A imanência do deserto

*por Matheus Massias

Ocorrido entre 23 a 30 de maio em Florianópolis, o FAM 2014 (Festival Audiovisual MERCOSUL), evento promovido de forma generosa ao grande público, com sua programação completamente gratuita e abarcando vários certames no que rege a questão audiovisual, desde programação infantil para as escolas da região (algumas públicas em que boa parte das crianças não têm acesso ao cinema) levarem seus alunos, passando por debates e pelas mostras de curtas e longas produzidos no Brasil e nos demais países da América Latina. Muito bem organizado e divulgado, o FAM deste ano trouxe ao público filmes que divergiam entre interessantes e instigantes mostras e descartáveis e patéticas produções.

                   A relevância do FAM, dentre outras coisas, está em trazer para as telas a produção latino-americana, sendo de extrema necessidade o trabalho colaborativo com instituições públicas de incentivo a cultura para maior distribuição continental dos filmes. Muitos deles dificilmente chegarão ao norte e nordeste do país, o que é uma pena; os filmes exibidos mostram de forma proeminente o diálogo que se tem entre o Brasil e os países de fronteira (Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela, etc.), um diálogo que talvez só seja visível por causa da proximidade geográfica do sul do país em relação a esses países, mas que mostram conflitos e necessidades humanas inerentes a todas e quaisquer pessoas, inclusive pertinentes aos contextos políticos e ideológicos que temos no Brasil.

                   Gostaria de discorrer sobre os curtas que vi e admirei, mas reduzirei meu texto aos dois filmes que mencionei no título. No entanto, são destacáveis as seguintes produções: “Tempo Adagio” (curta de uma riqueza poética visual incrível, da Venezuela), “Acalanto” (tocante, contado com repetições de narração e planos que acrescentam para sua beleza), “Vaqueiros Encantados” (documentário que mostra a vida e a cultura dos vaqueiros do Marajó/PA), “Sinal Fantasma” (trabalho de conclusão de curso que, para mim, foi uma mistura incrível de video game, surrealismo das pinturas de Dalí e Magritte, e mistério, com uma forma e natureza bem assombrosas), “Eu Sou de Lá” (outro documentário que mostra o quotidiano, os problemas e as vitórias de estudantes africanos na UFSC), “Noite Clara” (com a presença de Gustavo Jahn de “O Som ao Redor”, o curta explora a questão da fotografia, marcado por doses de surrealismo também), “Jairboris” (curta de SP, ótimo no que tange os limites de documentário e ficção, alternando a narração de Jair (? Boris?) com uma poesia industrial linda, a partir de imagens de uma fábrica e maquinários, e humor futebolístico), “Des(pecho)trucción” (curta venezuelano, divertido e criativo em sua montagem), “A Navalha do Avô” (terno e bem narrado, conta com a participação do grande teórico Jean-Claude Bernardet como o avô), e “Diários Daltônicos” (que apesar da ridícula aparição de estrelismo da diretora fazendo atrasar a exibição dos curtas, foi interessante, bem editado, bem pesquisado, nos dando uma outra cor sobre a vida dos daltônicos).

       Durante essa semana de FAM, muitos dos filmes exibidos tinham vários aspectos em comum, mas a questão da imanência do deserto chamou-me atenção. O conceito de imanência já foi abordado em muitas áreas do conhecimento, desde a filosofia à religião; adotarei a ideia de imanência como um fator determinante para a condição humana. O deserto, como fator natural e ambiente, é uma paisagem recorrente em muitos filmes, principalmente no cinema norte-americano, como rapidamente se vem à cabeça “Onde os Fracos Não Têm Vez” (a fronteira Tex-Mex), “Sangue Negro”, “Paris, Texas” (mesmo sendo do diretor alemão Win Wenders), entre tantos outros e que, de certa forma, também tem algo chamativo na questão da imanência.

       “El Manto de Hiel” (2014), filme argentino, de Gustavo Corrado, começa com uma curiosa citação de “A Divina Comédia” que permeia o filme em seu decorrer. A atmosfera do filme é toda voltada para o deserto, o deserto é o começo e o fim de uma história. O espectador é apresentado ao protagonista que, com o carro quebrado no meio do deserto, traz consigo uma maleta e procura ajuda. Não temos informação alguma de seu passado, apenas que ele parece um (jovem) homem rico, por causa do seu modo de vestir e seu carro. Em um vilarejo, cercado por escombros, no meio do nada, no meio do deserto, o protagonista encontra abrigo. Curiosamente ele é recebido com uma tapa, de uma mulher que, igualmente, não sabemos quem é. A partir desse momento o filme é revertido de acontecimentos bizarros, os habitantes daquele lugar são uma mistura da família de “O Massacre da Serra Elétrica” e “A Casa de Cera” com os dois jovens de “Violência Gratuita”, e através de jogos mentais e provocações pelas pessoas daquele lugar, o protagonista se vê num beco sem saída e, de fato, o deserto não parece ter saída.

       Os mecânicos dizem que a ajuda para o conserto do carro chega amanhã, um dos homens lhe oferece misteriosamente um quarto para se hospedar, todos ali são estranhamente solícitos. A direção de arte do filme fez um trabalho impecável, o cenário onde tem o piano e o bar é decorado de forma magnífica, os animais ali empalhados são uma das coisas que fundem o interior do filme com seu exterior, o deserto. O trabalho de direção de Corrado também é admirável, assim como a desenvoltura dos atores que provocam um terror com teor de humor no homem que ali havia chegado. “El Manto de Hiel” tem toques de surrealismo também, hora ou outra me lembrei de “Um Cão Andaluz”, e seus flashfowards de pensamento sempre enganam e assustam de forma eficiente.

                   O deserto é fator condicionante em vários momentos do filme, ou praticamente todos. O rapaz da maleta para naquele lugar apenas para consertar seu carro, no dia seguinte pretende ir embora; no entanto, o deserto funciona como uma força, sempre puxando e arrastando alguém para ele. Uma fuga é inevitável. Os habitantes dali, aparentemente, vivem há anos no lugar e o fator imanência se reflete do deserto para eles, funcionando como um ciclo para quem quer que se aproxime daquele lugar. Um momento-chave no filme é quando planejando fugir, o protagonista informa o pianista sobre sua investida; o pianista, empolgado com a situação, decide acompanhá-lo. Algo dá errado, mas no dia seguinte, o pianista foge com um carrinho pelos trilhos do deserto; tempos depois ele é encontrado morto, baleado…

       O mistério que “El Manto de Hiel” traz é eficiente, o deserto é um agente externo, porém sempre penetrante. É, sem dúvida, um dos melhores filmes de 2014.

Por outro lado, mas ainda com a questão da imanência do deserto, “A Oeste do Fim do Mundo” (produção Brasil-Argentina) é um filme que me agrada bastante, pois trata de um assunto sem abordá-lo diretamente, o que torna seu progresso mais difícil para quem o realiza, assim como pode parecer vago ou um pouco chato para quem o vê. O filme é um binômio de drama pós-guerra (Guerra das Malvinas, entre argentinos e ingleses) e abuso sexual, que converge em duas de suas personagens. O deserto é presente do começo ao fim, seja nos momentos de road movie com Ana (a brasileira Fernanda Moro) ou com León (César Troncoso), que é um homem amargo e solitário, dono de um posto de gasolina no meio do nada, no meio do deserto. Ana, uma andarilha, não parece ter destino (embora tenha), está vulnerável a estrada e caronas de estranhos: na boleia de um caminhoneiro que lhe abriga, ela descansa, ele passa os dedos sutilmente nas pernas da moça que, subitamente, sai de lá, ele pede desculpas, mas para a moça aquilo não teria volta, nem que ela tivesse que congelar no deserto à noite.

       Quando os caminhos de Ana e León se cruzam, o deserto é um elemento característico entre os dois, e parece completar um ponto, formando um triângulo, se é amoroso ou não só o filme pode contar. A direção do brasileiro Paulo Nascimento, que também escreveu o roteiro, é respeitável, e as repetições de narração são fundamentais para o desenvolvimento da história: os planos feitos ao redor da porta são fantásticos, sempre revelando a separação que (não) há entre a casa e a rua, o deserto. Os conflitos entre Ana e León são explorados de forma eficaz e revelam quem são aquelas pessoas por trás da aspereza desértica que suas vidas carregam. É interessante notar o comportamento daqueles que moram naquela região, são pessoas que pouco falam, são metamorfoses da calmaria do deserto. Todavia, o contrário disso é Ana e seu jeito—sempre curiosa e a fim de uma conversa—que incomoda bastante León, e até mesmo Silas.

       Silas (Nélson Diniz) é um personagem importante. Ele aparece praticamente todo dia para ver León, seja para conferir se está tudo certo, se ele precisa de algo ou se ele conseguiu consertar sua moto (uma Harley-Davidson, que por sinal patrocinou o filme), ou até mesmo para sacanear o amigo, que não sabe cozinhar ou preparar o mate. É de Silas que escutamos uma espécie de aviso, é ele que informa a garota sobre a imanência do deserto, pois ela vai ficando, ficando, ficando cada vez mais dias ali. Ainda é difícil para ela ir embora, caronas são sinônimos de perigo.

       “A Oeste do Fim do Mundo” é o retrato do conflito de pessoas, sejam com elas mesmas e seus passados, ou delas com seus familiares e/ou pessoas próximas. No filme, várias imagens do deserto, montanhas, e afins ilustram a história, como passagens de tempo ou apenas para complementá-la, não que funcione como um “jabá” (como um rapaz do meu lado comentou), mas para ratificar o poder imanente do deserto.

       Ocorrido durante oito dias no Centro de Convenções e Eventos da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) o Festival Audiovisual MERCOSUL, muito bem organizado e executado, trouxe questões e debates pertinentes e bons filmes em sua programação. Assim como Cannes desse ano, nenhum filme foi exibido em película no FAM 2014, que fechou sua programação de forma curiosa com “Riocorrente”, de Paulo Sacramento. Durante os créditos finais, algumas pessoas vaiaram o filme e gritaram coisas descorteses. “Riocorrente” talvez seja o próximo “O Som ao Redor” no que tange tema e construção de personagens e todo um medo social e psicológico que paira nelas e nos espectadores, sendo assim uma crítica ao mesmo tempo sútil e inquietante para um público da classe média. O filme deve estar ou estará em cartaz em breve pelo Brasil. Além de “Riocorrente”, a programação teve na exibição dos longas o argentino “La Paz” de Santiago Loza; “El Lugar del Hijo” de Manuel Nieto; uma produção Uruguai-Portugal, “Rincón de Darwin” de Diego Fernández Pujol; o chileno “Matar a un Hombre” de Alejandro Fernández Almendras; além de mais dois brasileiros, “Amor, Plástico e Barulho” de Renata Pinheiro” e o documentário “Cidade de Deus – 10 Anos Depois” de Luciano Vidigal e Cavi Borges, que foi premiado na noite de encerramento.

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