Adriana Rodrigues Suarez*
Resumo: O filme Love in the Devil: Study for a Portrait of Francis Bacon, dirigido em 1998 por John Maybury, com a participação dos artistas Derek Jacobi, no papel do artista/pintor irlandês Francis Bacon e Daniel Craig, no personagem George Dyer, companheiro do pintor, será o corpus deste artigo. Essa produção cinematográfica apresenta a história da vida conturbada de Francis Bacon, suas angústias, desejos, representados em sua produção pictórica. O objetivo desse artigo será construir uma correlação entre o plano do filme e da obra do artista Francis Bacon, resultando em uma leitura estética entre o cinema e a pintura. Para levantar tais dados e traçar os correlatos entre a obra pictórica e o plano, o artigo utilizará de pesquisa teórica bibliográfica entre a obra pictórica do artista e o corpus. Esse artigo discorre sobre análise de imagem, intertextualidade e mídias.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho será construir uma correlação entre o Plano do filme Love is the Devil: Study for a Portraid of Francis Bacon (1998) e a obra pictórica do artista irlandês Francis Bacon, resultando em uma leitura estética entre o cinema e a pintura. No filme, o diretor John Maybury explora o mundo interno do personagem em um gênero fílmico que caracteriza o drama psicológico. Experimentando toda a empolgação, a paixão e o desejo que deve ser reprimido no ordenamento humanitário da vida, revelando o personagem, ora protagonista e ora antagonista, questionador do poder, da culpa e do desejo sexual.
Antes da apresentação do recorte selecionado para análise vale a pena contextualizar brevemente a vida e a obra desse artista irlandês para tornar possível o entendimento do contexto levantado por essa produção cinematográfica.
Francis Bacon: um artista experimental
Bacon, um notável artista autodidata e experimental, viveu em sua infância muita amargura, medos e indignações. Era filho de um pai violento que nunca aceitou a homossexualidade do filho. Cresceu em circunstâncias relativamente indisciplinadas e solitárias, foi morar em Londres, onde trabalhou como decorador de interiores para sobreviver e dedicou-se completamente aos prazeres da vida. (FICACCI, L., 2007, p. 21)
Bacon foi um dos artistas do século XX que exprimiu, através de sua pintura, a tragédia da existência de maneira mais realística representando os dramas da condição humana, num sentido oculto, subjetivo, violento e trágico. No início da sua produção artística, as estéticas cubista e expressionista foram seus alicerces, representações de figuras solitárias, violência masculina ligada à tensão homoafetiva, imagens sofredoras, anômalas, deformadas, vorazes, tendo sempre como ponto de partida sua própria vida. Durante muito tempo o seu objetivo foi o de capturar a expressão instintiva e animal da dor. Uma das características da Arte Moderna, a qual pertence à obra de Francis Bacon, tem como objetivo o desapego à estética clássica, deformando assim a figura humana com a intenção de provocar a reação e de estimular pronunciamentos, entre as quais não se pode excluir o destino interior do ser humano.
Após o trauma da época infligido à humanidade pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, Francis Bacon expressou a singular tragédia do indivíduo numa sociedade que era externamente vitoriosa e que marchava inexoravelmente em direção ao progresso, um progresso que aparentemente não podia conduzir a qualquer outra conclusão que não fosse à do bem-estar e do esclarecimento de todos os aspectos obscuros da existência. (FICACCI, L., 2007, p. 37)
Nas entrevistas que concedeu a David Sylvester, Bacon determina ao artista a missão de remeter o espectador à vida com mais violência (SYLVESTER, 2007, p.17) e diz que suas imagens são uma tentativa de fazer a coisa figurativa atingir o sistema nervoso de uma maneira mais violenta, mais penetrante. (SYLVESTER, 2007, p.12). Bacon não considerava suas obras “deformadas” uma provocação, mas uma forma de imprimir mais força à imagem, levando às últimas consequências seu desejo de transmissão. A intenção da sua pintura é a distorção da imagem, desconstruindo a visão “normal” do objeto, além da aparência.
O que chamamos de aparência só se mantém momentaneamente como aparência. Num segundo, com um piscar dos olhos ou uma ligeira inclinação da cabeça, a aparência já se terá transformado. O que quero dizer é que a aparência é como uma coisa continuamente flutuante. (SYLVESTER, 2007, p.118)
Em suas palavras em entrevista a David Sylvester, Bacon fala sobre a “evanescência” da imagem, a qual tenta captar a dimensão do impossível, buscando enlace com o real, na representação mais irracional possível. Para ele, a pintura deve banir a figura do figurativo. Bacon responde a pergunta sobre como acontece essa transformação da imagem no decorrer do seu trabalho, afirmando que acontece de maneira inesperada, querendo muitas vezes criar objetos específicos, como retratos, por exemplo, mas quando analisado, simplesmente não consegue definir como aquela imagem está formada.
Porque eu não sei como a forma pôde ser construída. Por exemplo, outro dia pintei a cabeça de alguém e aquilo que formava as órbitas dos olhos, o nariz, da boca, era, quando fui analisar, simples formas que nada tinham a ver com olhos nariz ou boca; mas a tinta, indo de um contorno para outro, fez surgir uma semelhança com a pessoa que eu estava querendo pintar. Eu parei; por um momento pensei que tinha conseguido uma coisa muito mais próxima daquilo que queria. Então, no dia seguinte, tentei chegar ainda mais perto do que procurava, tentei ser mais penetrante, mais profundo, e perdi completamente a imagem. Porque esta imagem é como equilibrar-se numa corda tensionada entre aquilo que se costuma chamar de pintura figurativa e aquilo que é abstração. Está na fronteira da abstração, mas na verdade nada tem a ver com ela. É uma tentativa para fazer com que a coisa figurativa atinja o sistema nervoso de uma maneira mais violenta, mais penetrante. (SYLVESTER, 2007, p.12)
Love is the Devil: Study for a Portrait of Francis Bacon e a obra pictórica do artista irlandês Francis Bacon
A caracterização dos personagens de Francis Bacon e de George Dyer adquire contornos de especial complexidade, em que o mais importante do ponto de vista narrativo são as consequências dos conflitos por eles vividos. Nesse sentido, no desenrolar do filme, os personagens constroem uma tensão dramática em que os acontecimentos provocados por eles se dão em situações de adversidade. As diversas situações vividas por Bacon e por Dyer retratam incertezas, medos, vícios, amor, ódio e egoísmo, enfim, uma cadeia de complexidade tanto social, quanto individual, bem como entre o casal. Situações nítidas de conflitos e a paixão conduzida ao extremo são as marcas distintivas desse gênero dramático.
Isso, segundo Nogueira (2010), uma qualidade que justifica o gênero dramático é a seriedade dos fatos. Seu objeto principal é o ser humano comum, normal, em situações cotidianas mais ou menos complexas, mas sempre com grandes implicações afetivas e/ou causadoras de inescapável polêmica social. Ao contrário da comédia, que sublinha as fragilidades ou vícios do ser humano e da tragédia, que sublinha a sua elevação e as suas virtudes, o drama aborda a vivência mais prosaica do sujeito vulgar, explorando suas consequências emocionais mais inusitadas e profundas. (NOGUEIRA, L. 2010)
A decupagem a ser analisada apresenta o final triunfante e dramático da narrativa, onde o artista Bacon vivido por Derek Jacobi, comemora sua Exposição na Grand Palais em Paris, como o primeiro pintor inglês a expor na renomada galeria, depois do expoente pintor inglês romântico Willian Turner, colocando-o, então, entre os grandes mestres da Arte Contemporânea, enquanto que, num quarto de hotel, seu amante Dyer, vivido por Daniel Craig, comete suicídio.
A caminho do suicídio, a angústia vivida pelo amante foi representada de maneira significante pelo diretor John Maybury, que usa a relação entre a cena cinematográfica e a obra do artista Francis Bacon, uma análise da autora dessa pesquisa.
Nesse momento do filme a sequência foi construída com a intenção de passar a mensagem ao espectador sobre as sensações do personagem Dyer. São feitas imagens intercaladas, com cortes rápidos entre os planos.
No Plano A, uma imagem desconfigurada de um “ser estranho” aparece centralizada no plano. A câmera não apresenta a imagem de maneira clara, provocando um visão distorcida, que aparece como se a sua pele estivesse em feridas. Sobre um mastro, esse ser tenta um determinado equilíbrio. O fundo do Plano A é muito escuro, a luz está sobre este “ser estranho”, o qual se movimenta como se sofresse de dores e quisesse fugir daquele espaço fechado, libertar-se daquele mundo, daqueles problemas. Esse Plano A representa, no filme, o pensamento e as visões de Dyer em seu estado crítico pelo uso de drogas e pela sua embriaguez.
A relação entre os planos analisados é do sentimento, naquele momento, do personagem Dyer. A angústia, o medo, o desespero, representados por cortes rápidos e a imagem do “ser estranho”.
Plano A
Partindo da frase de Francis Bacon: “Todas as cores coincidem com a escuridão”, relacionar sua pintura Três estudos para figuras na base de uma Crucificação ao Plano A, torna-se um caminho viável na pesquisa.
Essa pintura do tríptico Três estudos para figuras na base de uma Crucificação de Francis Bacon foi inspirada nas obras do artista cubista espanhol Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) do período de 1920.
Quando pintou esse tríptico, Francis Bacon manifestou uma terrível e expressiva violência. Não representa nenhum ato violento, mas uma indefinida e desumana violência que ocorre num espaço invisível e num tempo fora dos limites do quadro. Imprimiu em sua obra seu horror nas formas e nas cores da área que o rodeia.
Este arranjo é de uma originalidade tão perturbante que Bacon usou desse tema por várias vezes em sua produção. O tom laranja- avermelhado espalhado sobre o espaço das três telas atinge tão violentamente o observador como se o objetivo fosse retirar todos os poderes de percepção e eliminar a possibilidade da leitura das formas de acordo com as convenções comuns de lógica racional. Um único sentimento une as figuras, estando cada uma isolada na sua tela; é um sofrimento furioso e uma expressão atemorizada de vítimas e testemunhas de algo cujo efeito é cruel sentido de tragédia. Os elementos humanos e animalescos que compõe as figuras, todos tornados ambíguos pela sua respectiva deformação, são impenetráveis e enigmáticos que impedem a compreensão de qualquer significado explícito. (FICACCI., L, 2007. p.16)
Para o artista Francis Bacon a pintura não era um meio para se imitar a realidade, mas um meio para se representar as necessidades mais íntimas e instintivas do ser humano, dominadas exclusivamente pela profunda força bruta da expressão.
Perante aqueles que caracterizavam a pintura de Francis Bacon como algo horrível o mesmo dizia que aquelas imagens “deformadas” era a única coisa que poderia representar em suas obras para competir com o horror do dia a dia. Não retratou o horror propriamente dito, mas o mundo, a violência, que sempre existiu. Representou nada mais que a essência do ser humano. (DELEUZE, 1981)
Sobre o parâmetro construído entre a obra Três estudos para figuras na base de uma Crucificação e o Plano A, fica muito claro a outra citação de Bacon: “Eu queria pintar mais o grito que o próprio horror” (FICACCI, L., 2007). A comparação entre as imagens da obra e do plano são bastante evidentes: o grito, o desespero, a cor, a angústia de um “corpo” que representa um ato de fuga, de violência, sem uma lógica racional.
Relevando a grande fascinação de Francis Bacon pela representação de matadouros e carnes e a relação desses elementos à questão da crucificação do ser humano ao mundo se tornam evidentes em suas obras pictóricas. Para o cristão a crucificação tem um sentido todo diferenciado em relação ao ateu. Para o ateu a crucificação não passa de um ato de comportamento humano, uma forma de comportar-se em relação ao próximo. (SYLVESTER, D. , 2007)
Em comparação às sensações que esta imagem de um “ser estranho” apresentada no Plano A, ainda podemos remeter a uma relação à pintura do grande mestre do romantismo Francisco Goya (1746-1828), Saturno devorando seus filhos. Em uma série com imagens perturbadoras, conhecidas como as Pinturas Negras, feitas nas paredes de sua vila, Quinta del Surdo (casa do surdo), quatorze grandes murais em negro, marrom e cinza de 1820-22, apresentavam monstros assustadores. Entre essas imagens assustadoras está a obra Saturno devorando seus filhos, um dos quadros mais terríveis da história da arte, que retrata um gigante voraz com olhos abertos, lunáticos, enfiando o corpo dilacerado, decapitado do seu filho no papo. Essa obra reflete o estado de ânimo do artista e os fantasmas que assombravam sua velhice: surdez, doenças, desilusão e as consequências da guerra. (STRICKLAND, C., 1999)
As pinturas do artista espanhol Goya serviram de inspiração para a produção artística de Bacon. Goya foi rebelde em toda sua vida, algo comum ao artista Bacon. Libertário, Goya opunha-se firmemente a todo tipo de tirania representando em suas obras a subjetividade, característica dos artistas do Romantismo. Analisando assim uma forte relação entre diversas cenas cinematográficas do filme estudado às obras de Bacon e a cena pictórica de Goya. (STRICKLAND, C., 1999)
Sobre um fundo negro, o Plano A apresenta um corpo disforme, comparação à figura de Saturno, os quais ocupam a maior parte da superfície do quadro e do plano e ambos parecem projetar-se. Associando ao Plano A à imagem daquele “ser estranho” se completam em uma leitura muito semelhante. As sanguinárias cenas, tanto da pintura quanto do Plano A, são de uma violência sem limites, pelos elementos que os compõem. Os efeitos produzidos são semelhantes, com uma dramaticidade característica do descontrole das emoções trágicas do ser humano.
O pintor Goya obtém o efeito impactante com iluminação focada na cena e com limitado espectro de cores que inclui o vermelho, o rosa, o branco, o marrom, o preto e o cinza. No Plano A, a iluminação tem características muito próximas às da obra Saturno devorando seus filhos.
Entre várias interpretações feitas em relação a essa obra de Goya a que mais convence e que se relaciona com as obras de Francis Bacon e ao Plano A estudado seria a interpretação de que o mundo devora tudo, que um homem devora o outro, no sentido antropofágico. A técnica de Goya era tão radical quanto sua visão de mundo, algo muito semelhante à técnica e à visão de Francis Bacon, o qual produziu em suas pinturas técnica radical, visão do mundo com imagens bastante agressivas, distorcidas, representando o resultado de uma sociedade que considerava hipócrita.
CONCLUSÃO
As imagens representadas no filme Love is the Devil: Study for a Portrait of Francis Bacon sobre o processo das produções artísticas de Francis Bacon buscam reencontrar o fato principal da existência do ser humano. O artista representou em sua pintura uma combinação, uma sobreposição, uma mistura do pensar objetivo ao subjetivo, enquanto que na produção cinematográfica o diretor John Maybury procurou representar essa recriação da realidade em imagens transfiguradas por meios técnicos de sobreposições de imagens com cortes rápidos entre as cenas.
O filme biográfico de Francis Bacon permeia ainda características do cinema expressionista em que a câmera não registra o real, mas cria visões inspiradas na elaboração pictórica de Bacon, com base em projeções das suas angústias humanas, do seu estado interior através da subjetividade da interpretação, acarretando as distorções de cenários, afastando-se da perspectiva visual clássica, resultando na estranheza do olhar sobre o mundo exterior. (NAPOLITANO, M., 2006, p.76).
*Adriana Rodrigues Suarez é mestranda em Comunicação e Linguagens (Linha de Pesquisa: Cinema), TUIUTI (Ctba/ Pr). Professora do Curso de Licenciatura em Artes Visuais, das disciplinas de Reflexão Artística, Produções e Práticas Artísticase Desenho Artístico, UEPG (PG/ Pr). Coordenadora e Professora da área de Arte e Cultura do Colégio Sagrada Família (Ponta Grossa/Pr). Professora de Representação Gráfica I e II, no curso de Arquitetura e Urbanismo, CESCAGE (PG/Pr).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACON, F. Três estudos para figuras na base de um crucificação (1944). Altura: 400 pixels. Largura:180 pixels. Formato: JPG. Disponível em: <cinemaesombras.blogspot.com.br>. 2011. Acesso em 10 de maio de 2012.
DELEUZE, J. Francis Bacon: Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
FICACCI, L. Bacon. Taschen, 2007.
GOYA, F. Saturno devorando seus filhos (1820-1823). Altura: 1227 pixels. Largura: 668 pixels. Formato: JPG. Disponível em <issocompensa.com/2011/06/francisco-goya-saturno-devorando-um_16.html>.2011. Acesso em 10 de maio de 2012.
MENAGE, C.; MAYBURY, J. Love is the Devil: Study for a Portraid of Francis Bacon. [Filme- DVD]. Produção de Chiara Menage, roteiro e direção de John Maybury. França/ Reino Unido/ Japão, British Broadcasting Corporation (BBC), 1998. DVD, 1 filme (90 min.) color. son.
NAPOLITANO, M. Como usar o Cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2006.
NOGUEIRA, L. Gêneros Cinematográficos. Covilhã:Livros Labcon Books, 2010.
PLANO A (fotograma do filme). Altura 976 pixels, Largura: 632 pixels. Formato: imagem PNG, tamanho: 771 Kb.
SILVESTER, D. Entrevistas com Francis Bacon. Rio de Janeiro: Cosac Naif, 1998.
STRICKAND, C. Arte Comentada: da pré-história ao pós- moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.