Lina Távora é graduada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com a monografia de conclusão de curso: “André, o jovem contemporâneo – O homem que copiava e seus elementos pós-modernos”. Atualmente é mestranda em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), na linha Imagem e Som. E-mail: lina.tavora@gmail.com
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“André tem 20 anos e o segundo grau incompleto. É operador de fotocopiadora na livraria e papelaria J. Gomide, no 4º Distrito, em Porto Alegre. Mora com a mãe. Gosta de desenhar e gosta de Sílvia. André precisa desesperadamente de trinta e oito reais. Sílvia tem 18 anos. Estuda à noite e trabalha como balconista numa loja de roupas femininas. Mora com o pai, gosta de ler e não é muito de figo. Sílvia marcou um encontro no alto do Corcovado e não pode faltar. Marinês trabalha na papelaria, com André. Namora, mas não muito, um alemão que vive na Holanda. Marinês fica muito bem em vestidos que não tem dinheiro para comprar. Cardoso faz tudo por ela. E Marinês faz de tudo com ele. Quase tudo. Cardoso parou de fumar. Há dois dias, a pedido de Marinês. Ele nem está sentindo muita falta do cigarro. Só às vezes, depois do almoço. Aquele cigarrinho. Se você não fuma, não sabe o que é aquele cigarrinho, depois do almoço. André precisa de trinta e oito reais para comprar um chambre de chenile e para salvar a vida de Sílvia. André faz muitos planos para conseguir dinheiro. E todos dão certo” (O Homem que Copiava).
A partir da percepção fragmentada de mundo do protagonista André, o filme O homem que copiava (2003), de Jorge Furtado, multiplica imagens. O filme-colagem alarga a fronteira entre o que é original e o que é cópia, duplicando textos, imagens, referências. É na multiplicidade destes textos, percebidos por André, que se centra este artigo.
Pausa para Jorge
Jorge Furtado é um diretor com diversas referências, cinematográficas, plásticas e literárias. Em entrevista à Revista de Cinema o diretor fala sobre a construção transtextual dos seus filmes: “todo mundo sofre influências, quem se diz original está apenas extremando sua ignorância” (CAETANO, s.d.).
Jorge Furtado não pode ser dissociado da Casa de Cinema de Porto Alegre. A produtora foi criada no final da década de 80 por cineastas que já trabalhavam juntos. O cinema nacional estava em crise e os profissionais da área procuravam alternativas para não deixar a produção audiovisual do país esvair-se. A Casa de Cinema nasce como uma cooperativa, formada por quatro produtoras (Luz Produções, Roda Filmes, Invídeo e Um Produções) e 13 sócios, em 1987. Hoje, a Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora independente, conta com seis sócios: Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo, Nora Goulart, Luciana Tomasi e Jorge Furtado.
Foi quando assistiu Deu pra ti, anos 70 (1981), que Furtado decidiu que ia fazer cinema. O seu primeiro curta-metragem foi em 1984, Temporal, em parceria com José Pedro Goulart. Também em parceria com Goulart, O dia em que Dorival encarou a guarda, é de 1986.
O internacionalmente conhecido Ilha das Flores, que ganhou Urso de Prata em Berlim (1990), é de 1989. O filme é um falso documentário, uma ficção que aborda a realidade da disputa entre porcos e homens por restos de comida no lixão da Ilha dos Marinheiros. No início do curta, observamos a advertência: “Isso não é uma ficção”, mas tampouco é documentário. A colagem é bastante presente em Ilha das Flores.
A metalinguagem trabalhada por Furtado torna-se ainda mais explícita no curta-metragem O sanduíche (2000). Um casal despede-se. Na verdade, eles estavam ensaiando uma peça de teatro. Comem um sanduíche. Outra surpresa: o que está acontecendo mesmo é a filmagem de um curta-metragem. A filmagem ocorre em praça pública. O que é real e o que é falso? O que é documentário e o que é ficção? A estrutura do curta-metragem assemelha-se a boneca russa matryoshka – uma história contém outra, que contém outra etc., sempre abordando a dualidade, que é essencial às obras cinematográficas: ficção e realidade. No final, o diretor Jorge Furtado entrevista a platéia sobre o fazer cinematográfico. Até esta parte final parece ser “falsa”, com as mesmas respostas repetidas pelos espectadores.
Antes de Furtado lançar seu primeiro longa-metragem para o cinema, realiza duas produções para a TV, que ele considera suas primeiras experiências com longa: o episódio “Anchietanos” (1997), da série Comédias da Vida Privada, e a minissérie Luna Caliente (1999).
Para o cinema, o primeiro longa foi Houve uma vez dois verões (2002). O filme, captado em câmera digital, pode ser classificado como uma comédia romântica. Quando o diretor obtinha recursos para O homem que copiava, inscreveu o roteiro no Concurso de projetos de Filmes de Baixo Orçamento da Secretaria do Audiovisual, do Ministério da Cultura. Houve uma vez… ganhou. O enredo, que fala de jovens vivendo suas primeiras experiências amorosas, tem como cenário diversas praias do litoral gaúcho, fora da temporada. O elenco é formado por jovens atores gaúchos.
A versatilidade do diretor é comprovada, trabalhando com o formato digital e uma temática diferente de seus primeiros curtas. Jorge Furtado não deixa, porém, de trabalhar a metalinguagem, desvendando as possibilidades permitidas pelo audiovisual. Houve uma vez… é construído por ciclos que acabam com Roza (Ana Maria Mainieri), dizendo para Chico (André Arteche) que está grávida. Outro recurso recorrente é a narração em off pelo personagem central, Chico.
A construção do roteiro de O homem que copiava (2003) iniciou-se antes, em 1995, da realização do primeiro longa-metragem, Houve uma vez dois verões.
Uma leitura intertextual
Cinco anos foi o tempo de duração de construção do roteiro de O homem que copiava. São inúmeros os elementos pós-modernos – a hibridização de gêneros cinematográficos, a presença de elementos midiáticos, o conteúdo abordado – aqui vamos focar a multiplicidade de textos, construídos e interligados pelo personagem André.
Ihab Hassan formula um esquema de oposições estilísticas entre os elementos modernos e os pós-modernos. Opondo-se aos termos gênero/fronteira no movimento estético modernista, Hassan coloca os conceitos de texto/intertexto caracterizando os artefatos culturais do pós-modernismo (apud HARVEY, 2003: 48).
“Os críticos literários ‘modernistas’ de fato têm a tendência de ver as obras como exemplos de um ‘gênero’ e de julgá-las a partir do ‘código mestre’ que prevalece dentro da ‘fronteira’ do gênero, enquanto o estilo ‘pós-moderno’ consiste em ver a obra como um ‘texto’ com sua ‘retórica’ e seu ‘idioleto’ particulares, mas que, em princípio, pode ser comparado com qualquer outro texto de qualquer espécie” (HARVEY, 2003: 49).
É assim que o filme O homem que copiava relaciona suas referências. Os textos são combinados e recombinados, de uma forma desconstrucionista. O “desconstrucionismo” é um “modo de pensar sobre textos e de ler ‘textos’. A vida cultural é vista como uma série de textos em intersecção com outros textos, produzindo mais textos” (HARVEY, 2003: 53). Procurar, dissolver e embutir um texto em outro é o que caracteriza o impulso descontrucionista. Decorrente dessa característica surge a colagem ou montagem. A significação de artefatos culturais (ou “textos”) não é unívoca ou estável.
“Cada elemento citado, diz Derrida, ‘quebra a continuidade ou linearidade do discurso e leva necessariamente a uma dupla leitura: a do fragmento percebido com relação ao seu texto de origem; a do fragmento incorporado a um novo todo, a uma totalidade distinta” (DERRIDA apud HARVEY, 2003: 55).
Operador de fotocopiadora
Nos primeiros 20 minutos do filme poucos diálogos são observados. O personagem principal narra a história, que segue o fluxo de sua consciência, em voz em off. O recurso já havia sido trabalhado por Jorge Furtado em outros trabalhos, como em Ilha das Flores, no qual o narrador não participa da história. No ensaio “Ângelo anda sumido: conquista e conscientização do público. O argumento de Ângelo anda sumido”, Newton Cannito descreve a narração do curta-metragem Ângelo anda sumido, também de Furtado:
“Não se define, nesse ponto, em que tempo a voz narra: em alguns momentos parece ser concomitante à ação (atuando como pensamento sobre ações cotidianas), mas na maior parte de suas ocorrências parece estar narrando a história como se ela já se situasse no passado” (CANNITO, 2003: 245-6).
O comentário caracteriza, também, a narração de André. Percebemos, pela blusa que o protagonista veste quando conta a sua história, que várias ações ocorreram em um tempo passado, sendo outras no mesmo tempo da fala. Jorge Furtado associa a narração em primeira pessoa, utilizando linguagem coloquial, com neologismos e gírias, ao estilo literário inglês skaz. Um exemplo deste estilo é O apanhador no campo de centeio (The catcher in the rye), de J. D. Salinger. Holden Caulfield é o personagem do livro. A relação de Holden e André é a fala/pensamento que não pára nunca.
O personagem apresenta os outros membros da trama. É assim que André fala de Silvia pela primeira vez: “ela chegou. Linda. Ela vai direto para o quarto. Acho que janta na rua. Às vezes ela pega algumas coisas na cozinha, só às vezes, quase nunca. Ela chega sempre depois das onze e vai direto para o quarto. Acho que ela estuda à noite, chega sempre com os livros”.
André apresenta sua colega de trabalho, também em off: “eu não falei da Marinês. Ela tinha ido ao centro, pagar uma conta. A Marinês também trabalha na loja, nas coisas do balcão: lápis, borracha, cola. Gostosa. O pior é que ela sabe que é gostosa”.
Antes de tornar-se operador de fotocopiadora na papelaria J. Gomide, André trabalhava como empacotador em um supermercado. As duas funções não exigem raciocínio apurado e tornam-se ações mecânicas. André explica para Marinês que na papelaria não tem que ficar em pé o tempo todo e é possível ler, pelo menos, partes de textos, que as pessoas deixam para copiar. Em off, André declara:
“Às vezes dá pra ler alguma revista lá na loja, mas na maior parte do tempo eu fico lendo as coisas que as pessoas trazem para copiar. Enquanto estou tirando as cópias só consigo ler algumas linhas de cada folha. Já é alguma coisa”. [1]
Fragmentação, palavra tão característica do período pós-moderno, é ligada ao personagem André em diversos aspectos. O jovem, além de construir suas visões de mundo a partir de partes de textos fotocopiados ou de imagens da televisão, passeia por mundos diferentes e até contraditórios. Este processo de aprendizado pode ser analisado como metáfora dos jovens de hoje, que buscam na Internet os assuntos que os interessam.
O conhecimento de André é segmentado, sendo ele mesmo um sujeito fragmentado. Para Stuart Hall, com a passagem da modernidade para a pós-modernidade ocorre a “crise da identidade”, com o descentramento do sujeito, que passa a ser constituído por diversas identidades (HALL, 2003: 10-3).
André é operador de fotocopiadora em uma papelaria, como ele mesmo define-se. O jovem é um cidadão que cumpre todos seus deveres como tal. Ele mora com a mãe, paga contas e impostos e não sai muito de casa, tendo como diversão noturna o voyeurismo. André observa, por sua janela, seus vizinhos com seu binóculo, que demorou um ano economizando dinheiro para comprar. Para Jameson, a questão do voyeurismo na pós-modernidade não necessita de motivação. Na sociedade do espetáculo, o olhar está em todo lugar e em nenhum lugar (1995: 222).
Com a descrição das primeiras características de André, poderíamos definir o sujeito: um jovem correto. Mas o que dizer de seus outros atos? André não diferencia comportamentos morais de amorais, ou pelo menos não entra em questionamentos do tipo. No decorrer do filme não se percebe que o personagem transforma-se, tornando-se “criminoso”, quando começa a copiar dinheiro, assaltar banco, atirar em uma pessoa e planejar duas mortes. André transita entre mundos opostos. Ele apresenta personalidades distintas e até divergentes.
O comportamento de André pode ser analisado como esquizofrênico, ou esquizóide. Além da questão das ações de André, o jovem distingue-se dentro da “normalidade”, cultivando fantasias expressas em seus desenhos, nas colagens de seu quarto e na paixão por Silvia. Quando o amigo Cardoso entra no seu quarto pela primeira vez e verifica todos os recortes de revista pregados na parede, formando painéis de colagens, declara:
“Cardoso: Tu é doente, cara?
André: sou”.
Para Hassan, há a dualidade entre “paranóia” – moderna – e “esquizofrenia” – pós-moderna. Frederic Jameson também coloca a esquizofrenia como característica da contemporaneidade. Para ele, a análise que se deve fazer do termo é voltada para um “modelo estético sugestivo” (JAMESON, 1997: 52). A esquizofrenia, no caso, iria não tanto diagnosticar, mas descrever peculiaridades da pós-modernidade.
A pós-modernidade muda a relação do sujeito com o tempo, ocorre a ruptura da temporalidade. Jameson coloca que a identidade pessoal afirma-se na capacidade do sujeito de unificar passado, presente e futuro. Para a construção de uma sentença também é preciso unificar os tempos. Com a ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à experiência dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não relacionados no tempo (JAMESON, 1997: 53).
“O modernismo dedicava-se muito à busca de futuros melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concentrar-se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e por todas as instabilidades (inclusive as lingüísticas) que nos impedem até mesmo de representar coerentemente, para não falar de conceber estratégias para produzir, algum futuro radicalmente diferente” (HARVEY, 2003: 57).
André lê textos sem, muitas vezes, conhecer o contexto de cada obra. Segundo Jameson, a “falta de profundidade” é qualidade fundamental da arte pós-moderna. A produção cultural atual valoriza a aparência e o impacto instantâneo. No caso de André, a superficialidade dá-se principalmente pelo deslocamento dos artefatos culturais.
André lê o soneto número 12 de William Shakespeare, em um de seus trabalhos na fotocopiadora. Com suas leituras fragmentadas, André não consegue ler o último verso, o 14º, – exatamente o que dá o sentido do soneto, ao falar que os filhos são o modo de vencer a morte.
“Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-me o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta têmpora assedia;Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascendo a graça nova.Contra a foice do Tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate”
O cinema também é uma forma de ganhar do tempo. Os espectadores, durante as duas horas de projeção de um filme, esquecem do tempo real. No cinema, deixa-se de pensar no passar do tempo, esquecendo que se envelhece. A atenção fica voltada à tela, à ficção de outras vidas.
Percebemos que vários assuntos que André conversa com seus companheiros foram apreendidos a partir de sua leitura fragmentada, operando a máquina xerográfica. Marinês folheia uma revista, que mostra casas de pessoas famosas. Ela aponta uma imagem e diz para André: “Que maravilha! Olha essa cama aqui, cheia de almofada! Adoro esse negocinho aqui, que fica em cima da cama”. André comenta: “dossel”. E a imagem que aparece na tela, como se fosse a da memória de André, é a cópia de um livro que explica o que é dossel.
Quando André começa a fotocopiar notas de R$ 50,00, da nota original que seu Gomide havia dado a ele para pagar contas no banco, descreve a origem do dinheiro, lembrando de um livro que copiou: “O impulso duplicador”.
“O primeiro dinheiro em papel foi feito na China, no século XI. O imperador convenceu todo mundo que um pedaço de papel valia 1kg de arroz. Quem não acreditasse, ele mandava matar”.
“O impulso duplicador” é uma criação, um falso-livro. Ele é, na verdade, um capítulo do livro Os descobridores: de como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo, de Daniel J. Boorstin. O livro é o segundo da trilogia do autor norte-americano que também engloba as obras Os criadores e Os pensadores.
Cardoso pára de fumar para conseguir conquistar Marinês, que odeia gosto de cigarro no beijo. Ela jura ser virgem e só vai “dar para o cara que mudar a vida dela”. Além de perder o hábito do cigarro, Cardoso precisa ficar rico para ter chance com Marinês. Cardoso sente muita falta do “cigarrinho depois do café” e, para esquecer o desejo de fumar, tentou acupuntura. André e Cardoso conversam no bar Mama Grave:
André: O que é isso na tua orelha?
Cardoso: É uma semente. Aperta um ponto no lóbulo.
André: Semente de quê?
Cardoso: Não interessa de quê. É para parar de fumar. É uma espécie de “apucuntura”.
André: Acupuntura.
Neste momento, observamos, mais uma vez, a imagem de uma fotocópia, explicando o termo acupuntura. É interessante observar também que para o teórico francês Maffesoli a valorização de técnicas orientais é uma característica da sociedade contemporânea, na qual a visão cristã não é tida como única verdadeira.
“Cabe mencionar, é claro, a onda crescente – paralelamente às medicinas ocidentais tradicionais mais alternativas (homeopatia, fitoterapia) – das técnicas de tratamentos orientais – acupuntura, shiatsu – assim como das técnicas de meditação, das artes marciais e outras maneiras de organizar a vida, o espaço” (MAFFESOLI, 2004: 34).
Quando André decide seguir Silvia para descobrir onde a moça trabalha, ele cita a síndrome do pânico.
“Existem pessoas que não saem na rua nunca. Chama ‘síndrome do pânico’. Acho que era um trabalho de faculdade. Elas ficam em casa porque não conseguem sair na rua. O problema é que tu acaba ficando velho. É melhor enfrentar a rua”.
Até a memória do jovem associa-se a palavras e imagens que ele copia. André começa a criar planos para conseguir R$ 38,00, preço do chambre que ele quer comprar para sua mãe na loja que Silvia trabalha. André, na verdade, quer rever Silvia e provar que tem o dinheiro para comprar o presente. O rapaz lembra de Cardoso quando vê uma imagem parecida com o desenho estampado na gravata de Cardoso.
O problema é que as antiguidades da loja de Cardoso não são tão valiosas quanto André imaginava. Cardoso não pode ajudar André, que continua imaginando maneiras de conseguir R$ 38,00 no curto período de uma semana.
Outros autores fotocopiados, além de Daniel Boorstin, associam-se ao pós-modernismo. São exemplos os artistas plásticos Keith Haring e Andy Warhol.
A idéia de cópia e original transfigura-se na Pop Art. Um de seus artistas mais significativos, Andy Warhol, transforma em obra de arte a própria cópia, a simulação, o falso. A Pop Art, marco do início da arte pós-moderna, trabalha com símbolos e linguagens de anúncios, histórias em quadrinhos, rótulos, sabonetes, fotos, artistas de cinema. A vida cotidiana torna-se inspiração da anti-arte pós-moderna.
Bauman afirma que os artistas pós-modernos expressam a ausência do “original”. A relação da vida do personagem André, que é construída pela cópia e colagem de diversos textos e referências, não poderia deixar de ter associação com a arte de Warhol, que torna arte o que não era arte, copiando e multiplicando imagens. Reproduções da imagem de Marilyn Monroe ou falsas latas de sopa empilhadas são exemplos de obras de Andy Warhol. Dentro de cada uma, não se sabe qual foi a primeira, a original. Do mesmo modo são as notas de R$ 50,00 que André começa a copiar. A nota falsa trocada em casas lotéricas é transformada em dinheiro verdadeiro.
Keith Haring nasceu na Pensilvânia (EUA), em 1958. O artista morreu de Aids, em 1990. Quando André fala de Haring, mesmo não citando seu nome diretamente, ele diz:
“Uma vez eu li que um cara que desenhava uns bonecos na parede ficou muito rico, só que ele morreu logo. O cara se rala a vida inteira pra deixar grana pra sei lá quem, que nem filho o sujeito teve tempo pra ter. O negócio é ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar”.
O artista fazia parte dessa nova geração pós-hippies e começou a identificar-se com as artes que brotavam das/nas ruas. Para Haring, o grafite proporciona relação direta entre artista e público. Haring começou a desenhar nos metrôs. A linguagem pessoal do artista estava sendo criada e seus personagens ganhavam peculiaridades e tornavam-se de fácil identificação (Radiant Baby, Barking Dog, Zapping Spacecraft).
Como o filme apresenta imagens recorrentes, os desenhos de Haring aparecem diversas vezes na película. André passa por uma loja que vende camisas com os desenhos de Haring. Com as camisas, a idéia de cópia é trabalhada, mais uma vez, no filme.
A ascensão artística, o sucesso mundial e a morte de KH, aos 31 anos, aconteceram rapidamente. No seu tempo, Haring já percebia a relação entre original e cópia acelerando-se. Em seu diário, publicado em livro (Keith Haring Journals), KH, escreve, em 1987, que o tempo de uma arte passar pelo processo de consumo, aceitação e imitação tem-se tornado cada vez menor, que até a Pop Art passou mais de 10 anos para ser assimilada. Ele coloca que seu trabalho começou a aparecer em camisetas em todo o mundo antes de ele ter criado uma única “verdadeira”, antes de ele ter tido uma exibição em museu, antes de ele ter morrido, ironia que expõe o intervalo dado anteriormente entre trabalho do artista e o seu reconhecimento e sucesso. (HARING, 1996: 185).
Algumas conclusões
De que forma as peculiaridades do mundo cultural pós-moderno inserem-se no cinema? O sujeito contemporâneo torna-se fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Os artefatos culturais apropriam-se do passado de maneira aleatória, descontextualizando as obras e fazendo com que estas percam a “profundidade”. Com essa crise da historicidade, a produção cultural do sujeito contemporâneo, que é fragmentado, não poderia deixar de ser aleatória, ou até esquizofrênica.
Estas diversas características acarretam para o cinema mudanças específicas. A multiplicidade passa a ser considerada como umas das características fundamentais da arte contemporânea. O cinema, que nasce tendo a reprodução como essência de sua arte, transforma-se com a digitalização dos processos técnicos envolvidos na feitura de um filme, ampliando as possibilidades de criação. O cinema passa a valorizar a mistura de linguagens e de gêneros. O “filme de gênero” perde sua hegemonia ao híbrido, que combina diversos estilos. A narrativa perde sua linearidade, podendo mudar o ponto de vista de quem conta a história. Quanto ao conteúdo abordado nos filmes pós-modernos, a relação entre as artes e seu tempo é dialógica. As representações que os homens fazem de seu modo de vida aparecem nas telas de cinema.
A narrativa cinematográfica do filme O homem que copiava rompe com os estilos anteriores por diversos aspectos. A “ilusão de realidade” é quebrada em múltiplas cenas tanto com a fragmentação da tela, que também pode caracterizar a mistura de gêneros, como por “textos” que se inserem na obra.
A vida dos personagens do filme insere-se no contexto da sociedade pós-moderna. Os quatro jovens que protagonizam a película estão sempre tentando criar maneiras, mesmo que falsas – referência a cultura do simulacro – para (sobre)viver no mundo contemporâneo. André copia textos na papelaria J. Gomide. É através deste trabalho mecânico que ele constrói sua visão de mundo. O operador de fotocopiadora copia dinheiro, única maneira que ele encontra de aproximar-se de Silvia. O rapaz copia modos de vida, mesmo não querendo ser criminoso, acaba cedendo ao “amigo” Feitosa, e sua maneira de encarar a vida, e compra uma arma para assaltar um banco. André copia também a si mesmo, nas ilustrações que desenha. “Original” e “cópia” são os temas mais relevantes do filme O homem que copiava.
A vida é original. O resto é cópia
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro, RJ: Editora Paz e Terra, 1990.
CAETANO, Maria do Rosário. Jorge Furtado por Maria do Rosário Caetano. In: Revista de Cinema. [on line] (http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao27/entrevista/index.shtml). Acessado em 14 de fevereiro de 2009.
CANNITO, Newton. “Ângelo anda sumido: conquista e conscientização do público. O argumento de Ângelo anda sumido”. In: Socine. Estudos Socine de Cinema, Ano III. Porto Alegre, RS: Editora Sulina, 2003.
CASACINEPOA. Casa de Cinema de Porto Alegre. Porto Alegre, RS. 1997. [on line] (http://www.casacinepoa.com.br). Acessado em 14 de fevereiro de 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 2003.
HARING, Keith. Keith Haring Journals. New York, NY: Penguin Books, 1996.
HARING, Keith. Haring New Features. [on line] (http://www.haring.com). Acessado em 14 de fevereiro de 2009.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2003.
JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal, 1995.
JAMESON, Fredric. Pós-Modernidade – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo, SP: Editora Ática, 1997.
MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo – resumo da subversão pós-moderna. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2004.
O HOMEM QUE COPIAVA. O Homem que Copiava: livro de imprensa. Casa de Cinema de Porto Alegre, RS, 2003.
[1] Quando aparecer, ao longo do texto, citações sem referência, elas se referem a trechos do filme. As falas são apresentadas ipsis litteris.
O texto é muito gostoso de se ler, fácil, simples. Sua visão do filme nos leva a pensar sobre o que realmente é “Original” e “Cópia” na vida. Parabéns!
gostei muito do texto, bem original, parabéns…
A crítica representa uma perfeita leitura da relação que há entre a obra de Furtado e o mundo pós-moderno. Já fiz várias análises do filme, em sala de aula, e cada vez descubro novas nuances nesse incrível roteiro. Ele apresenta características do período Romântico. Revela, no comportamento de André e na impunidade, lapsos filosóficos da teoria de Rosseau. Mas, sem dúvida, a expressão máxima da obra está na discussão da influência que a modernidade tardia exerce sobre o comportamento humano.