Guerrilheiro Heróico
Por Lígia Borba*
Chevolution, documentário de Trisha Ziff e Luis Lopez, teve quatro apresentações durante a 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (além de uma sessão no Festival da Juventude), e conseguiu inovar ao retratar Che nas telas de cinema. O documentário fala da vida e das ideologias de Che Guevara de acordo com uma das fotos mais vistas nas últimas décadas, além da questão de como um signo visual pode evoluir e ganhar diversos significados com o passar do tempo.
(Foto por Alberto Korda)
Alberto Korda (autor da famosa foto vista acima) começou sua carreira como fotógrafo de produtos comerciais e modelos femininos, tornando-se o primeiro fotógrafo de moda em Cuba. Porém em 1958, quando andava por um vilarejo muito pobre, o fotógrafo encontrou uma menina chorando assustada pela câmera, segurando um pedaço de madeira envolto com papel jornal, o qual a menina chamava de “Minha Boneca”. Naquele momento Korda se ateve à real condição social do seu país e decidiu se tornar um revolucionário aliado à causa de Fidel Castro, então começou trabalhando como militante para o Jornal Revolución, sem ganhar nenhum salário por isso, acompanhando Fidel em suas viagens e registrando todos aqueles momentos, o que julgava de grande importância na propaganda da Revolução.
Foi em um desses momentos, 5 de março de 1960, que Alberto Korda conseguiu aquela foto que entraria para história: num ato de protesto às 136 vítimas de sabotagem na explosão do cargueiro francês Le Coubre, no porto de Havana. Fidel Castro discursava ao lado de Che, Sartre e Simone de Beauvoir, enquanto Korda mantinha sua câmera posicionada na direção do palanque ali montado, e foi então que Che avançou para ver a multidão e, ao acaso, entrou nas lentes do fotógrafo. Houve tempo apenas para o fotógrafo focalizá-lo e dar dois cliques: um na horizontal, outro na vertical, então Che voltou ao local que estava. (Afirmação feita pela irmã de Korda em depoimento ao documentário).
Porém, a foto foi recusada pelo jornal Cubaco naquela época, e Korda resolveu guardá-la consigo. A imagem então teria saído dos estúdios do fotógrafo indo parar em uma reportagem da revista “Paris Match” por volta de 1967, para logo depois da morte de Che (no mesmo ano), tornar-se conhecida por toda a Europa através de centenas de cartazes, vistos principalmente nas revoltas de maio de 1968.
Segundo depoimentos do filme, a foto teria chegado às mão do editor italiano de esquerda, Giangiacomo Feltrinelli, como um presente oferecido por Alberto Korda e apoderando-se dos direitos autorais da foto (até então não existentes em Cuba). Feltrinelli teria transformado a foto em milhares de pôsteres que seriam espalhados pelo mundo.
O documentário procura analisar, a partir desse ponto, como essa imagem adquiriu diversos significados e pôde se transformar ao longo do tempo. Depois de Feltrinelli, viria o artista plástico Jim Fitzpatrick, que também participa do documentário. Che tem como plano de fundo a foto de Che Guevara, estilizada pelo próprio Jim, e reproduzida mais uma vez em forma de cartaz, aproximando-se da iconografia utilizada na ‘Pop Art’; levando aquela foto documental de origem política agora para o universo das artes plásticas.
Desse segmento artístico, a imagem de Che continua a viajar para todos os tipos de artes e movimentos: o músico Tom Morello (da banda Rage Against The Machine) fala durante o documentário no uso que o grupo fez da imagem colocando-a na capa do cd Bombtrack de 1992, a fim de relacionar os ideais do guerrilheiro aos da banda, mas segundo a época que vivemos. O processo que a irmã de Korda moveu contra a banda é inserido no depoimento do músico, já que agora a família de Alberto Korda conseguiu por meio da justiça os direitos autorais da imagem, o que é, segundo eles, para que se mantenha a imagem de Che Guevara segundo a ideologia em que o guerrilheiro acreditava. E a irmã de Korda diz sobre Che: “Seus ideais não morreram junto com seu corpo, inclusive continuam vivendo, cada dia mais”.
Essa questão é levantada graças ao uso excessivo dessa imagem, vinculada agora a diversos tipos de questões e movimentos, nem sempre aliados à causa de Che, ou até mesmo casos onde nem se sabe ao certo quem foi Che Guevara (“Ele não é o sujeito que inventou os ‘mojitos’?” diz um americano que usa uma camiseta com a imagem de Che). O documentário mostra dezenas de exemplos em que a foto de Che é usada: maços de cigarros, garrafas de vodka, camisetas, bolsas, bottons, tatuagens, biquínis, xícaras, bonés e ainda aparece nas cédulas de dinheiro cubanas, cortando cana de açúcar nos campos – produtos da sociedade capitalista de consumo, causa contra a qual o guerrilheiro lutava contra. São dados alguns depoimentos do que Che Guevara pensaria sobre isso: Carlos “Caliça” Ferrer, amigo argentino de Che Guevara, diz: “Ernesto era um pouco sarcástico”, e completa “Ele certamente riria muito disso tudo”.
O ator e diretor Antonio Banderas se põe contra essa posição e diz que esse uso é ir contra tudo que Che lutava.
É certo que nem todos que a estampam em seus objetos ou até no próprio corpo não sabem o que aquela imagem representa e a co-diretora do filme salienta que fica espantada “com a ignorância do público jovem americano, que pode usar a imagem de Che em suas camisetas e não saber nada sobre a ideologia, sobre as idéias desse homem”. “Tudo vem das idéias, da esperança, de nosso desejo de que a humanidade tenha heróis”, disse Ziff. “Che virou folclore. Ele é Robin Hood, de certa maneira. É uma coisa tão fundamental assim.”
Che tornou-se a luta contra o conformismo e a vontade de mudança em relação a algum tipo de estrutura política que se julga errada, e isso fica evidente através da indexação da figura de Che em diversos movimentos: desde as revoltas de 1968, passando pelo movimento hippie e pelo movimento gay.
A imagem de Korda tornou-se o ícone dessa luta sendo carregada por todos os cantos do mundo, e é interessante pensar na questão de como um signo visual é capaz de evoluir durante o tempo, ganhando novos significados ou até mesmo tornando-se completamente diferente, dependendo do contexto e da mente de quem as vê e reproduz.
*Lígia Borba é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).