Luana Pereira Brant Campos é mestranda em Artes Visuais no Instituto de Artes da UnB, na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas.
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Resumo: Baseando-se no pensamento de Nietzsche e Gilles Deleuze sobre as potências do falso, este trabalho investiga a pretensão de verdade no cinema, buscando compreender o cinema contemporâneo de Peter Greenaway dentro de uma perspectiva híbrida e sem fronteiras, trazidas, dentre outras razões, pelo surgimento da tecnologia digital.
Introdução
A relação entre realidade e ficção sempre foi, na história da arte, tema de recorrentes discussões e investigações. A história do cinema sempre foi marcada por uma dicotomia entre realismo (naturalismo, mimetismo) e formalismo, ou entre Lumière e Meliès. De um lado estavam teóricos formativos, como Béla Baláz e Rudolf Arnheim, que acreditavam que o potencial artístico do cinema se encontrava em suas diferenças com a realidade. No extremo oposto, teóricos como Bazin e Kracauer defendiam que a garantia da especificidade artística do cinema adviria justamente do fato deste oferecer representações confiáveis da vida cotidiana. Para eles, a alma do cinema estava no fato dele ser uma “janela para o mundo”, o único meio com objetividade suficiente para “revelar o real”.
Apesar dos teóricos serem extremistas ao elaborar suas teorias, nas obras cinematográficas a fronteira entre real e ficcional nunca foi bem definida. Hoje, com o surgimento da tecnologia digital e a hibridização dos meios cinema, vídeo e televisão, as fronteiras dissolvem-se ainda mais e as esferas de gênero e estilo se misturam. Mas ainda podemos perceber a diferença entre um cinema que aspira ao verdadeiro e um cinema que quer as “potências do falso”.
Gilles Deleuze é um pensador que nos diz muito acerca dessas questões. A filosofia de Deleuze se baseia em um conflito amplo, um confronto entre dois modos de pensar. De um lado, a “filosofia da representação”, o primado à identidade, do outro, a “filosofia da diferença”, na qual se pensa a diferença enquanto tal. Deleuze se propõe a pensar a relação do diferente com o diferente, sem submetê-lo a nenhuma forma de representação que o reconduza ao “mesmo”. Seria a alternativa entre o poeta e o político. O primeiro tem um poder criador, que afirma a diferença e perverte as ordens, num estado de revolução permanente. O segundo é aquele que nega a diferença, pois quer conservar uma ordem estabelecida, ou estabelecer um mundo que solicite as formas de sua representação. Nietzsche foi quem melhor observou o conservadorismo da dialética.
Nietzsche instaurou na filosofia, a crítica à razão e à filosofia hegeliana. Contrapôs os ideais de universalidade e unidade aos valores de diferença e fragmentação. A interpretação da obra de Nietzsche realizada pelo filósofo Heidegger e, posteriormente, pelos pensadores pós-estruturalistas (dentre eles, os mais importantes Gilles Deleuze, Lyotard, Felix Guatarri, Jaques Derrida e Michel Foucault) foi fundamental para a emergência de uma “filosofia da diferença”.
A argumentação de Nietzsche se sustenta sobre a idéia de que as valorações do Iluminismo são criadas a partir da constituição de sistemas morais. Ao adotar um perspectivismo cultural e um pluralismo moral, Nietzsche desconstrói as pretensões universalistas e indica a “verdade” e o “certo” como produto discursivo de um determinado sistema que produz as idéias de certo e errado, de verdadeiro e falso. Um sistema de julgamento moral.
O pensamento de Deleuze sobre o cinema vincula-se a idéia de uma filosofia da diferença que se contrapõe ao pensamento da representação. Deleuze distingue duas imagens do pensamento, uma dogmática, definida como moral e representativa e outra nomeada de nova imagem do pensamento ou pensamento sem imagem. Este termo Deleuze extraiu de Nietzsche.
Deleuze chama atenção para a maneira como o verdadeiro é concebido como um universal abstrato, sem nenhuma referência às forças que constituem a genealogia de uma verdade. Ao entrar na questão da verdade, Deleuze irá definir Kant como o último dos filósofos clássicos, já que nunca pôs em questão seu valor, nem as razões para a nossa submissão ao verdadeiro. Segundo ele, os filósofos pretendem que o pensamento procura o verdadeiro e evitam relacionar a verdade com uma vontade concreta. Já Nietzsche, segundo Deleuze, (DELEUZE, 2001: 32).
“[…] não critica as falsas pretensões à verdade, mas a própria verdade como ideal […] O conceito de verdade qualifica o mundo como verídico, este mundo supondo um homem verídico que é como seu centro. Entretanto, é claro que a vida quer o engano, que visa iludir, seduzir, cegar. Querer o verdadeiro é querer antes de mais nada depreciar esse poder do falso, ao fazer da vida um erro, uma aparência“
Deleuze afirma que esta perspectiva opõe vida e conhecimento, “mundo verídico” e mundo real e o homem verídico não quer enganar, quer um mundo melhor, com isso ele denuncia moralmente as aparências. Por isso Deleuze defende que a proposição entre “mundo verdadeiro” e “mundo aparente” é oposição de origem moral, “Essa oposição moral é sintoma de uma vontade que quer voltar a vida contra a vida. Uma vontade religiosa, ascética, portanto” (DELEUZE, 2001: 32).
Para Nietzsche, a oposição verdade-aparência instituída pela vontade de verdade significa a afirmação da verdade como valor superior. O verdadeiro é bom, é superior ao falso, a verdade tem mais valor que a aparência, a ilusão. A ciência regida pelos valores morais e valores de verdade são o que Deleuze chama de ciência régia, a qual ele opõe a ciência nômade. A ciência régia tem como ideais a reprodução, a dedução e a indução, e sua lógica é a da reprodução. Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, “ver fluir, estando à margem”, já seguir é outra coisa, diz Deleuze. Segundo ele, somos forçados a seguir quando estamos em busca de singularidades. Na ciência nômade não se trata mais de extrair constantes a partir de variáveis, mas de colocar as próprias variáveis em estado de variação contínua. Não há matéria fixa, imutável, não há imagem, “nem para constituir um modelo, nem para fazer cópia” (DELEUZE, 1997: 45).
A filosofia de Nietzsche busca destruir a moral, e para ele, isto só é possível através do questionamento da vontade de verdade. Só através de sua crítica e da destruição da dicotomia essência-aparência seria possível a “transvaloração de todos os valores”.
O artista como falsário
Para Deleuze, bem como para Nietzsche, a arte é o mais alto poder do falso, ela santifica a mentira, faz da vontade de enganar um ideal superior, único capaz de rivalizar com o ideal ascético. “Aparência, para o artista, não significa a negação do real, mas uma seleção, uma correção, um desdobramento, uma afirmação. O artista é aquele que procura a verdade, é o inventor de novas possibilidades de vida” (DELEUZE, 2001: 33). O artista é o criador da verdade, é onde o falso atinge sua potência última. Em A imagem-tempo, Deleuze (1990: 179) discorre sobre a grande teoria dos falsários segundo Nietzsche:
ela aparece no livro IV de Zaratustra: ali se reconhece o homem de Estado, o homem religioso, o homem de moralidade, o homem da ciência… A cada um corresponde uma potência do falso; são também inseparáveis uns dos outros. E o próprio homem verídico era a primeira potência do falso, que se desenvolve através dos outros. O artista por sua vez é um falsário, mas a potência última do falso, pois quer a metamorfose em vez de tomar uma forma (forma de Verdade, do Bem, etc). A vontade como vontade de potência tem portanto dois graus extremos, dois estados polares da vida, por um lado o querer-tomar ou querer-dominar, por outro o querer idêntico ao devir e à metamorfose, “a virtude que dá”.
Mas o artista de que eles falam não é qualquer artista. Deleuze denuncia a arte mimética, mera representação ou “decalque”. No texto Rizoma[1] há uma passagem sobre a relação entre o livro e o mundo que podemos estender para a relação entre a arte em geral e o mundo; “o livro não é a imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é capaz disso e se ele pode). O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica binária, para fenômenos de natureza totalmente diferente” (2007: 20). Já o “livro-raiz” é um outro tipo de arte, é um livro clássico, como “bela interioridade orgânica, significante e subjetiva” (DELEUZE, 2007: 12). Este livro imita o mundo e esta é para Deleuze uma idéia insípida. A arte que ele quer é a que não tem objeto. Considerada como agenciamento, ela está somente em conexão com outros agenciamentos, em permanente transformação e se metamorfoseando no mundo e com o mundo.
Arte: máquina de guerra
Para Deleuze, as condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são as mesmas: a destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si própria, gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Tanto o pensador quanto o artista têm como função ampliar os limites do pensar e do dizer. Ambos têm como objetivo o movimento, a transformação do pensamento imóvel, a violação do pensamento régio, dominante. Este artista/pensador atuaria como “máquina de guerra”, máquina de metamorfose, que possibilita a emergência da diferença.
Para compreender a máquina de guerra, Deleuze utiliza o mito do guerreiro, Indra, que se opõe tanto a Varuna quanto a Mitra, os deuses da soberania. O guerreiro não se reduz a nenhum desses dois nem forma um terceiro, ele é antes uma “multiplicidade pura e sem medida, uma celebridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania” (DELEUZE, GILLES, 1997: 12). Uma máquina de guerra contra o aparelho de Estado. O guerreiro vive cada coisa em relação de devir. Deleuze pensa a máquina de guerra como sendo pura forma de exterioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos por modelo ou segundo a qual temos o hábito de pensar. Para ele, o guerreiro é aquele que trai tudo, e é como guerreiro que o artista atua quando vai de encontro com a diferença, quando vai em busca do “outro”.
O cinema na potência do falso – o modelo orgânico e o cristalino
Na potência do falso “Eu é um outro”, ao invés da proposição “Eu=Eu” da verdade unificante. Para Deleuze, o cinema moderno prima pela diferença, é a arte da falsificação. É um cinema de falsários, de videntes. Quando o cinema surgiu, já era notável a existência de dois tipos distintos de imagens. O primeiro mostra trabalhadores saindo de uma fábrica e um trem chegando à estação. Eram as imagens dos irmãos Lumière. Essas imagens “documentais” contrastavam com as criações de Georges Meliès, que iniciou um diálogo entre as práticas ilusionistas e de falsificação com o real (VASCONCELLOS, 2006: 141). Desde os primórdios do cinema, os criadores de imagens se sentiram atraídos por transbordar as fronteiras entre realidade e sonho.
Deleuze distingue dois regimes de cinema, um orgânico e um cristalino. O primeiro se refere às descrições, ele chama de “orgânica” uma descrição que supõe a independência de seu objeto e de “cristalina” a descrição que vale por seu objeto, que o substitui, cria-o e apaga-o ao mesmo tempo (DELEUZE, 2007: 154). Na descrição orgânica, o real é conhecido por sua continuidade, o regime utilizado é o das relações causais e lógicas. É certo que este regime inclui o irreal, a lembrança e o sonho, mas sempre por oposição, sem deixar dúvidas sobre o que é o real e o imaginário. Já no regime cristalino, o real e o imaginário, o atual e o virtual tornam-se indiscerníveis.
Na narração orgânica os personagens reagem às situações, é uma “narração verídica, no sentido em que aspira ao verdadeiro” (DELEUZE, 2007: 157) e implica o uso da palavra como fator de desenvolvimento. Aqui o tempo depende da ação, do movimento. Bem diferente é a narração cristalina, nela, as situações sensório-motoras dão lugar às situações óticas e sonoras puras nas quais os personagens não querem mais reagir, mas enxergar. O movimento pode tender a zero, as anomalias de movimento se tornam o essencial, ao invés de serem acidentais. “Tendo perdido suas conexões sensório-motoras, o espaço concreto deixa de se organizar conforme tensões e resoluções de tensão, conforme objetivos, obstáculos, meios e até mesmo desvios… É aí que uma narração cristalina vem prolongar as descrições cristalinas, suas repetições e variações, através de uma crise da ação” (DELEUZE, 2007: 158).
Não há mais uma imagem indireta do tempo que resulta do movimento, mas uma imagem-tempo direta da qual resulta o movimento. Não é mais um tempo cronológico que pode ser perturbado por movimentos anormais, mas um tempo crônico, que produz movimentos anormais e essencialmente “falsos”.
Deleuze chama atenção para um ponto que acredita ser essencial. Ao considerar a história do pensamento, ele constata que o tempo sempre pôs em crise a noção de verdade. “A descrição cristalina atingia já a indiscernibilidade do real e do imaginário, mas a narração falsificante que lhe corresponde vai um pouco adiante e coloca no presente diferenças inexplicáveis; no passado, alternativas indecidíveis entre verdadeiro e falso. O homem verídico morre, todo o modelo de verdade se desmorona, em favor da nova narração” (DELEUZE, 2007: 161).
Aqui, há um retorno a Nietzsche, que substitui a forma do verdadeiro pela potência do falso, e resolve a crise da verdade em proveito do falso e de sua potência artística e criadora. Deleuze compreende a potência do falso como o princípio mais geral das relações na imagem-tempo direta. A narração deixa de ser uma narração verídica que se encadeia com descrições reais (sensório-motoras). A descrição se torna seu próprio objeto e a narração se torna temporal e falsificante.
A narração verídica se desenvolve organicamente, segundo conexões legais no espaço e relações cronológicas no tempo, implica uma investigação que a referem ao verdadeiro, e implica sempre um sistema de julgamento. A narração falsificante escapa desse sistema, já seus elementos estão sempre mudando, conforme mudam as relações de tempo e suas conexões. Para Deleuze, as metamorfoses do falso estão sempre substituindo a forma do verdadeiro.
Em suma, este novo regime de imagem (a imagem tempo direta) opera com descrições óticas e sonoras puras, cristalinas, narrações falsificantes, de tempo a-cronológico, nas quais a descrição deixa de supor a realidade, e a narração, de remeter uma forma do verdadeiro. Para Deleuze, desde a nouvelle vague a crise da verdade vem se inserindo na história do cinema, mas é com Orson Welles que a imagem-tempo direta é finalmente libertada. Segundo Deleuze, há um nietzschianismo em Welles, que não parou de lutar contra o sistema de julgamento e a idéia de um mundo verdadeiro que supõe um “homem verídico”.
Segundo Deleuze, o que resta então são forças, mas forças que não remetem a um centro. São forças que enfrentam outras forças, que afetam e são afetadas. A potência que Nietzsche chama de vontade de potência é esse poder de afetar e ser afetado, a relação de uma força com outras. A montagem cinematográfica pode ser vista dentro desta lógica, cada plano exerce sua força e sofre a de outro. A cada novo “agenciamento” entre os planos há a proliferação de centros e a multiplicação de sentidos.
Uma boa montagem funcionaria de forma a realizar agenciamentos. Um agenciamento, para Deleuze, é justamente um arranjo, uma combinação de elementos heterogêneos que fazem surgir algo novo, que não é nenhum dos elementos originais, mas novas formas de multiplicidade. “Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões” (DELEUZE, 2007: 17).
Pode-se fazer um paralelo entre as instâncias orgânico e cristalino deleuzianas e a oposição opaco e transparente que aparece no subtítulo do livro sobre cinema O discurso cinematográfico, de Ismail Xavier. Opaco seria o discurso que se omite enquanto discurso, que pretende se passar por verdade, está inserido nos cinemas ilusionistas, naturalistas, de “narrativas clássicas”. Já a transparência, característica análoga ao cristalino, de Deleuze, seria a característica de um cinema que demonstra o aparato, que se coloca enquanto discurso, enquanto o próprio real, e não mais como representação do real.
Organicidade tem ainda um outro sentido para Deleuze, sendo um dos conceitos centrais para ele, não apenas no seu pensamento do cinema, mas em toda a sua filosofia. Implica a idéia de um único centro a partir do qual todos os termos se organizam. Para Deleuze, a filosofia da representação estabeleceu um mundo estático, no qual há uma única perspectiva que media tudo. O movimento proposto por Deleuze visa uma pluralidade de centros, uma multiplicidade. Organismo é para ele, o que limita, o que cria estratos.
O corpo sem órgãos representa exatamente essa falta de organismo, essa possibilidade de movimento. “Um CsO (corpo sem órgãos) é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam” (DELEUZE, 2004: 13). O CsO é anterior a organização dos órgãos, antes da formação dos estratos. Deleuze diz que o CsO não se opõe aos órgãos, mas ao organismo, que é o “juízo de Deus”.
Para Deleuze, o organismo é um dos três grandes estratos com os quais estamos relacionados, juntamente com a significância e a subjetivação. “Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo – senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado – senão será desviante” (DELEUZE, 2004: 22). E é justamente o desvio que ele quer, a transformação, a desarticulação. É do limite, das passagens, dos fluxos de intensidades, da desterritorialização e da reterritorialização dos conceitos que ele está sempre falando em sua filosofia.
Como criar um mundo assim, como criar novas formas de se pensar, é o que a noção das potências do falso ensina ao cinema. As potências do falso o libertam das amarras da ação, da narrativa literária, da mímeses e do naturalismo.
Um cinema para além da vontade de verdade pode, assim como a filosofia, produzir novos conceitos e pensamentos, e é nesse ponto que o cinema parece interessante à Deleuze: como intercessor da filosofia, como forma de produção de novas imagens do pensamento ou de pensamentos sem imagem.
O cinema híbrido, arte nômade
Há ainda um outro cinema. Um cinema desterritorializado, influenciado, hibridizado com outras formas de imagem em movimento, como o vídeo e a televisão. Libertado do conceito de cinema, é a imagem em movimento pura, que pode tanto contar histórias como criar telas pintadas ou conceitos.
O cinema que tratamos aqui é o cinema realizado hoje em tecnologia digital por alguns grandes cineastas, em especial o inglês Peter Greenayay. Greenaway sempre trabalhou com o cinema tradicional, película, de forma não convencional, e com a ferramenta da tecnologia digital viu suas possibilidades de experimentação ampliadas.
O primeiro passo na direção que tomamos hoje foi o surgimento do vídeo. Ele começou a ser praticado em meados dos anos 60. Diferentemente do cinema, surgiu em um momento em que já não havia mais a crença em uma linguagem pura para os meio audiovisuais. O vídeo nascia em um momento em que a explosão criativa circulava entre diversos terrenos e o conceito de hibridização já existia nas artes. Por isso o vídeo sempre foi uma arte “impura”.
Philipe Dubois se interessa pelo vídeo como lugar de passagem. Segundo ele, o vídeo parece menos um meio do que um intermediário, surgindo entre o cinema e a imagem infográfica, entre a imagem eletrônica e a analógica, e se movimenta entre a ficção e o real, entre o filme e a televisão, entre a arte e a comunicação.
O vídeo é esse lugar “entre”, sem identidade fixa, é a arte nômade. Deleuze fala que o trajeto do nômade está sempre entre dois pontos, mas o entre-dois tornou-se toda a consistência e ganhou uma autonomia bem como direções próprias. “A vida do nômade é intermezzo” (DELEUZE, 1997: 46).
Podemos dizer que o vídeo é a desterritorialização do cinema, ou o cinema reterritorializado. Segundo Deleuze, “para o nômade, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território. A terra deixa de ser terra, e tende a tornar-se simples solo ou suporte” (DELEUZE, 1997: 48). Poderíamos dizer que a terra é o cinema e o vídeo o ser nômade.
Raymond Bellour e Philippe Dubois nos permitem vislumbrar, através de suas reflexões acerca do vídeo, a hibridização do cinema e do vídeo que acontece no audiovisual digital. Antes, o que separava um do outro era, primeiramente, o aparato, ou seja, o fato do vídeo ser imagem eletrônica, com uma série de características particulares, e o cinema ser película, com suas possibilidades e limitações. Com o advento da tecnologia digital, os dois se misturaram de tal forma que é impossível distinguir o que é vídeo-arte do que é cinema, a produção audiovisual é uma só. Este lugar é exatamente o lugar do qual fala constantemente Deleuze, é o limite (entre o cinema e o vídeo), é a fronteira fluida e móvel.
Peter Greenaway no espaço intermezzo e nas potências do falso
O 16o Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC – Videobrasil, realizado em 2007 na cidade de São Paulo, teve como tema as aproximações entre o vídeo, o cinema e as artes visuais. Não por acaso, o convidado especial desta edição foi Peter Greenaway. O Festival buscou investigar as hibridizações no audiovisual, as “obras-acontecimento” do cinema e do vídeo. Os filmes apresentados tinham em comum enquadramentos inusitados, cortes obtusos, planos-seqüência simulando o tempo real, fusões surrealistas, etc. Daí o título da edição: Limite: Movimentação de imagem e muita estranheza.
A pergunta lançada pelo Festival é: como o cinema faz sua reaparição em um novo cenário? “Não como linguagem codificada, certamente, mas como um espaço de estar na contemporaneidade, o ‘kinema’ como processo e potência, como banco de dados e procedimentos para a arte em vídeo, a mídia arte, as novas mídias”[2]. Sua proposta é encontrar a “cinematicidade”, um cinema desterritorializado, fora das salas tradicionais, tornado instalação, projeção nômade, copiado, citado, reciclado, remixado, o cinema para além dos limites.
A proposta do Festival é pensar as “figuras de linguagem” que atravessam o cinema, a imagem eletrônica, uma liberação das historiografias prontas, das diásporas e dos guetos, um outro olhar para o passado, não como o que já passou, mas no seu devir. Confrontar limites. A justificativa para tratar do cinema em um Festival de imagem eletrônica é o fato de serem inúmeros os territórios compartilhados. Além do fato de hoje o cinema e o vídeo compartilharem um mesmo ambiente digital, o cinema tomou o partido do vídeo também na experimentação dos suportes, assumindo um estado de permanente trânsito e nomadismo da imagem.
Outros cineastas/videoartistas convidados importantes, além de Peter Greenaway, foram Marcel Odenbach, Kenneth Anger e os brasileiros Arthur Omar, Carlos Adriano e Edgar Navarro. O que suas obras têm em comum é o fato de serem experiências dos limites, limites entre o cinema, a fotografia, as artes plásticas, o vídeo, as instalações, além de estarem no limite de um pensamento pelas imagens e entre-imagens. São imagens-fluxo, imagens-processo.
Novas questões são colocadas ao espectador por estes artistas. São imagens fixas ou em movimento? Que estados intermediários existem entre movimento e imobilidade, analógico e digital, o olho e a mão? O movimento e o tempo deixam rastros, se tornam visíveis?
Peter Greenaway apresentou no Festival seu recente trabalho Tulse Luper Suitcases. É uma obra multimídia que envolve uma performance de VJ comandada ao vivo por Greenaway na qual são mixadas em tempo real cenas da vida de Tulse Luper, uma instalação com 92 maletas do personagem, um game na internet, um website e um filme sobre a vida de Luper.
Greenaway e seu percurso nas artes visuais
Peter Greenaway nasceu no País de Gales, em 1942, passando a maior parte de sua vida em Londres. Iniciou sua carreira como pintor, em 1966 começou a fazer curtas-metragens experimentais, em sua maioria documentários ficcionais, nos quais parodiava a lógica burocrática dos documentários oficiais do governo. A partir de 1980 passou a realizar longas-metragens e trabalhos para a televisão e de 1990 em diante começou a produzir instalações.
Na entrevista concedida a Carlos Adriano, para o 16o Festival Videobrasil[3], Greenaway diz sempre ter tido o desejo de participar de tudo o que diz respeito ao aprendizado visual. Para ele, as sofisticações da estética da pintura nos últimos dois mil anos moldaram a nossa visão e interpretação do mundo, continuando da mesma forma até os dias de hoje. Ele diz sempre ter desejado que o cinema assumisse essa responsabilidade, mas este infelizmente raramente conseguiu, por ser um meio essencialmente baseado no texto, e não na imagem. Segundo Greenaway, a necessidade de contar histórias, de reproduzir as atividades de uma livraria e de atrair o denominador comum menos exigente dos interesses humanos fez com que o cinema sempre mantivesse esse posicionamento.
Greenaway diz ter começado sua carreira profundamente fascinado pelas estruturas, seqüências e registros do tempo visual, todos eles uma reação às atividades da época das décadas de 1950, 1960 e 1970. Para ele, foi um começo otimista, uma defesa da excelência dos objetivos da pintura e a esperança de ver sua equivalência no cinema. No entanto, ele percebeu que o público interessado neste tipo de investigação seria mínimo. Para ampliar o potencial de comunicação desses elementos e com a esperança de disseminar sua empolgação com a linguagem visual, ele empenhou-se em mostrar suas idéias em arenas mais públicas e conhecidas, em especial a narrativa do cinema. Muito embora, segundo ele, explorando narrativas mais sofisticadas e radicais.
Segundo Greenaway, seus longas-metragens, a partir de O contrato do amor (The Draughtsman’s Contract) (1982), são filmes que buscam criar um equilíbrio entre os objetivos visuais profundos e a acessibilidade. Daí seu constante tom de ironia. Era uma dissimulação “dourar a pílula do radicalismo visual extremo com muito daquilo que o público de cinema esperava do cinema. Sempre queria dizer que não estava realmente dizendo a verdade, ou pelo menos, a verdade que queria dizer”[4].
Retornemos a Deleuze e seu conceito de artista como falsário, produtor de “verdades”. Greenaway acredita que todos nós conseguimos conviver com este mundo porque contamos mentiras. O ideal da verdade não está presente na sua obra, já que na vontade de verdade não há possibilidades de metamorfoses, o devir só vem onde há potência do falso. O cinema de Peter Greenaway é um cinema que vai diretamente contra o ideal naturalista, ele não se omite enquanto discurso. Ele não tem a pretensão de se definir como janela para o mundo, ao contrário, faz questão de se colocar como discurso criador de uma outra realidade. Greenaway é o mestre do artifício, um falsário assumido.
Deleuze e Greenaway – cruzamento de conceitos.
– A enciclopédia como rizoma.
Existem diversas correntes do cinema, mas o modelo hegemônico é o cinema clássico narrativo, e o que nos parece evidente é a proposta de Greenaway de fazer um cinema/pintura, ou seja, um cinema calcado na imagem e não no texto, um cinema “não narrativo”[5], oposto ao cinema clássico de Hollywood.
A obra de Greenaway é freqüentemente associada ao conceito de enciclopédia, que tem como uma de suas definições: “obra que abrange todos os domínios do conhecimento humano ou apenas um deles e os expõe de maneira ordenada, metódica, seguindo um critério de apresentação alfabético ou temático”[6]. Segundo Maria Esther Maciel (MACIEL, 2004, p. 5), o modelo enciclopédico possibilita uma multiplicidade aberta, móvel e inesgotável de saberes. Da ordem se subtrai o limite, já que tudo pode ser continuamente reordenado, daí o interesse constante de artistas e teóricos contemporâneos pela enciclopédia.
Umberto Eco (ECO apud MACIEL, 2004, p. 6) criou o termo “semiose ilimitada” da enciclopédia, comparando-a a um labirinto em forma de rede, no qual cada ponto pode ter conexão com qualquer outro ponto. Segundo o autor, ao contrário do que se pensa, ela não reflete de modo unívoco e racional um universo ordenado, mas fornece regras para que se busque dar sentido a um mundo desordenado ou cujos critérios de ordem nos escapam.
Esse conceito de enciclopédia de Eco nos remete ao modelo rizomático criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ao rizoma eles opõem a árvore, que respeita a lógica binária, não compreendendo a lógica da multiplicidade, a árvore necessita de uma forte unidade principal. Pertencem a este modelo da lógica binária a psicanálise, a lingüística, o estruturalismo, etc. Uma das características do rizoma, segundo Deleuze e Guattari, é o princípio de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro. É muito diferente da árvore ou raiz, que fixam um ponto, uma ordem. Um rizoma não cessa de conectar cadeias diferentes, negando a existência de uma língua em si, uma universalidade da linguagem.
Outra característica do rizoma é seu princípio de multiplicidade. Segundo os autores (DELEUZE, GUATTARI, 2006, p. 8)
As multiplicidades ultrapassam a distinção entre consciência e inconsciente, entre natureza e história, corpo e alma. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõe nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito […] Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus agenciamentos, que são hecceidades; a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma; a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.
Eco vê na enciclopédia exatamente o oposto do dicionário, devido a sua impossibilidade de hierarquizar de modo único e incontroverso as marcas semânticas, as propriedades, os semas, assumindo, ao contrário, a função de mapear a vida de uma cultura como um sistema de sistemas intersemióticos interligados.
Segundo Maciel, designar o cinema de Peter Greenaway como enciclopédico (e rizomático) é reconhecê-lo como uma rede de saberes, linguagens, suportes, metáforas, alegorias, intertextos, organizados de acordo com determinadas regras (arbitrárias, na maior parte das vezes). É um cinema que trata de diversos temas e rompe os limites da tela para se expandir em diversos outros espaços artísticos. Seus filmes são um conjunto de saberes no qual a pintura, o teatro, as artes figurativas, a ópera e o vídeo têm um papel fundamental. Segundo Ivana Bentes[7], o cinema surge em Greenaway como a virtualização de todas as artes, sobrepondo-se este olho estruturador e enciclopédico a qualquer desejo narrativo.
Segundo Peter Greenaway[8], toda obra artística é enciclopédica por natureza, pois tem a habilidade de articular todo o mundo. Segundo o cineasta, seus filmes são seções desta enciclopédia do mundo. Greenaway parodia a ciência com suas catalogações, em seus filmes a organização ao associar elementos heterogêneos é completamente arbitrária, conectando elementos distintos entre si sem nenhuma lógica aparente.
Assim como o rizoma, não há uma direção linear afirmando uma unidade de totalização. Seus filmes são multiplicidades que à medida que crescem mudam de natureza, pois mudam as leis de combinações. Greenaway seria como um tecelão, realizando agenciamento (DELEUZE, GUATTARI, 2006, p. 17), que é precisamente o crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que aumenta suas conexões.
Para Deleuze e Guattari, a obra de arte funciona como agenciamento, pois ela não tem objeto. Ela está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outras obras e outros elementos, por isso ela não tem um significado oculto. Não devemos nos perguntar o que ela quer dizer, mas como ela funciona, com o que ela faz conexão, com o que ela faz passar intensidades e em que multiplicidades ela se introduz e metamorfoseia a sua.
Os filmes de Greenaway seguem esta lógica, estão sempre se relacionando e dialogando com outras formas artísticas. Além disso, ao utilizar as listas e os catálogos, o cineasta conecta coisas completamente distantes entre si. Podemos perceber o uso desses dispositivos classificatórios em diversos filmes do diretor, como em H is for house (1973), no qual ele cataloga palavras que começam com a letra H. Em Window (1975), ele cria o filme baseando-se em casos de morte por defenestração, em Dear fone (1977) relaciona histórias que tem em comum o uso do telefone. Em The falls (1980) o diretor faz um inventário de 92 biografias fictícias de vítimas de uma grande catástrofe.
Em O livro de cabeceira Greenaway homenageia (de modo algum ilustra, segundo ressalta o próprio diretor) o livro de uma cortesã real do século X, Sei Shonagon, um livro que constitui-se principalmente por listas. Segundo Greenaway, é um livro solto, impressionista, quase sem coerência narrativa contínua. Em O Livro de cabeceira os temas que conectam todos os elementos são sexo e texto. Todo o filme é como que uma rede ligada a esses dois assuntos.
Shonagon tem, como Greenaway, um gosto por listas e ligações aparentemente arbitrárias. Um exemplo de uma das listas que Shonagon faz no livro e que Greenaway coloca no filme é:
Coisas próximas que no entanto estão distantes
O Paraíso.
A rota de um barco.
A relação entre um homem e uma mulher.
Ela, assim como o diretor, reedita a realidade através de elementos bem específicos e distantes que são associados de maneiras improváveis, além de tornar visíveis conceitos através de imagens.
No artigo O livro de cabeceira Susana M. Dobal[9] investiga o filme tomando o ideograma como modelo. Segundo Dobal, o ideograma foi usado para relacionar termos como texto e imagem, arte e cinema, tradição e novas tecnologias. Eisenstein, na década de 20, utilizou o ideograma para expor o princípio da montagem, considerado por ele o principal aspecto a ser explorado no cinema. Ele defendia a “montagem inteligente”, que seria uma montagem que tivesse como objetivo, ao unir dois elementos, criar um conflito que gerasse um terceiro elemento diferente dos dois. Eisenstein ilustrou isso com o ideograma, demonstrando que é possível unir duas imagens figurativas para formar uma idéia, resultando em um conceito diferente.
Uma lógica semelhante a do agenciamento de Deleuze. Segundo este, na narração falsificante (DELEUZE, 2007, p. 163)
[…] os próprios elementos não param de mudar com as relações de tempo nas quais entram, e os termos, com suas conexões. A narração inteira está sempre se modificando, a cada um desses episódios, não conforme variações subjetivas, mas segundo lugares desconectados e momentos descronologizados.
O filme de Greenaway segue o princípio de edição do ideograma de forma ainda mais radical do que poderia prever Eiseistein. O tipo de cinema que interessa a Greenaway usa este processo como meio de quebrar a linearidade. Não apenas a assimilação de elementos vizinhos dão sentido a montagem, mas elementos mais distantes quebram a linearidade com o uso de paralelismo.
O filme Tulse Luper Suitcases tem toda a sua estrutura calcada em números, episódios e elementos dispersos. São três as principais estruturas sobre as quais o filme é construído. O título completo do filme é Tulse Luper Suitcases – a life history in 16 episodes. A primeira subdivisão do filme são os 16 episódios. O filme trata da história da vida de Tulse Luper, que foi supostamente reconstruída através do descobrimento de 92 maletas que o protagonista teria deixado pelo mundo. A terceira linha que o filme segue são 92 objetos para representar o mundo.
Os objetos aparecem no filme de forma dispersa e intercalada, sem seguir uma ordem numérica, se relacionando unicamente com os fatos ocorridos na vida de Luper. Já as maletas vão aparecendo de forma sistemática ao longo do filme, seguindo sua ordem numérica. Aparecem, sucessivamente, a maleta de número um, depois a maleta número 2 e assim por diante, remontando a construção da história do personagem. A primeira maleta contém carvão e representa as montanhas reais e fictícias na terra e na lua que o personagem vai encontrar pelo seu caminho. A maleta de número 2 contém brinquedos, que representam os interesses de Luper como colecionador e medidor, a número três contém as fotos de Luper, a número quatro contém as cartas de amor e assim por diante.
O filme é um rizoma de elementos que se conectam e vão montando uma teia que seria a passagem do protagonista pelo mundo. Segundo Deleuze e Guattari, o rizoma conecta um ponto qualquer a um outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza. O rizoma não se deixa reconduzir ao Uno nem ao múltiplo, ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele transborda. Não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear. Segundo os autores (DELEUZE, GUATTARI, 2006, p. 32)
Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução […] O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada […] o rizoma se refere ao mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga […] Contra os sistemas centrados, de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, unicamente definido por uma circulação de estados.
Tulse Luper Suicases é precisamente um mapeamento da existência de um homem no século dezenove que passou a maior parte de sua vida em prisões pelo mundo. A medida em que as maletas com os elementos são encontradas, sua história vai sendo reconstituída e se modificando. Sua vida é um mapa aberto sendo montado e desmontado a partir dos elementos novos que surgem. O que interessa é justamente a reconstrução desse percurso realizada através da conexão dos elementos encontrados que se relacionam entre si.
O uso dos dispositivos classificatórios que Greenaway utiliza servem como estratégia para burlar as narrativas convencionais e o uso desses mapas abre as possibilidades para a imaginação. Segundo Deleuze e Guattari, o mapa faz parte do rizoma, a ele opõe-se o decalque. O mapa se opõe ao decalque por estar inteiramente voltado para uma experimentação. Ele não reproduz, constrói, não estabelece uma relação mimética com o mundo. Os mapas são abertos, conectáveis em todas as suas dimensões, desmontáveis, reversíveis, suscetíveis de contínuas modificações. Assim como o mapa, a enciclopédia de Umberto Eco é um modelo aberto, múltiplo e extensível ao infinito (ECO, 1989, p. 337).
Peter Greenaway já manifestou sua obsessão por mapas em diversas entrevistas e textos. Segundo o diretor, na era moderna os mapas deixaram de ser poéticos para se tornarem meras ferramentas, mesmo assim, continuam tendo potencialidades de nos mostrar onde estamos abarcando várias temporalidades em um mesmo espaço. Greenaway utilizou mapas em seus filmes mais de uma vez. Em A walk through H, um ornitologista relata sua jornada após a morte em direção a um lugar designado pela letra H. Para orientar sua caminhada o ornitologista segue 92 mapas ordenados por um amigo, Tulse Luper, um aficcionado por pássaros que é também escritor, cartógrafo e cineasta. Além deste, Luper aparece em outros de seus filmes até se tornar o personagem principal nessa nova saga Tulse Luper Suitcase.
– Violentar o pensamento e gaguejar na linguagem – um estrangeiro em sua própria língua.
Greenaway é um estrangeiro em sua própria língua. Cineasta que faz pintura, um cinema da imagem e não da palavra. Sua formação vem da pintura e sua obra cinematográfica é marcada por sua relação com ela. Em seu artigo Cinema: 105 anos de texto ilustrado[10], Greenaway fala da relação entre texto e imagem no cinema. O filme O livro de cabeceira (1996) teve como objetivo, segundo o cineasta, tratar de sua desconfortável sensação de que até hoje não se viu nenhum cinema. Para ele, o que vimos foram 105 anos de texto ilustrado, já que todos os filmes seguem um texto, ilustram palavras.
Desde seu surgimento, o cinema, com suas infinitas possibilidades expressivas, resolveu, com Griffith, para agradar uma elite, se aliar à literatura e aprender a contar histórias. Greenaway acredita que esse seja o maior defeito do cinema, já que para ele, a literatura é o melhor meio para narrar histórias por potencializar a imaginação como nenhuma outra. Ele acredita ser primeiro um pintor, e diz que a melhor pintura não é a narrativa.
Para Greenaway, o cinema tem a ver com outras coisas que não a narração. O que lembramos de um filme, segundo ele, não é a história, mas uma “experiência especial e quem sabe única que tem a ver com atmosfera, ambiência, performance, estilo, uma atitude emocional, gestos, fatos isolados, uma experiência audiovisual específica que não depende da história” (MACIEL, 2004, p. 12).
O livro de cabeceira é o filme de Peter Greenaway que mais se defronta com a relação entre imagem e texto. A provocação lançada por Grennaway é dar texto a um cinema que acredita erroneamente ser calcado na imagem. O filme tem diálogos falados em vinte e cinco línguas e apresenta texto caligráfico escrito sobre papel, madeira, carne, superfícies curvas e planas, verticais e horizontais, sobre carne viva e carne morta, em néon, telas, projeção, como subtítulo, intertítulo, como Arte Elevada e arte baixa, sobre fotografia, quadro negro, correspondência, além de falado, cantado, com ou sem música… Greenaway pergunta; “Vocês querem texto? O cinema quer texto? O cinema tem a pretensão de prescindir do texto? Então tomem texto para zombar daquela impressão presunçosa de que o cinema é feito de imagens” (MACIEL, 2004, p. 15).
Segundo Greenaway, seu principal objetivo no filme é mesclar texto e imagem. Assim como a caligrafia japonesa, na qual o que se vê como imagem se lê como texto.
A idéia de descrição como alternativa à narrativa clássica como contrapartida ao primeiro cinema é, como ressalta Vasconcelos (VASCONCELOS, 2006, p. 142), inspirada nas técnicas literárias do nouveau roman, movimento literário que surgiu na década de 50. Este movimento adaptou as técnicas do mundo contemporâneo à literatura, subvertendo-a por completo, através da construção de uma teoria das descrições. Descrever seria o avesso de narrar. O escritor deixa de ser um narrador, construtor de personagens com perfis psicológicos definidos, como no romance balzaquiano. Em seu lugar, aparecem descrições minuciosas e o leitor tem a sensação de que os personagens e as coisas ganham um caráter de presença. Essa teoria das descrições é importante “intercessora” da filosofia de Deleuze quando ele pensa nas narrativas falsificantes do cinema moderno.
O cinema, para Greenaway, é um meio de expressão visual. Ao comparar o cinema com a pintura ele busca legitimar a linguagem cinematográfica. A metáfora da pintura em seus filmes ultrapassa a simples referência, manifestando-se como a construção do próprio vocabulário cinematográfico. A pintura é, na maioria das vezes, o ponto de partida para desenvolver o filme, o diretor acredita na autonomia da imagem.
Greenaway separa o discurso da representação, ele demonstra o artifício da linguagem cinematográfica para desarticular seu vocabulário em termos de forma e conteúdo, despertando o olhar pictórico e dando autonomia para a imagem.
Ele rompe, desta forma, com a linguagem do cinema clássico. Ele gagueja na linguagem. Deleuze e Guattari falam da necessidade de não ter controle da língua, de ser estrangeiro em sua própria língua a fim de destruir certa imagem do pensamento e ampliar os limites do pensamento imóvel[11]. Seria esta a forma de exterioridade, de criar um devir-pensamento, Segundo os autores (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 44), criar
Um pensamento às voltas com forças exteriores em vez de ser recolhido numa forma interior, operando por revezamento em vez de formar uma imagem, um pensamento-acontecimento, hecceidade, em vez de um pensamento-sujeito.
Uma característica marcante no cinema de Greenaway que promove essa quebra decisiva com a linguagem clássica e transgride sua lógica é a explicitação do artifício. Uma das características fundamentais para a construção da linguagem cinematográfica clássica é a impressão de realidade, que gera a identificação por parte do espectador. Existem algumas regras específicas de montagem e de enunciação que garantem que haja a impressão de realidade no cinema, as principais delas são a ocultação do aparato cinematográfico e a verossimilhança.
Peter Greenaway rompe com ambas. Ele tem uma posição bem clara quanto a isso. Ao colocar em evidência os meios e artifícios da linguagem cinematográfica ele consegue desarticular seu vocabulário e quebrar a ilusão cinematográfica. Ele faz filmes que se parecem com filmes, são anti-narrativos e anti-realistas. Ao ressaltar o artifício ele coloca em evidência o simulacro implícito em toda representação.
Greenaway opta por fazer filmes com uma estética maneirista, ornamental, ele iguala vida e arte como “ornamento”, na sua gratuidade e beleza. Seu artificialismo é construído para provocar vertigens na razão.
O diretor sempre brincou com realidade e ficção, com uma ironia de quem não pretende ser levado completamente a sério. Ele sempre utilizou elementos que quebrassem com a impressão de realidade e a descontinuidade do espaço narrativo. Com a entrada da imagem eletrônica, entretanto, suas possibilidades de transgressão da linguagem aumentaram.
Greenaway lamenta-se da falta de experimentalismo no cinema, que o deixou atrás das abordagens mais radicais já desenvolvidas na pintura e na literatura.
A inscrição de textos na tela, a montagem no interior dos quadros e a sobreposição de imagens, por exemplo, são recursos difíceis e em alguns casos impossíveis de se realizar no cinema em película.
O cinema de Greenaway se enquadra no que Philippe Dubois chama de cinema maneirista, que é o cinema do artifício. Segundo o autor (DUBOIS, 2004, p. 182), o maneirismo concerne tanto aos dispositivos de encenação da palavra quanto aos diversos procedimentos de tratamento da própria imagem. Características marcantes do cinema maneirista são o retorno da câmera lenta e da imagem congelada, a revalorização da sobre-impressão, o gosto pela imagem dividida, multiplicada, incrustada, as deformações ópticas ou cromáticas, a referência às outras artes e a própria história do cinema, etc. Segundo Dubois, o trabalho subterrâneo do vídeo lhe pré-formou, deliberadamente ou não.
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TESE
GERBASE, Carlos. Impactos das tecnologias digitais na narrativa cinematográfica. PUC-RS, 2003.
CATÁLOGO
Associação Cultural Viedobrasil. Limite – Movimentação de imagem e muita estranheza.16° Festival Internacional de Arte Eletrônica.
[1] Este texto é a Introdução do livro Mil Platôs Vol. 1, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, publicado no Brasil pela primeira vez em 1995 e é um dos textos mais importantes para se conhecer o pensamento de Deleuze e Guattari.
[2] Trecho extraído do texto que abre o catálogo do Festival, Uma conversa infinita.
[3] Entrevista publicada no catálogo do Festival.
[4] Trecho extraído da entrevista publicada no catálogo.
[5] O termo “narrativo” é extremamente complexo e é largamente discutido por diversos teóricos. Segundo Jacques Aumont (A estética do filme, 2007), nem tudo no cinema narrativo é forçosamente narrativo da mesma forma que o cinema que se proclama não-narrativo sempre conserva alguns traços do filme narrativo. No entanto, o que contrapomos à narratividade de Greenaway é o modelo narrativo clássico, que tem fundamentalmente o objetivo de desencadear uma narrativa linear, com relações causais e com o máximo de coerência.
[6] Definição do dicionário extraída da introdução do livro O cinema enciclopédico de Peter Greenaway, organizado por Maria Esther Maciel.
[7] Artigo Greenaway: A estilização do caos, publicado originalmente em Revista Veredas e republicado no livro O cinema enciclopédico de Peter Greenaway.
[8] Entrevista concedida à Márcia Pally, em 91 e publicada no livro Peter Greenaway – Interviews, em 2000, editado por Vernon Gras e Marguerite Gras.
[9] Artigo publicado no livro Cinema dos anos 90, 2005, organizado por Denílson Lopes.
[10] Artigo traduzido por Myriam Ávila, publicado no Brasil no livro O cinema enciclopédico de Peter Grennaway, em 2004, organizado por Maria Esther Maciel.
[11] Ver o capítulo 2 da presente pesquisa, sobre arte e máquina de guerra, página 53.
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