Globalização e Cinema: uma breve reflexão sobre a cinematografia nacional

Hadija Chalupe possui graduação em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (2004). Atualmente é mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve projeto intitulado A Distribuição do Filme Brasileiro Hoje: estudo comparativo entre quatro filmes lançados no ano de 2005, com orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos (Tunico) Amancio da Silva. Tem experiência na área de Educação e Cinema, com ênfase em Distribuição e Produção Cinematográficas, atuando principalmente nos seguintes temas: cinema brasileiro contemporâneo, indústria do audiovisual, distribuição e produção cinematográficas

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Acredito que para tecermos considerações acerca da atual conjuntura do mercado cinematográfico, seja necessário partirmos do pressuposto de que o cinema é a linguagem da confluência. Dizemos isso tendo como foco dois pontos: o primeiro é a construção e articulação da narrativa ao relacionar diferentes e divergentes “formas” artísticas, tendo como objetivo a expressão de um ponto de vista. Dessa forma, o cinema “constitui o lócus ideal para a orquestração de múltiplos gêneros, sistemas narrativos e formas de escritura” (STAM, p.26, 2003). O segundo, que mais nos interessa nesse caso, diz respeito a como o cinema se relaciona com o meio, articulando duas formas originalmente distintas: a arte e a indústria. Como aponta Rosenfeld:

O filme, como arte, se transforma em meio de expressão – usando como veículo a cinta de celulóide. E como meio de expressão peculiar e inconfundível, o filme, feito de luz, imagem e movimento, invade o terreno da arte. Por isso, o filme, quando simplesmente reproduz uma peça teatral de valor estético, não é uma obra de arte – é apenas veículo de comunicação e reprodução que fixa, multiplica e divulga uma obra de arte por meios mecânicos. Todavia, quando se apodera da mesma peça, refundindo-a, recriando-a segundo seus próprios meios de expressão, deixa de ser um simples veículo e transforma-se, eventualmente, em arte genuína (ROSENFELD, 2002, p. 34-35).

A partir dessa afirmação, o teórico aponta que a historiografia do cinema deve ter consciência de que seu objeto embrionariamente é constituído sobre a relação dialética entre a criação (como os meios estéticos serão articulados para obter determinados efeitos) e o consumo (disponibilização do produto no mercado com o objetivo final de obter lucro). Ele indica que, como toda arte, é da própria essência do cinema a realização de uma “síntese maravilhosa de auto-expressão individual e de comunicação social” (ROSENFELD, 2002, p. 39). O cinema, portanto, é visto como uma forma de entretenimento que alia os elementos essenciais para a organização de “nossa vida psíquica e ao verdadeiro sentido de cultura”, numa relação em que arte e entretenimento não se excluem.

Só uma parcela do entretenimento é arte, mas toda arte é – para aqueles que a amam – entretenimento e prazer. Não dizia Cervantes que toda grande obra de arte entretém e diverte serenamente o espírito? (…) É através da superfície do entretenimento que a arte [nesse caso, o cinema] nos conduz imperceptivelmente aos mistérios mais profundos da vida. O fato, portanto, de que o cinema é uma indústria do entretenimento não exclui a produção de arte. (ROSENFELD, 2002, p. 42) [grifo nosso]

Entretanto, a realização de um filme é impossível que se concretize sem o investimento de capital e, principalmente, sem uma mínima “organização industrial”. Isso porque, para que o filme chegue ao espectador, ele também perpassa por um processo de circulação de “produto”, como qualquer outro que seja colocado no mercado, como aponta Luiz Gonzaga de Luca, professor doutor da FGV e diretor do Grupo Severiano Ribeiro:

A sociedade industrial pressupõe os mecanismos de produção, de distribuição e colocação do produto à disposição do consumidor nos pontos-de-venda. Nesse sentido, o filme atende a estas características como qualquer outro bem de consumo. Se assim não fosse, estaríamos falando de uma produção artesanal, onde a circulação do produto fica restrita às pontas do produtor e o consumidor, sem a intermediação de terceiros e sem a preocupação da venda maciça. Alguns produtos cinematográficos obedecem este último tipo de circulação, porém, a estrutura da indústria cinematográfica está montada para o atendimento de um grande número de consumidores. (2008, em entrevista concedida a autora)

Ela também depende de equipamentos específicos (câmeras, gruas, travellings, equipamentos de som, ilha de edição), de know-how altamente qualificado (diretores, técnicos e atores), de matéria-prima (filme fotossensível ou componentes digitais), e depende, principalmente, de uma infra-estrutura empresarial complexa, que atenda a todas as fases de elaboração, constituição e comercialização do filme, sendo uma estrutura que demanda grandes investimentos de capital.

No caso da indústria cinematográfica (…) não só a exploração, [distribuição/comercialização], mas a própria criação requer capitais consideráveis e, por isso, a empresa, ao encomendar a confecção de um filme, forçosamente tende a impor desde o início os princípios que lhe parecem certos. (ROSENFELD, 2002, p. 36) [grifo nosso]

Nesse trecho, fica explícito um dos pontos negativos da relação arte/indústria. Por se tratar de uma “indústria cultural”, os padrões de relacionamento com a cultura mudam, uma vez que ela passa também a ser concebida como um “investimento comercial” (ORTIZ, 2001, p.144). Esse é o grande choque da indústria do entretenimento, como administrar uma forma de expressão artística (bens intangíveis) aos interesses de compra e venda de produto (bens tangíveis)? Essa fórmula quando descoberta é repetida a exaustão, fazendo com que a obra siga certos padrões comerciais que nem sempre se adéquam as reais necessidades do produto artístico. Outro ponto, negativo é a limitação da liberdade artística em detrimento das imposições por parte do(s) investidor(es), por possuírem “em suas mãos” o controle do que será ou não veiculado.

Da constituição da narrativa clássica de Hollywood, até sua consolidação como linguagem cinematográfica hegemônica, perpassando pelas reivindicações dos cinemas nacionais (Neo-realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo, Nuevo Cine, dentre outros), a relação dialética entre criação e consumo foi (é e será) a força motriz das diferentes teorias e movimentos cinematográficos, na medida em que questões estéticas estão ligadas às questões éticas, políticas e sociais que atravessaram esses mais de 100 anos de cinema (STAM, 2003).

Ao pensarmos o contemporâneo, percebemos cada vez mais o vazio e o simulacro que as teorias totalitárias nos trazem. Podemos tomar como exemplo dessa afirmação o termo globalização/mundialização, tão presente em nossas vidas como a quebra de fronteiras (principalmente, econômicas) e alta facilidade comunicacional e informacional. Entretanto, para entendermos melhor como a sociedade se relaciona nesse processo tão complexo, é necessário que ele seja analisado a partir de sua relação dialética com o meio, pois, como Canclini aponta, “sua própria dinâmica gera maior mobilidade e intercomunicação, mas também (gera) desconexões e exclusão” (Canclini, 2007, p. 243).

O problema do estudo isolado ou fragmentado é que ele exclui a interconexão dos fatos, como se as decisões e ações acontecessem por “geração espontânea”, e não como resultado de um extenso processo histórico. Desse modo, a história e a vida social podem ser comparadas a uma colcha de crochê, em que cada nó possui sua autonomia a partir da relação com o outro.

Vivemos num mundo confuso, onde as mudanças são cada vez mais rápidas e cerceadoras, fazendo com que os territórios nacionais oscilem entre a ação de um mercado dito comum, voltado para o capitalismo neoliberal e a homogeneização da cultura visando à consagração de um discurso único.

O desequilíbrio causado pela naturalização de uma visão fragmentada dos fatos foi intensificado a partir das décadas de 1980 e 1990 (Canclini, 2007, p. 27). É nesse momento que o livre comércio e a abertura de fronteiras nacionais aparecem como recursos para o recolocar-se na competição econômica, sendo “vendida” – sobretudo aos países menos desenvolvidos – a promessa de novas oportunidades para impulsionar suas políticas e economias a partir da integração dos mercados e do livre comércio.

Defende-se a idéia de “aldeia global”, em que as notícias chegam instantaneamente às pessoas, através do encurtamento das distâncias proporcionado pelas novas tecnologias informacionais, (como se o mundo estivesse ao alcance “em um click”) com o objetivo de dar continuidade ao sistema vigente, onde o culto ao consumo é constantemente estimulado. Há a defesa de um mercado auto-regulador (representado pelas agências reguladoras), “sem a influência do Estado”, de forma a mascarar a manipulação das estruturas econômicas opressoras, representadas pelas grandes empresas multinacionais. Entretanto “quanto mais o país é aberto, mais desordem é criada, e mais ele necessita de regulação, isto é, de Estado” (SANTOS, 2000, p. 40).

Ao mesmo tempo, essa globalização, que deveria oferecer novas oportunidades e novos ambientes de trocas de experiências e de intercâmbio cultural, passa a massificar a diferença, redefinindo os sujeitos e os bens culturais, convertendo o diferente em produto mercadológico, redefinindo seus “produtos para que circulem internacionalmente e fazer calar a enorme maioria dos criadores locais” (Canclini, 2007, p. 244).

Essa visão meramente mercadológica das produções fica mais perversa a partir da afirmação de Octávio Getino, de que nesse processo a cultura é vista meramente como entretenimento, assim pouco importa que uma comunidade possa identificar-se ou não com as manifestações culturais locais, pois elas podem ser re-elaboradas por outros tipos de identidades e propostas culturais, sendo facilmente assimilada como própria “em um desdobramento esquizofrênico, em que uns se impõem e os outros se curvam. Ou um processo em que uns vencem e outros são mais que vencidos, terminam por ser convencidos, o que seria muito mais grave e decisivo para nossos processos identitários” (Getino, 2004, p. 04).

O panorama da globalização é extremamente complexo por possuir ao mesmo tempo a conexão e a desconexão. A crescente interconexão tecnológica entre as sociedades favorece o disfarce da assimetria dessa relação. Essas interconexões e fluxos comunicativos não são “neutros”: eles são a voz do discurso totalitário do livre mercado. Mas “livre mercado” para quem, uma vez que, ao invés “do livre jogo estético e econômico entre produtores culturais, os interesses de empresas dedicadas ao entretenimento ou às comunicações é que influem naquilo que se edita, se filma ou pode abrigar-se em museus” (Canclini, 2007, p. 27)

Desde a chamada Retomada do Cinema Brasileiro, a indústria cinematográfica nacional sofreu algumas mudanças significativas, na tentativa de alcançar uma isonomia de mercado. Passados aproximadamente, quinze anos o quadro ainda é problemático, havendo dificuldade de distribuição, divulgação e exibição dos filmes nacionais.

Durante o mandato tampão de Itamar Franco, ocorre aquilo que se convencionou chamar de ‘Retomada do Cinema Brasileiro’. A expressão ‘retomada’ ressoa como um boom ou um ‘movimento’ cinematográfico. O estrangulamento dos dois anos de Collor teria resultado num acúmulo de filmes nos anos seguintes, produzindo uma aparência de boom.” (NAGIB, Lúcia, p. 34, 2002)

Creio que para se dar o ponto de partida no entendimento da estrutura de produção e difusão cinematográfica brasileiras, seja necessário, primeiramente, o entendimento das relações sócio-político-econômicas que permeiam nossa sociedade contemporânea. Devemos entender a totalidade desse processo não apenas como um fenômeno brasileiro, mas como reflexo das relações políticas internacionais.

Cada período é caracterizado pela existência de um conjunto coerente de elementos de ordem econômica, social, política e moral, que constituem um verdadeiro sistema. Cada um desses períodos representa uma modernização, isto é, a generalização de uma inovação vinda de um período anterior ou da fase imediatamente precedente. Em cada período histórico assim definido, as regiões “polarizadoras” ou centros de dispersão do poder estruturante dispõem de energias potenciais diferentes e de diferentes capacidades de transformá-las em movimento. A cada modernização, o sistema tende a desdobrar sua nova energia para os subsistemas subordinados. Isso representa uma pressão para que, nos subsistemas atingidos, haja também modernização. (SANTOS, Milton, p. 31)

As mudanças para a cinematografia brasileira contemporânea dão início na década de 90, com o encerramento das atividades da EMBRAFILME, que culmina com o intenso processo de mudanças político-econômicas do Brasil. O país passa a se adequar ao jogo do livre-mercado, empresas são privatizadas e os investimentos são abertos ao mercado e às organizações estrangeiras.

Foi um momento de desobrigação do Estado dos negócios do cinema, sob a alegação de que o cinema brasileiro poderia competir em regime das leis de mercado com o produtor/distribuidor estrangeiro.

Nesse momento, o Minc é rebaixado à condição de Secretaria da cultura (…) o primeiro secretário de Cultura foi o jornalista e cineasta Ipojuca Pontes (…) que revogou a legislação cinematográfica em vigor, reduziu a exibição obrigatória de filmes brasileiros para 70 dias [a cota era de 140 dias/ano] e a presença do filme brasileiro nas vídeo locadoras de 25% para 10% e operou tecnicamente e politicamente o fechamento dos órgãos cinematográficos em atividade (Concine, Embrafilme e FCB) (Gatti, 1999, p. 55).

Com o fim da EMBRAFILME, até a criação de novas medidas regulatórias para o cinema nacional, empresas estrangeiras ocuparam as lacunas deixadas pela falta de regulamentação governamental. Criou-se um ambiente de novas facilidades de investimentos externos, fazendo com que houvesse uma acumulação desigual da propriedade cultural. O Estado, com o intuito de apoiar um mercado que está em constante mutação, elaborou políticas públicas culturais, com base em mecanismos de renúncia fiscal (mecanismo em que o investidor – seja ele, pessoa física ou jurídica – reverte parte do imposto, que seria destinado à União, à produção de filmes nacionais[1]) assegurados pelas Leis Rouanet e do Audiovisual, permitindo que empresas invistam na produção audiovisual brasileira.

Retomada, portanto, acabou se transformando na palavra-chave mais adequada e usual para nomear este processo de retorno do cinema brasileiro, não como um movimento de preocupação estética ou social, mas como uma espécie de restauração autorizada. Aqui, é possível identificar um grau de restabelecimento institucional na medida em que alguns filmes começavam novamente a cumprir a função de chegar ao público, através das telas das salas de cinema. (BARONE, p.138, 2005)

Como aponta o professor e pesquisador João Guilherme Barone a Retomada deve ser vista como um “fenômeno múltiplo do fato cinematográfico” (2005, p.140), pois mesmo não havendo medidas diretas de incentivo por parte do Estado no que se refere à distribuição e exibição fílmica, podemos verificar que nesse momento a iniciativa privada encontrou um campo interessante e próspero a ser explorado. Surgiram novas empresas interessadas na sinergia entre TV e cinema[2], foram criadas novas empresas distribuidoras[3] – as chamadas independentes – num mercado controlado predominantemente pelas majors norte-americanas, além do reordenamento do parque exibidor com a inserção do multiplex e de salas especializadas na exibição de “filmes de arte”.

Mesmo com o desigual incentivo à cadeia cinematográfica como um todo (devido ao direcionamento exclusivo à produção/criação do filme), podemos perceber que caminhamos para um restabelecimento da produção cinematográfica nacional. Isso porque esse incentivo gera um ambiente favorável à comercialização, a causa do aumento da oferta do número de filmes. A prova disso são os 90 filmes, aproximadamente, que foram lançados no ano de 2007: um crescimento de 22% nos últimos quatro anos.

Segundo Almeida e Butcher em Cinema: Desenvolvimento e Mercado é necessário que sejam estabelecidas metas realistas de crescimento, pois a situação como se apresenta hoje aponta para dois caminhos distintos: para uma melhor estruturação do mercado, ou para novos surtos de crescimento e crise.

Em resumo, é preciso consolidar e amadurecer as conquistas da retomada para dar início a uma nova fase. Antes, no entanto, é preciso desatar nós, construir laços mais fortes com a distribuição em um setor de exibição mais ramificado pelo Brasil, facilitando a circulação dos filmes. (ALMEIDA e BUTCHER, 2003)

A produção cinematográfica nacional possui um custo variável[4], entre aproximadamente 500 mil reais a dez milhões de reais. Comparado às produções norte-americanas, que são da ordem de 100 milhões de dólares[5] (aproximadamente 300 milhões de reais), a produção cinematográfica brasileira possui um custo muito baixo. No entanto, para os padrões sócio-econômicos em que o Brasil está inserido, ainda é uma atividade que necessita um valor muito alto, para sua concepção e viabilização. Além disso, somam-se à produção do filme os altos custos de comercialização (divulgação e lançamento) que não são somente os gastos com materiais de divulgação, como cartazes, flyers e outros tipos de peças gráficas, mas também o marketing televisivo e a confecção de cópias que serão geradas para seu lançamento. Como afirma Almeida e Butcher em Cinema Desenvolvimento e mercado, 2003:

O custo padrão do lançamento de um filme brasileiro está em cerca de R$ 1,5 milhão – o que significa que para cobrir esse gasto, o produtor e distribuidor precisam levar 900 mil espectadores aos cinemas. Uma equação perversa do mercado que comprova como os necessários investimentos em mídia são altos e de dificílima recuperação. (ALMEIDA e BUTCHER, 2003)

Esse é o “calcanhar de Aquiles” da atividade, a recuperação dos investimentos, que deveria proporcionar um capital excedente, que pudesse ser (re)investido em próximas produções. Esse processo serviria para capitalizar a empresa produtora fazendo com ela deixasse de depender das leis de incentivo para operar no mercado. Infelizmente ainda estamos um pouco longe de atingir tal situação. Sem as leis de incentivo e a intervenção do Estado, o mercado cinematográfico nacional pára por não possuir mecanismos que garantam o financiamento da produção. Um produto quando é comercializado geralmente irá resgatar seu valor de custo, impostos e mais uma porcentagem que corresponderá ao lucro dessa transação. No cinema esse processo se dá inicialmente nas salas de exibição, mas com os avanços tecnológicos e com as novas possibilidades de espaço para exibição de um filme, a recuperação exclusiva dos investimentos através da bilheteria do cinema é cada vez mais difícil.

Através de diversas pesquisas publicadas na coleção Cinema no Mundo[6], podemos verificar que essa não é uma situação exclusiva da atividade cinematográfica brasileira, podemos verificar que as cinematografias nacionais só conseguem se sustentar minimamente em seu próprio mercado através de alguma intervenção governamental.

Para isso é necessário o estudo das novas dinâmicas cinematográficas, alinhadas ao conhecimento de planejamento, mercado, público, legislação, comunicação e marketing para que estes profissionais tenham uma maior perspectiva da situação do mercado cinematográfico atual, possuindo conhecimento para modificá-lo e aperfeiçoá-lo.

Dessa forma, a presença regulatória do Estado passa a ser fundamental para que se mantenha a diversidade de produção cultural. Para o teórico Otávio Getino, esse é o maior desafio: elaborar políticas e ações concretas que permitam a coexistência entre os grandes grupos empresariais e as pequenas e médias empresas do setor. Pois, como Canclini, aponta:

“As empresas que administram os meios de comunicação e os serviços de tecnologia comunicacional quase nunca pensam em políticas públicas, mas em gestão comercial. Assim, os problemas habituais das políticas culturais – a propriedade e o uso dos patrimônios, a diversidade de bens e sua difusão, a participação e o consenso como campos da cultura – parecem ter-se diluído na vertigem de privatizações e da transnacionalização, expansão das clientelas e avidez dos investidores por lucros.” (Canclini, 2007, p.261)

Na atividade cinematográfica brasileira esse processo pode ser visto por dois ângulos, o da estrutura e o da recepção. O primeiro ponto se refere ao encerramento das atividades de inúmeras produtoras de cinema, ou a transferência de suas atividades para outros setores afins (como a publicidade), conseqüentemente esse fato desembocou no decréscimo vertiginoso do número de filmes brasileiros lançados no mercado. Um ambiente que já havia absorvido uma média de 87 filmes[7] e já tinha atraído uma média de 50 milhões de espectadores passa a ter no mercado no máximo três filmes (em 1992), com um total de espectadores que não ultrapassou 40 mil espectadores. Isso possibilitou um espaço ainda maior para a ocupação do filme estrangeiro (norte-americano) que passou a representar quase 90% do que era visto pelos brasileiros. Ao mesmo tempo, não podemos afirmar que a produção cinematográfica parou por completo, como é o caso das produções de curtas-metragens e da Boca do Lixo paulistana (com a produção de filmes pornôs, já numa fase de transição para o uso do vídeo ao invés da película). O que alguns pesquisadores afirmam é que um certo modelo de “fazer filmes” ficou paralisada durante os anos que não haviam intervenção direta do Estado, que tinham em “comum, principalmente, o fato de serem mantidos com dinheiro público.” (CAETANO;VALENTE; MELO; JR, 2005, p. 11)

Já no campo da recepção temos uma mudança drástica no perfil do público freqüentador das salas de cinema, uma nova forma de ter acesso ao filme é inserida no mercado (home vídeo) e as salas de cinema tiveram que dividir seu público com mais uma “janela de exibição”, além da televisão. Inúmeras salas fecharam suas portas por não possuir capital suficiente para a renovação do negócio, deixando o caminho livre para um novo modelo de exibição trazido por empresas exibidoras estrangeiras, o chamado multiplex. São conjuntos de salas de cinema, instaladas dentro de shopping centres, equipadas com alta tecnologia de imagem e som, fator que impulsionou o aumento do valor do ingresso do cinema e conseqüentemente a queda do público espectador. Em outra chave temos a partir dos anos 80, a revitalização dos cineclubes, que são circuitos alternativos de exibição, onde, geralmente, são exibidos filmes que estão fora do circuito comercial. A prática cineclubista foi responsável pela criação de um novo modelo de salas de exibição, os circuitos de arte. Essa rede de exibição (correntemente conhecida como circuito alternativo) se especializou na disponibilização de filmes que não conseguiam (ou poderiam) se inserir na lógica de exibição dos multiplex, ou seja, filmes produzidos fora da lógica de produção de Hollywood. Uma das primeiras experiências foi a abertura das salas do cinema Estação Botafogo no Rio de Janeiro, que posteriormente estendeu sua ação para outras capitais brasileiras como, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Posteriormente, temos também a abertura de circuitos arte vinculados a investimentos bancários como o Unibanco Arteplex, HSBC Belas Artes; ou vinculados a empresas distribuidoras como é o caso da Imovision com a programação das salas do Reserva Cultural em São Paulo. Podemos perceber que a partir da inserção desses circuitos no mercado e “criou-se um certo nicho social para onde confluíram diversos grupos e tendências.” (CAETANO;VALENTE; MELO; JR, 2005, p. 41). Com a retomada da produção esse foi o lócus do cinema nacional,          que mesmo com as determinações estabelecidas pela cota de tela, encontravam (e ainda de certa maneira encontram) dificuldades para serem exibidos nos circuitos multiplex. Também temos que considerar, nesse mesmo momento, a implantação dos Centros Culturais vinculados a algumas empresas como: Banco do Brasil, Caixa Econômica, Oi, Vivo; ou aqueles vinculados a museus, ou mantidos por outras instituições culturais, como é o caso do Museu da Imagem e do Som – MIS (São Paulo e Rio de Janeiro); Cinemateca Brasileira, Cinemateca do MAM (Rio de Janeiro), sala Humberto Mauro em São Paulo, Cine SESC e o Centro Cultural São Paulo (São Paulo), dentre outros.

Seja nos próprios locais agregadores (o Odeon, o MIS, o CineSesc ou o Cinema da Fundição, por exemplo), que pretendem justamente servir como espaço de expressão cultural, ou em locais diversos, relacionados a festas e eventos sociais, este cinema teve o seu lugar e a sua força – que devem ser considerados no panorama geral, a partir do momento em que se compreende a expressão cinema brasileiro não apenas como a realização de alguns longas-metragens, mas como o conjunto da produção de filmes e a relação que desenvolveram com seu público. (CAETANO;VALENTE; MELO; JR, 2005, p. 42)

O governo brasileiro tem o enorme desafio de realizar ações que regulamentem o ambiente cinematográfico brasileiro. Fomentar significa estimular, promover o desenvolvimento, o progresso e não pode estar ligado somente a uma visão monetária dos incentivos. Regular esse espaço é também ampliar e fortalecer os dispositivos legislativos que regulamentem os diferentes elos da cadeia produtiva. É atingir uma interação equilibrada entre os vários agentes. É “a superação da escassez de recursos, por meio de relações harmoniosas de produção, distribuição e consumo” (Dahl, 2006, p.22).

Bibliografia

ALMEIDA, Paulo Sérgio e BUTCHER, Pedro (2003). Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de Janeiro: Aeroplano.

BARONE, João Guilherme. Comunicação e Indústria Audiovisual: cenários tecnológicos & Institucionais do cinema brasileiro na década de 1990. Porto Alegre: Biblioteca Ir. José Otão, 2005.

CAETANO, Daniel; VALENTE, Eduardo; MELO, Luiz Alberto Rocha; JR. Luiz Carlos Oliveira. 1995 – 2005: Histórico de uma década. In: CAETANO, Daniel (org.). Cinema Brasileiro 1995 – 2005, ensaios sobre uma década, Rio de Janeiro: Azougue Editorial e Revista Contracampo, 2005.

CANCLINI, Néstor García. Diferentes, Desiguais e Desconectados – mapas da interculturalidade, 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

GATTI, André Piero. Agência Nacional do Cinema (ANCINE) – Notas para uma história (2001 – 2003). In: MACHADO, Rubens; SOARES, Rosana de Lima;

SANTOS, Milton. O espaço dividido, Edusp, 2ª ed., 2004, São Paulo.

NAGIB, Lúcia.  O cinema da retomada – depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2002. v. 1.

ROSENFELD, Anatol. Cinema: Arte e Indústria, São Paulo: Perspectiva, 2002.

STAM, ROBERT. Introdução a Teoria do Cinema, Campinas: Papirus, 2003.


[1] As leis de incentivo ao mercado cinematográfico nacional também asseguram o investimento na distribuição de filmes, construção e revitalização de salas de exibição, dentre outros.

[2] Aqui nos referimos ao surgimento da Globo Filmes em 1998.

[3] Europa filmes, Elimar/Copacabana, Paris, Lumière, Pandora, Imovision e mais recentemente a Downton filmes e MovieMOBZ, dentre outras empresas de menor porte.

[4] dados retirados do Relatório de Gestão de 2003 da Ancine. Disponível em < www.ancine.gov.br >

[5] O orçamento do filme X-Men 2, lançado em 2003 foi de US$ 110 milhes.  X – Men 2 já arrecadou US$ 155 milhões. Disponível em: www.atarde.com.br/especiais/xmen2/filme-materia.php?id_filme=12003&id_materia=1628 acesso em 22 de nov. 2004.

[6] MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo – indústria política e mercado. (Ásia/ Europa/ EUA/ América Latina) Vol II. São Paulo: Escrituras e Iniciativa Cultural, 2007.

[7] Número de filmes distribuídos entre 1975 a 1985 – vide Anexo – tabela 5.

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