumento para reconhecer as violências que nos circundam, nos ajudando a identificar as feridas abertas de um tempo que, por vezes, não podemos nomear como passado.
Referências
L‘INGORGO. Direção: Luigi Comencini. Produção: Clesi Cinematografica, Greenwich Film Productions, José Frade Producciones Cinematográficas S.A., Albatros Filmproduktion. Roma: Titanus, 1979. 1 DVD. (120 min.)
BETELLA, Gabriela Kvacek. “O eterno fascismo italiano” e a resistência dos romances de Ignazio Silone, Carlo Levi e Vasco Pratolini. Topoi, Rio de Janeiro, v. 17, n. 32, p. 22–49, jan. 2016.
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras escolhidas I). São Paulo, Brasiliense, 2012. p. 129-146.
CORTÁZAR, Julio. A autoestrada do sul. In: CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002. p. 09-41.
FABRIS, Mariarosaria. Neorrealismo Italiano. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do Cinema Mundial. Campinas, Papirus Editora, 2006. p.191-219.
MARCUS, Millicent. Comencini’s Bread, Love, and Fantasy: Consumable realism. In: Italian Film in the Light of Neorealism. New Jersey, Princeton, 1986. p.121-143.