Samuel Douglas Farias Costa*
É com um novo e grande fôlego que recebemos as cores de Almodóvar de volta às telas de cinema com emblemático A Pele que Habito (La Piel que Habito, 2011). O consagrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar nos apresentou este ano uma obra que merece destaque em sua extensa filmografia. Seus filmes são sempre imprevisíveis, com roteiros surpreendentes e bem concluídos, o que se destaca em A Pele que Habito é que o diretor busca mais inspiração no cinema noir, suspense e terror e menos no melodrama que caracterizou alguns de seus grandes filmes recentes como Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Fale com Ela (2002) e Volver (2006).
A Pele que Habito é baseado no romance Tarântula de Thierry Jonquet. O diretor também se inspira e homenageia filmes clássicos como A Noiva de Frankenstein (1935) e Os Olhos Sem Rosto (1960). Porém, a obra é muito mais do que uma adaptação e traz consigo toda a maestria do cinema de Almodóvar. O filme nos remete aos seus trabalhos da década de 80 e início de 90, como Labirinto de Paixões (1982), Matador (1986) A Lei do Desejo (1987) e Ata-me! (1990), todos estes relacionados à personagens criminosos e com a ilustre presença de Antonio Bandeiras.
O Dr. Robert Ledgard (Antonio Bandeiras) é um cirurgião plástico que busca desenvolver uma pele “humana” mais resistente. Perseguido por lembranças da sua esposa que teve o corpo queimado em um acidente de carro, ele faz seus misteriosos experimentos que ultrapassam os princípios éticos da ciências e da medicina. Sua ajudante é Marilia (Marisa Paredes) e juntos são responsáveis por experiências em Vera (Elena Anaya), uma jovem mulher que é mantida presa e da qual pouco sabemos. O filme começa cheio de mistérios e segredos, o espectador nada sabe sobre o que se passa. Logo outros personagens aparecem e deixam a trama mais complexa e a caminho de respostas. Zeca (Roberto Álamo) é o filho de Marilia que aparece fantasiado de tigre e é reconhecido por uma mancha no traseiro, ele é responsável por um papel cômico e exagerado, o que também nos remete aos primeiros filmes de Almodóvar. Os personagens Vicente (Jan Cornet) e Norma (Blanca Suárez) aparecem já por volta da metade da obra e acrescentam suspense, mistério e drama à trama.
Com inspiração em diversas referências, Almodóvar consegue criar em belo roteiro e uma trama complexa, que nos é apresentada e desvendada pouco a pouco e na medida certa. O diretor não segue uma linha temporal convencional e abusa de longos flashbacks e idas e vindas no tempo. Presente, passado e futuro se encaixam de forma coerente à uma conclusão muito bem fechada e extraordinária.
A trilha sonora de Alberto Iglesias, que já trabalhou com o diretor em outros longas, traz ao filme a dose certa de mistério e intensidade. Outras canções, como as de Concha Buika e a versão de Between the Bars de Chris Garneau, também merecem destaque por estarem de acordo com a construção de gênero e trama do filme. Destaque também para a ótima cena de perseguição entre Dr. Ledgard e Vicente ao som de Shades of Marble de Thentmoller.
Os personagens são cheios de segredos e ninguém é completamente vítima ou criminoso, todos fazem parte de uma cadeia de acontecimentos e ações que fogem de concepções morais ou um pré-julgamento. As atuações são belíssimas com destaque para Elena Anaya que põem pra fora toda a intensidade de sua personagem. Talvez Marilia fosse a personagem que merecesse mais destaque e Marisa Paredes não nos surpreende muito em seu papel, embora ele não desentoe o filme.
Se em todos os filmes do diretor o corpo é um dos principais elementos, neste isso é estendido a um grau muito maior. O corpo é biológico, mas também simbólico, é fruto de construções sociais, se comunica e se transforma. Em A Pele que Habito a importância do corpo e de sua transformação é um ponto chave.
Pode não ser o melhor filme de Almodóvar, não é fácil alcançar a sensibilidade de Fale com Ela ou Tudo Sobre Minha Mãe, porém, é um dos. É um filme diferente e com um estilo que se destaca frente aos seus últimos trabalhos. A Pele que Habito é um deleite para quem acompanha e admira a filmografia do diretor. Mais do que a magistralidade do cineasta espanhol, pois isso nós já conhecemos, em 2011 presenciamos a renovação da sua genialidade nas telas de cinema.
*Samuel Douglas Farias Costa é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e redator do blog “Avant, Cinema!” http://avantcinema.wordpress.com/.
Amo o Pedro Almodovar dos primeiros filmes que determinaram um modo de fazer cinema pré e pós almodovariano a meu ententer e, de modo especial, os dois que lhe deram o prêmio da Academia Americana de Cinema: Todo sobre mi Mamá e Hable con Ella. Aparentemente, desde que começou a precisar satisfazer o mercado da Sony que o empurra a procurar repetir elementos desses dois filmes como se fossem uma fórmula de sucesso para garantir outro Oscar às distribuidoras, seus roteiros descambam para enredos “noir”, seus personagens prescindem de ética e simpatia, e são banais na necessidade de “surtir um efeito” em vez de relatar ainda que fantasiosamente aquele toque profundamente humano de outros filmes seus. Depois de Hable con Ella parece que ele se perde em escabrosos complexos de castração, enredos pseudo fantasmagóricos e inconclusivos, com graves problemas de desumanidade como o personagem de “Zeca”, um Barbie bem dotado, infelizmente não de gênio, aliás como todos os personagens de La Piel que Habito, todos consumados bandidos, ninguém com quem o pobre espectador possa identificar-se ou por quem possa torcer. O mesmo aconteceu com o personagem de Volver interpretado pela divina Carmen Maura e o personagem do extraordinário ator mexicano Gael Garcia Bernal em La Mala Educación, por exemplo, que beiram a caricatura, não se sabendo afinal quem deveria ser o/a protagonista desses mal costurados enredos cheios de pontas soltas. Em La Mala Educacion, el gran Pedro perdeu uma imensa oportunidade de tocar num assunto que na Espanha de Cristo Rey (e seu debochado fundador José Escrivá, pai de vários filhos ilícitos entre outros delitos perante o Vaticano), poderia ter abordado mais a fundo a questão dos abusos sexuais de menores por parte de sacerdotes. O gato mudou de sexo e sumiu de cena, virando uma atriz que não emplacou! A fotografia dos últimos filmes de Almodovar melhorou com a tecnologia atual, mais avançada, suas produções são bem mais caras, os elencos melhor remunerados (Antonio Banderas e Penélope Cruz lançados por Almodóvar tornaram-se grandes sucessos de bilheteria em quaisquer filmes de ação que os levaram aos melhores contratos de Hollywood pese o comercialismo dos seus Zorros e suas Piratas do Caribe e Ana Maria Bahianas), mas o caráter inovador, até mesmo revolucionário de filmes como Mujeres al borde de un ataque de nervios, Matador, La Ley del Deseo, ¡Átame!, Kika, La flor de mi secreto,e Carne trémula por exemplo continuam sendo, por enquanto, meus preferidos. Mas Pedro Almodovar pode voltar a surpreender e o espero vivamente!