Cinema e Filosofia

Renato Luiz Pucci Jr é doutor pela ECA-USP e docente do Mestrado em Comunicação e Linguagens, da Universidade Tuiuti do Paraná, em Curitiba (PR). E-mail: renato.pucci@gmail.com . Homepage: www.utp.br/renatopucci

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Como utilizar a filosofia em uma pesquisa sobre cinema? Essa era a questão de fundo em meu projeto de mestrado sobre os filmes de Walter Hugo Khouri. A proposta atendia à curiosidade de pesquisador e tinha como objetivo ampliar o conhecimento sobre o cinema brasileiro, pois até então, início de 1994, não havia pesquisas acadêmicas sobre a obra desse cineasta.

A graduação em Filosofia deveria servir de base para o trabalho. Entretanto, essa mesma formação colocava desafios, pois não interessava fazer um trabalho filosófico ilustrado por filmes. Anos depois, a CAPES, que regula a pós-graduação no Brasil, passou a definir que as pesquisas em nossa área deveriam ter o foco na Comunicação, podendo se servir do conhecimento de outras áreas, mas não ao contrário. Em outras palavras, não é conveniente que o foco esteja em outras áreas, servindo os objetos da Comunicação, filmes por exemplo, apenas como material secundário ou ilustrativo. Eu já adotava, portanto, uma abordagem que se tornou regra anos depois.

Por outro lado, eu tinha como que estampada diante dos olhos esta frase de Nietzsche:

os artistas não se sustentam nunca por si mesmos, estar sozinhos contraria seus instintos mais fundos. Assim, por exemplo, Richard Wagner, “quando chegou a hora”, tomou ao filósofo Schopenhauer como líder e como defesa protetora: – quem poderia sequer imaginar que Wagner tivesse valor para defender um ideal ascético sem a sustentação que lhe oferecia a filosofia de Schopenhauer, sem a autoridade de Schopenhauer? (NIETZSCHE, 1978, p. 119). [1]

Frase muito dura de Nietzsche sobre os artistas, evidentemente marcada pela desavença entre ele e Wagner, daí o discurso feroz contra o compositor que antes fora o ídolo do filósofo. De minha parte, o que importava era o cinema, mas eu não apostava num papel secundário do artista em relação ao filósofo.

PRÓS E CONTRAS

Não era tranquila a própria associação entre arte e filosofia. Jean Mitry, estudioso de cinema, certa vez escreveu que a arte não convence mas emociona, ao contrário do que ocorre nos campos que fazem uso da linguagem lógica, como a ciência e a filosofia (1963, p. 91-92). Já no século XIX, o poeta Baudelaire alertava contra o valor da filosofia na arte, porque, para ele, a filosofia degrada a arte (apud WIND, 1967, p. 67-70). Ao me aprofundar na teoria da narrativa, descobri o alerta de Jean Pouillon contra a redução de romancistas ao papel de ilustradores de pensamento (1974, p. 193). Para não ir longe demais na lista, basta recordar uma proposição de Pasolini sobre o assunto: a linguagem do cinema é constituída por imagens, e as imagens são sempre concretas, jamais abstratas. Eis por que, segundo Pasolini, o cinema pode ser parábola, jamais expressão conceitual direta, como na linguagem filosófica (1976, p. 20).

Diante admoestações como essas, o fiel da balança se equilibrava com a brilhante análise de Erwin Panofsky, o historiador da arte, sobre a influência da filosofia neoplatônica sobre Michelangelo (1986, p. 153-199). Sim, aquelas esculturas deslumbrantes, aparentemente arte pura, estavam fundadas em trechos do filósofo Plotino, que viveu mais de mil anos antes de elas serem esculpidas. Eis algo que o público em geral de ontem ou de hoje nunca poderia perceber, mas que era importante para a obra do artista. Panofsky assinalava que essa relação jamais se limitou à mera ilustração da doutrina. Por exemplo, na configuração da vida ativa e da vida contemplativa, encarnada nas estátuas de Julião e Lorenzo de Médici, que estão na Igreja de São Lourenço, em Florença (ibidem, p. 159), Michelangelo se serviu do neoplatonismo na busca de símbolos visuais para justificar metafisicamente seu próprio eu (ibidem, p. 158). Além do mais, era difícil imaginar um ataque de Nietzsche a Michelangelo, ao menos nos termos em que ele se referiu a Wagner no trecho acima reproduzido.

Havia indícios, portanto, da viabilidade de pensar por essa perspectiva o cinema, uma das artes da era da comunicação midiática. O próprio Jean Pouillon, no mesmo livro acima citado, dizia que o romance pode se tornar um meio para o filósofo:

a ontologia explicita o que é o ser; o romance descreve o aparecimento de fato do ser; o romance descreve o que é definido pela ontologia, mas não tem o poder de explicar, e nesta impossibilidade de uma dedução do ser é que se baseia o interesse do romance como meio efetivo de atingir este real contingente. (1974, p. 199).

O exemplo era Sartre, que escrevera o romance A Náusea, fundamentado no filosófico O Ser e o Nada, de sua autoria. Mais ainda: Pouillon mencionou romances que apresentam relações efetivas com a filosofia, vale dizer relações provocadas pelo autor e reveladas na obra pela análise direta, e não apenas relações gerais, válidas para todos (1974, p. 195). Há relações possíveis entre ficção e pensamento reflexivo que valeria a pena pesquisar na literatura. Por que não no cinema? Ainda poderia ser citado Eisenstein, que em A Forma do Filme, não escondeu sua proposta de associar filosofia e arte (2002, p. 49), no caso o materialismo dialético e o cinema.

Enfim, eu havia identificado uma linha de reflexão que não via problema na associação entre os campos de que me ocupava.

Não é de se estranhar, portanto, que durante o século XX se tenha falado tanto de cinema e filosofia. Cineastas foram tratados como filósofos: Rossellini (ROCHA, p. 151-152), Fellini (CARRIÈRE, p. 217), Dreyer e Bresson (DELEUZE, p. 145.-150).[2] Não creio que qualquer desses comentadores imaginasse que os cineastas estivessem na posição subalterna que Nietzsche enxergou em Wagner.

A mais interessante abordagem, que se tornou uma das bases de minha dissertação, era a do filósofo Albert Camus, que afirmou que é arbitrária a diferença entre arte e filosofia (1990, p. 132-133) e, ainda mais, escreveu que grandes obras são o resultado de uma filosofia inexpressa (ibidem, p. 138). Era nisso que eu apostava ao me debruçar sobre Noite Vazia (1964), As Amorosas (1968) e Eros, o Deus do Amor (1981): descobrir o pensamento de Khouri nas entrelinhas dos filmes (ou em suas entre-imagens, ainda que não no sentido de Raymond Bellour deu a essa expressão).

Evidentemente, passei a pesquisar por aquele que é tido como o maior exemplo de cineasta-filósofo: o russo Andrei Tarkovski, realizador de Solaris (1971), O Espelho (1974), Stalker (1979), entre outros filmes de sua autoria em que se viram intenções filosóficas. A grande vantagem em relação a Tarkovski estava em que ele próprio escreveu um livro em que expôs suas concepções sobre o cinema associando-o com freqüência à filosofia: Esculpir o Tempo. Ele disse, por exemplo, que a poesia cinematográfica se torna filosofia (1990, p. 18) e mencionou a existência de cineastas-filósofos (p. 68). Tarkovski ainda esclareceu sua concepção sobre a diferença entre cinema e filosofia: naquele o espectador vivencia o que se passa na tela, o que resulta em uma apreensão diferente da provocada pela filosofia, isto é, a da apreensão das ideias (p. 220).

Ao abordar os filmes de Khouri, portanto, eu estava esclarecido sobre problemas e possibilidades da empreitada.

Não cabe aqui apresentar em detalhes os resultados dessa pesquisa, pois ela está consolidada na dissertação (1998) e no livro posteriormente publicado (2001). Basta dizer que parti da procura de afinidades entre os filmes de Khouri e alguma filosofia existente, baseado no pressuposto de que mesmo os filósofos mais renomados sempre têm em vista outros pensadores, como prova o caso de Kant, que admirava o escocês Hume e dele incorporou muito em sua doutrina. Ao contrário do que dizia Nietzsche, um eterno solitário (mesmo em sua vida pessoal), raro é encontrar filósofos isolados. Por que um cineasta não poderia ter relações semelhantes com filósofos? Minha primeira tentativa aconteceu com Platão, citado explicitamente em uma cena de Eros, o Deus do Amor, filme excepcional, inteiramente filmado em câmera subjetiva. Possuí tom lírico, pois é uma lembrança afetiva de uma aula de Filosofia a que Marcelo assistiu quando jovem. O trecho é entremeado por imagens que provavelmente seriam fantasias dele com sua professora, conjugando o conteúdo filosófico da aula com o desejo do personagem.

Contudo, entre os filmes e o platonismo havia incompatibilidades claras, que não vêm ao caso. Assim, a pesquisa continuou até a conclusão de que o grande interlocutor de Khouri era Schopenhauer, com seu infinito pessimismo, reconhecimento da importância da fundamental da sexualidade e a asserção de que a racionalidade é incapaz de controlar a vontade, elementos que constatei nos filmes analisados.

A contradição com a premissa inicial da pesquisa era apenas aparente: Khouri não teria apenas se escudado no filósofo alemão por falta de capacidade filosófica autônoma. Procurei mostrar como a incorporação que Khouri fez de Schopenhauer era muito particular, em outras palavras, não se submetendo ao pensamento do filósofo, mas incorporando-o à sua maneira. Por mais que os filmes sejam pessimistas quanto à solução existencial procurada por Marcelo no sexo, este nunca recebe o estigma que lhe atribuía o autor de O Mundo como Vontade e Representação. O sexo é encantador, é o caminho para algo superior, se é que isso existe.

PERSPECTIVAS

Mais relevante do que me estender na filosofia khouriana é apontar a existência de um universo aberto às pesquisas, inclusive em relação aos filmes de Khouri, mas não exclusivamente. Desde a defesa do mestrado, vários jovens pesquisadores, do Piauí ao Rio Grande do Sul, me procuraram interessados em abordar a filmografia do cineasta, o que sempre me trouxe satisfação. Nenhum, todavia, apresentou interesse num eixo de pesquisa que me parece dos mais relevantes: a investigação acerca da gênese dos filmes. Apesar de minha metodologia não se fundamentar em entrevistas, na época do mestrado tive a oportunidade de conversar bastante com o próprio Khouri, que, junto com a esposa, D. Nadir, sempre me receberam com a maior amabilidade. Durante essas conversas, ao passar os olhos pela esplêndida biblioteca de Khouri, identifiquei exemplares das obras de Schopenhauer, sempre em edições muito antigas, possivelmente dos anos quarenta ou cinqüenta, época em que o cineasta era jovem. Por isso, fiquei um tanto frustrado quando na defesa de mestrado a banca não me foi questionou sobre o contato real do cineasta com Schopenhauer; eu tinha a resposta na ponta da língua: mencionaria os livros que vi na biblioteca e a necessidade de que outro tipo de pesquisador, afeito a pesquisas de campo, enveredasse pelo exame da biblioteca do cineasta, incluindo seus escritos em diários e cadernos de notas.

Khouri morreu em 2003, sua viúva pouco tempo depois. Não sei o que a família fez de todo aquele material, contudo valeria a pena com certeza que fosse cuidadosamente examinado. Sem contar inúmeros outros resultados possíveis, estou convicto de que seria possível chegar a conclusões como a de Panofsky, que mostrou que Michelangelo conhecia o neoplatonismo e que, portanto, a associação dessa filosofia com suas esculturas não era somente uma vaga hipótese (1986, p. 157-159).

Filosofia e cinema é um tema que ainda precisa ser muito explorado. Como a indicar que a relação é inesgotável, com freqüência surgem filmes que suscitam a associação, às vezes esboçada pela crítica da imprensa diária. Cabe citar, por exemplo, o caso de Matrix (1999), dos irmãos Wachowski, que envolve até um ponto ainda não especificado a filosofia de Baudrillard, citado na cena em que Neo abre o falso livro que tem o título do mais célebre filme desse filósofo contemporâneo. Penso que eXistenz (1999), de David Cronenberg, também renderia trabalhos do tipo, em especial associando aquele filme delirante às ideias dos filósofos da desconstrução.

Diga-se de passagem que sempre me pareceu duvidosa a associação geralmente empreendida pela crítica entre esses últimos filósofos e o cinema brasileiro moderno, em especial os cinemanovistas. É possível que um exame cuidadoso revele que Glauber Rocha e seus companheiros talvez não sejam os cineastas mais próximos do desconstrucionismo. Entretanto, para chegar a uma conclusão será necessário que pesquisadores se interessem em explorar o caminho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAMUS, Albert. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1990.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

DELEUZE, Gilles. Cinema – A Imagem-Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

MITRY, Jean. Esthétique et psychologie du cinéma. Vol. I. Paris: Editions universitaires, 1963.

NIETZSCHE, Friedrich. La genealogía de la moral. Madrid: Alianza, 1978.

PANOFSKY, Erwin. Estudos de Iconologia: Temas Humanísticos na Arte do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1986.

PASOLINI, Pier Paolo. L’expérience hérétique. Paris: Payot, 1976.

POUILLON, Jean. O Tempo no Romance. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1974.

PUCCI JR., Renato Luiz. Filosofia e Imagens no Cinema de Walter Hugo Khouri. Dissertação (mestrado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 1998. (https://cashcofinancial.com/)

____________________. O Equilíbrio das Estrelas: Filosofia e Imagens no Cinema de Walter Hugo Khouri. São Paulo: Annablume, 2001.

ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

WIND, Edgar. Arte y Anarquia. Madrid: Taurus , 1967.

*


[1] Tradução minha.

[2] Deleuze viu as filosofias de Kierkegaard e Pascal nesses cineastas, o que fazia coincidir as culturas envolvidas: as duplas de filósofo e cineasta são formadas por um par de dinamarqueses e outro de franceses.

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image
    evandro

    Olá prof. Renato

    Como o sr aprecia Schopenhauer, sugiro analisar Clube da Luta e esse autor. Fiz uma abordagem filosofica entre eles. se tiver interesse, lhe envio

    é de grande importancia seu trabalho professor.

    abraços

    prof Evandro Schuler NH – RS

  2. Author Image
    Maria Cavalheiro

    Sou apaixonada pela arte cinematografica e considero pertinente sua perspectiva. Gostaria de dialogar com as possibilidades entre o concreto e o abstrato nas relações entre cinema e filosofia.
    Agradeço sua contribuição.

    Professora de Historia/SP

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