Projeto Rondon: Viagem e Sonho

“No Brasil, pelo menos oitenta por cento das pessoas das grandes cidades já foram filmadas, tiveram um amigo ou parente filmado, ou viram alguém ser filmado. Realmente isso é bom, porque as pessoas têm uma idéia romântica disso, do gênero: “Eu vou filmar no Ceará porque ali as pessoas são puras”. Isso é mentira. Você vai aos confins da Amazônia e vê índios assistindo à novela. Trata-se de usar a câmera como um catalisador de um comportamento”.  – Eduardo Coutinho

Quando o locutor da rádio comunitária de Nova Olinda do Norte me perguntou em seu programa qual era o meu sentimento de estar participando do Projeto Rondon e estar no meio da floresta amazônica pela primeira vez minha resposta foi a mais simples e sincera: A realização de um sonho.

Um sonho que começou lá trás. Bem antes de escrever o projeto. Bem antes de entrar na faculdade. Bem antes de eu nascer, na verdade.

Minha mãe participou da edição anterior do Projeto Rondon que teve seu inicio em 1967. Não sei bem o ano que ela participou, mas foi um momento marcante na vida dela. “O Projeto Rondon é um projeto de integração social coordenado pelo Ministério da Defesa e conta com a colaboração da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação – MEC. O Projeto envolve atividades voluntárias de universitários e busca aproximar esses estudantes da realidade do País, além de contribuir, também, para o desenvolvimento de comunidades carentes. O Projeto empenha-se em desenvolver a capacitação de organizações da sociedade civil na defesa dos direitos de cidadania, como também, a capacitação de educadores do ensino fundamental para a prática de leitura.” [1]

O Projeto de hoje é diferente da versão anterior. Relançado em 2005 depois de anos sem as ações, o Projeto Rondon mudou seu caráter assistencialista buscando a capacitação dos profissionais da comunidade local. Apesar disso, 15 dias é um período muito curto para desenvolver toda a demanda dessa população carente. Vários municípios são contemplados mas dificilmente o projeto retorna a uma cidade. Hoje, o prefeito pode, se for de interesse da cidade, receber uma nova ação no semestre seguinte (O Projeto acontece nos meses de Julho e Fevereiro), mas depois disso não existe uma previsão de retorno. Nova Olinda por exemplo , havia recebido os rondonistas no final da década de 70, e muitas pessoas da comunidade ainda lembravam daquela visita.

O objetivo fundamental do Projeto não é, portanto, a comunidade e sim os universitários. .Constantemente nas palestras em Manaus, antes de partir para a viagem de 8 horas de barco até Nova Olinda, os estudantes são lembrados que vão aprender muito mais que ensinar. A nossa postura então nunca deve ser a de se impor como superior. Escreveu o mestre Paulo Freire em seu livro Educação e Mudança: “Não devo me julgar-me como profissional, habitante de um mundo estranho; proprietários do saber. Não podemos nos colocar na posição do ser superior que ensina um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde daquele que ensina um saber relativo. O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não pode ser objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém.”

Discorrer sobre os problemas do Projeto e suas deficiências levaria um texto à parte. Contar todas as experiências e aprendizados preencheria vários livros. Portanto, vou me limitar a escrever um pouco sobre a experiência cultural relacionado a área do audiovisual.

Ao escrever o projeto inicial, ainda sem conhecimento do município ou da infra-estrutura que poderíamos encontrar, levantamos diversas ações que julgávamos importantes para o eixo da cultura. Após a viagem precursora, em que o professor responsável viaja até o local e conhece a infra-estrutura, modificamos o documento para adequar nossas ações a realidade da cidade.

Nova Olinda do Norte se apresentou um município muito bem estruturado e com uma evolução cultural muito além daquilo que eu, em minha ignorância, esperava encontrar em uma cidade de apenas 30 mil habitantes. A expressão cultural daquele povo me surpreendeu positivamente. Percebi que a diversidade artística do município está estreitamente relacionada com a vontade, criatividade e potencialidade daquele povo, proporcionando a Nova Olinda um leque de grupos e atividades culturais que não só impressionam pela quantidade, mas também pela qualidade.

A sede por conhecimento daquela gente foi percebida por todos os integrantes da equipe, formada por alunos e professores da UFSCar e da UNB (Universidade Federal de Brasília), em suas diversas áreas de atuação. No eixo da cultura, no qual realizei mais trabalhos, fiquei muito satisfeito ao perceber, logo nas primeiras conversas, que a população local tinha um olhar crítico sobre a importância da cultura e dos meios de comunicação.

No projeto original, uma das ações era em relação à capacitação de multiplicadores que desenvolvessem atividades com o objetivo de promover a expressão cultural da comunidade, valorizando sua cultura local. Uma das idéias foi trabalhar a importância de programas informativos/ jornalísticos com os locutores da Rádio Comunitária Nova FM, única rádio do município. Marcamos uma reunião com os locutores (30 no total, todos voluntários) e cerca de 15 apareceram na reunião.

Descobrimos então, com a programação da rádio em mãos, que a grade era extremamente diversificada, seja nos estilos musicais, seja na prestação de serviços à comunidade. Aprendemos que a rádio era ouvida por cerca de 80% da comunidade e que alguns programas que iríamos propor com debates e discussões sobre problemas da realidade local já existiam e tinham espaço durante toda a semana das 11:30h às 12:30h. Alguns desses programas (Conselho Tutelar, Pastoral da Criança, Nova Olinda Saudável e Mulheres Construindo Nova História) eram apresentados pelos próprios funcionários das instituições representadas.

Fomos convidados a participar dos programas para divulgar nosso cronograma e diariamente, pelo menos uma vez por dia, éramos entrevistados em dois programas (J. F. Show de Jones França e Bom Dia Nova Olinda do Prof. Álvaro). O professor Sérgio da UFSCar, se mostrou um ótimo locutor durante as atividades e acabou virando o responsável direto pela divulgação dos eventos e da comunicação Rádio/Equipe Projeto Rondon/Comunidade. As entrevistas com os rondonistas tinham o objetivo não só de divulgar o trabalho realizado nas oficinas, mas também de promover um maior conhecimento e identificação da equipe por parte da população. Através das entrevistas, as pessoas começaram a reconhecer cada integrante, que curso faziam e de quais atividades estavam responsáveis. Isso facilitou a integração e aproximação do Projeto a seus agentes capacitadores.

O apresentador Jones França, que já havia estudado locução de rádio em São Paulo, se mostrou muito receptivo e pré-disposto a aprender e trocar experiências.  Aproveitamos, portanto, também esse espaço para trocar experiências culturais, fazendo intercâmbio de músicas que havia trazido de São Carlos e ganhei diversos ritmos regionais, principalmente o tradicional ritmo do boi tão famoso na cidade.

A aluna Ana Paula da UNB realizou ainda duas oficinas de rádio e TV, em que abordou aspectos técnicos do jornalismo como a realização de pautas, exercícios e dicas básicas de locução, além de desenvolver um exercício prático em que os próprios locutores escolheram e desenrolaram uma matéria para um suposto programa jornalístico na rádio.

A demanda audiovisual do município também superou minhas expectativas. Assim que me apresentei como estudante de cinema diversas pessoas que trabalhavam com os meios de comunicação (principalmente a televisão, mas também para minha surpresa o cinema) vieram até mim para trocar informações e mostrar o trabalho que faziam na região. Com essa nova demanda, resolvi acrescentar uma nova atividade fora do cronograma: Oficina de Captação, Edição e Finalização de Vídeo.

Nessa oficina compareceram quatro pessoas, todas que já trabalhavam com algum programa de edição de imagem ou som. A atividade durou 4 horas e foi muito satisfatória para ambas as partes. Ao final de todas as oficinas, nossa equipe pedia para os participantes assinalarem uma pequena ficha de avaliação, para que tivéssemos o feedback dos ouvintes. Nessa avaliação a oficina recebeu três ótimos e um bom, o que me deixou muito satisfeito por considerar o conteúdo avançado e de não tão fácil entendimento.

Outra ação que estava no projeto original era a realização de um cineclube. A atividade visava apresentar filmes diferentes daqueles encontrados regularmente em cinemas comerciais ou na televisão.

Organizei então um ciclo com quatro exibições, todas com filmes em que a temática original permeava a relação dos personagens (seja de ficção ou documentário) com o meio audiovisual e o impacto deste na vida deles. Meu objetivo inicial era instigar a produção local de material audiovisual, o que caiu como uma luva na cidade com tantas demandas de informação e que sobrava criatividade e vontade das pessoas.

No primeiro dia foi exibido A Pessoa É Para O que Nasce, do diretor Roberto Beliner. A sessão foi realizada na escola Isabel Barroncas, no centro do município e cerca de 50 pessoas, fora a equipe do Projeto Rondon, compareceu a exibição. Crianças, casais adolescentes e adultos assistiram ao documentário de 84 minutos e poucas saíram antes do término.

O filme conta a história de três irmãs cegas que cantam e tocam ganzá para ganhar a vida no centro de Campina Grande, Paraíba. Durante a realização do documentário, as irmãs ganham fama e sucesso na televisão e em festivais de música por conseqüência do filme que assume proporções e impactos gigantescos na vida dessas humildes pessoas. O filme trata portando desse impacto: ruim ou bom, mas com certeza marcante.  Mostra a relação do diretor com seu objeto, e coloca questões morais e éticas muito instigantes. Uma aula de metalinguagem documental.

Durante a exibição, fazia minha própria montagem mental daquele momento intercalando  as imagens do filme com  as feições de risos e atenção dos espectadores. Em certo momento, o professor Augustus da medicina me disse: “Cara, você já parou pra pensar que estamos passando um filme no meio da Amazônia!”. Viagem e sonho com imagem e som. Naquele escuro, quase a céu aberto parei e tentei calcular a importância daquele momento. Impossível. Mesmo agora tento raciocinar sobre e não consigo. O sentimento de estar e viver esse “holly moment” é de inestimável descrição. E quantos momentos como esse não passamos diariamente sem perceber? Estar em uma realidade diferente abre nossos sentimentos e nos deixa permitir. Se deixar permitir a experiência.

No final, organizamos uma roda e conversamos sobre a temática do filme. Minha proposta inicial era debater a influência da mídia na vida das personagens do documentário, mas a discussão tomou direções próprias e foi muito além do esperado por todos. Questões éticas do documentarista e do estilo documentário em si foram abordadas pelos próprios espectadores. Questões morais das personagens e questões sobre a própria linguagem audiovisual também foram lembradas. A população falava e discutia entre si, levantando pontos nunca percebidos por mim mesmo depois de assistir três vezes o filme.

A cena final do filme em que as irmãs aparecem nuas entrando no mar trouxe questionamentos que não teriam sido feitos em uma sala de cinema: “Mais será que elas sabiam que estavam sendo filmadas”? Uma pergunta tão ingênua, mas ao mesmo tempo tão complexa. Sabiam elas? Tenho convicção que sim. Mas sabiam elas do impacto disso devolvi a pergunta. O sonho delas era conhecer o mar, será que foi uma condição que o cineasta fez para levar elas ao mar? E se foi, qual é a responsabilidade delas nessa cena. E dele? Mas não é uma cena poética, bonita? E no final, foi positivo ou negativo a influencia do documentarista? E assim ia. O professor Álvaro de filosofia da UNB também instigava a discussão. Os outros alunos rondonistas também entraram na onda. Um debate delicioso, aconchegante e interminável em que não se chego à conclusão nenhuma, mas todos saíram totalmente completados.

Duas pessoas da comunidade se destacaram na conversa: João Paulo Amorim, que eu descobriria depois era formado em história e teria um papel fundamental nas oficinas e principalmente na abertura da biblioteca do município, e Tracobiu, artista e poeta local muito esclarecido e extremamente criativo, um verdadeiro gênio.

Foram realizadas ainda outras três sessões no Projeto Libertar, localizado mais na periferia da cidade e com espaço mais reduzido. Ainda assim cerca de 20 pessoas participaram (fora a equipe do Projeto Rondon) do segundo dia em que foram exibidos dois curtas metragem do programa “Revelando os Brasis” (Projeto que organiza editais que contemplam cidades de até 20 mil habitantes para desenvolver curtas que são exibidos no Canal Cultura) e o longa Saneamento Básico – O Filme do diretor Jorge Furtado. Na sessão seguinte o número caiu para 10 espectadores (fora os rondonistas) e o filme exibido foi Pro Dia Nascer Feliz.

O último dia do cineclube foi reservado para a exibição do curta metragem que fizemos da cidade e seus habitantes: Janela do Madeira. Ao longo dos dias que ficamos em Nova Olinda do Norte gravamos imagens da comunidade e sua interação com seu meio. As imagens foram captadas por mim e por Leila Lobato Graef, aluna da UNB, durante os intervalos das atividades, em horários livres ou até mesmo durante as visitas a comunidade. O objetivo do curta metragem (15 minutos) era  de valorizar a cultura/etnia local, além de estimular a produção local de vídeos mostrando suas peculiaridades, sua beleza e a complexidade dentro do simples cotidiano da cidade e de seus moradores. A idéia era motivar os realizadores da cidade a encontrar dentro do município suas potencialidades cinematográficas subaproveitadas ou esquecidas.

Aproveitamos a inauguração da biblioteca da cidade (outro projeto desenvolvido pelo Projeto Rondon) para exibir o vídeo para a população local. Cerca de 50 moradores assistiram ao Janela do Madeira e a repercussão foi acima do esperado. O público ficou emocionado, pediu cópias do vídeo e apontavam conhecidos que haviam aparecido no vídeo. Particularmente fiquei emocionado quando uma pessoa, após a exibição, me disse a seguinte frase: “Não sabia que nosso povo era tão bonito”.

João Paulo Amorim, morador da cidade e com experiência em cinema, nos ajudou no processo de gravação, levando a locais peculiares e a um evento cotidiano da cidade (A roda de capoeira) a qual sem sua ajuda não teríamos conhecimento e acesso. Sua força de vontade e receptividade nos cativou. Aprendemos um pouco de sua história e contamos um pouco da nossa a ele. A necessidade de aprender e sua busca por conhecimento às vezes ultrapassava oficinas e atividades o que causava um certo desconforto, mas que foi superado com tolerância e  paciência de minha parte. A amizade de João Paulo me proporcionou um novo tipo de interação ao qual estava desacostumado por viver em uma cidade como São Paulo onde as relações são mais distantes e a desconfiança com o outro só é quebrada depois de um longo tempo de convivência.

No total minha experiência no Projeto Rondon foi muito satisfatória. Foram quase 15 dias marcados por sua intensidade. As “dificuldades” de adaptação ao ambiente, a comida e a utilização de banheiro e quarto coletivo são responsáveis pela menor parcela de aprendizagem, na minha opinião. Para mim, Projeto Rondon é muito mais que dormir mal, comer mal ou enfrentar outros desconfortos que poderíamos ter em qualquer outro lugar. Para mim, foi uma experiência de auto-reflexão sobre meu papel na sociedade, sobre minhas escolhas como individuo e a interação dessas escolhas na vida do outro.

É repensar conceitos pré-estabelecidos ao enfrentar uma realidade totalmente diferente. É entender a outra cultura sem fazer julgamentos, e sim aceita-la mesmo que ela invada, inconscientemente, sua própria cultura. É um exercício de ajudar e ser ajudado e perceber que as pequenas ações podem mudar a motivação de uma pessoa. É sentir impotência de ter feito pouco, mas ter orgulho de ter feito o possível.

É sentir saudade de voltar, mas ter desejo de ficar: abdicando para sempre do conceito de lar.  É retornar e enxergar o cotidiano com outros olhos. Olhos que viram um sonho real e que agora finalmente podem sonhar com um futuro real. Carregar essa recordação pra sempre e pra sempre querer voltar, levando na alma essa esperança e partilhar ela com quem ainda acredita e quiser ouvir para acreditar.

Levo na memória a beleza da floresta amazônica. Levo a amizade de cada um de nosso fantástico grupo. Levo os rostos de satisfação e receptividade daquele povo de Nova Olinda. Levo no coração olhos que nunca mais vou esquecer e que nunca me esqueceram.

Felipe Carrelli é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) (felipecarrelli@hotmail.com)

Fotos: Ana Paula B. Leitão, Caio Csermak e Marcio Farias Barbosa


[1] https://www.defesa.gov.br/projeto_rondon/index.php?page=projeto_rondon

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Este post tem 5 comentários

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    Yasmin Bidim

    Só o texto já emociona! Parabéns a todos do projeto e a todos de Nova Olinda!

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    Silmária Cardoso

    Oi pessoal… bom sou meio suspeita pra falar pq sou de Nova Olinda- To. sou estudante de Zootecnia na UFT e tô amando a presença de vc’s na cidade… não só eu, mais todos daqui!!! Sei que farão muita falta, ontem mesmo estava com eles ajudando na ornamentação pras competições, brincadeiras, gincanas que aconteceram hj… por sinal foi um sucesso. Enfim o PROJETO RONDON foi muito importante pra toda polulação Nova Olindense, apreendemos muito com vc’s…Um grande abraço

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    ana paula

    Gostei muinto desse trabalho eles estão qui na minha cidade (jardim de piranhas) achei bem enteressante ajuda a varias pessoas com isso eu estou fazendo o de audio visual e estou gostando muinto quero envestir nisso. e adoroe o site tbm …

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