CRÍTICA | I Saw the TV Glow (2024), Jane Schoenbrun

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Por Maria Fernanda de Paula

Redação RUA

O brilho de uma TV, a vida melancólica num subúrbio dos anos 90, a obsessão com mídias obscuras que apenas quem já foi um adolescente esquisitão é capaz de entender. Estes e outros aspectos de I Saw the TV Glow (2024) se fundem junto a uma alegoria queer na obra alucinante e extremamente pessoal de Jane Schoenbrun.

Se em We’re All Going to the World’s Fair (2021), estreia diretorial de Schoenbrun, é explorado um lado do terror psicológico e experimental da relação perigosa de uma garota com o mundo online, seu novo filme volta algumas décadas no passado para acompanhar a história de Owen (Justice Smith), um adolescente solitário e reprimido, e sua conexão com a também solitária Maddy (Brigette Lundy-Paine). Ambos compartilham o interesse por The Pink Opaque (traduzindo, Rosa Opaco), um programa de televisão que, de forma curiosa, parece ser apreciado apenas pelos protagonistas. Enquanto a obsessão pelo seriado aumenta, o limite entre a vida real e o universo ficcional fica cada vez mais tênue, levando Owen e Maddy para mais a fundo no brilho roxo e neon de The Pink Opaque, longe do desconforto de um mundo que não acolhe nenhum dos dois jovens.

É interessante como logo na sequência inicial do filme se faz a oposição dos dois mundos explorados em seu decorrer: a imagem de uma vizinhança cinzenta, com poucos traços de crianças felizes no asfalto riscado de giz colorido, seguida de um Owen mais novo (Ian Foreman) vidrado na tela, vendo um comercial do seriado para jovens adultos, as cores vibrantes refletidas em seu rosto enquanto ele assiste as cenas fantasiosas do próximo capítulo anunciado na TV. Desde o princípio, o sentimento de inadequação dos dois personagens é evidente, o que acredito que vai causar em uma parcela específica do público um senso forte de identificação. A narrativa exprime muito bem o horror e desespero de precisar esconder uma parte de si mesmo, de sentir-se preso em sua família, seu círculo social, seus próprios sentimentos, seu corpo biológico. Owen percebe em si mesmo algo que o assusta e que prefere ignorar, mas que The Pink Opaque desperta em si. Nunca é dito de forma explícita durante o longa, mas essa relação confusa de Owen consigo mesmo alude a uma experiência bastante comum na juventude queer. Emoções sufocadas até seu núcleo, além do sentimento de estar narrando sua própria vida ao invés de vivê-la e temer olhar para si mesmo são aspectos comuns ao personagem e à grande parte da população LGBTQ em seu momento de autodescoberta. Essa insegurança de Owen contrapõe a personalidade mais rebelde de Maddy, sendo ela muito mais segura de sua própria identidade e suas ações. Mesmo perdida, ela encontra no seriado uma força encorajadora que a motiva a escapar de sua realidade opressora, fugindo da cidade sozinha.

O terror do filme se faz presente através do sufoco palpável de Owen, seu desejo de continuar alienado mesmo quando Maddy tenta o tirar de sua realidade, a confusão do que é o mundo real e o que são lembranças distorcidas pelo filtro VHS. Uma cena que marca e exemplifica isso é quando o personagem, perturbado pela fita perdida de um episódio de The Pink Opaque, enfia a cabeça na televisão, que solta faíscas, e grita desesperadamente: “essa não é a minha casa, você não é o meu pai!”. Sons e grunhidos indistintos acompanham as cenas dos monstros terríveis de The Pink Opaque, além da estática constante ou absoluto silêncio cortado por berros amedrontados nos momentos mais disfóricos do personagem. Os ambientes obscurecidos e iluminados por luzes fluorescentes estão presentes por todo o percurso do filme, realçados pela bela fotografia, e caracterizam o longa como essencialmente visual. Porém não deixo de destacar a trilha sonora original de Alex G, ambientando perfeitamente muitas das cenas mais importantes do longa (como já havia feito com maestria em We’re All Going to the World’s Fair), além da trilha musical também original. As atuações do elenco principal são sutis, mas bastante intensas quando necessário, em especial a de Brigette Lundy-Paine durante seu monólogo no planetário inflável e em outras das tentativas agonizantes, porém falhas, de resgatar Owen. Mesmo que os diálogos por vezes pareçam artificiais, ainda assim fazem jus ao estado mental de extrema dissociação de ambos os personagens e a disforia alucinante de Owen (ou seria Isabel?).

Chegando ao fim do filme, a última luz de esperança do longa se dá quando Owen, décadas depois do início da narrativa, se permite olhar para seu interior (literalmente), abrindo seu peito e enxergando dentro de si as imagens nostálgicas que ele mesmo consumia muitos anos antes. Apesar do tom pessimista e encerramento anticlimático, o que me marca apesar de tudo é a frase escrita no asfalto da rua de Owen com os mesmo gizes coloridos do início, “there is still time”. Ainda há tempo, e sempre vai haver. 

A mensagem de Jane Schoenbrun através deste longa tem o poder de atingir múltiplos níveis de identificação no público, e é possível que surja uma nova geração de pessoas queer buscando sua própria verdade por causa dela. I Saw the TV Glow prova a grande capacidade do cinema de expandir em sua forma, retratando vivências muito comuns mas extremamente íntimas, como a liminaridade do ser humano, seu instinto de se desconectar da realidade quando rejeitado e buscar conforto nos lugares mais improváveis, como quando a TV se torna uma nova realidade, e a realidade se torna pior que a TV.

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