Por: Vitor Hugo Pereira
Redação RUA
Nos últimos cinco anos, a produção televisiva brasileira tem presenciado um grande movimento de levar obras da telenovela para o streaming, como visto em Verdades Secretas II (2021), de Walcyr Carrasco, Todas as Flores (2022), de João Emanuel Carneiro, e o projeto ainda em produção de Beleza Fatal, criado por Raphael Montes. Em Pedaço de mim (2024), de criação de Ângela Chaves e direção de Maurício Farias, vemos a proposta de uma série que se utiliza de temas comuns do melodrama, mas que ainda preza uma abordagem que lembre mais o produto de streaming do que de TV. No entanto, na união da narrativa folhetinesca ao formato seriado do streaming, acaba entregando uma obra instável, que consegue trabalhar bem determinados elementos, mas deixa a abordagem visual um pouco apática.
Em dezessete capítulos, acompanhamos cerca de dezoito anos da história de Liana (Juliana Paes), uma mulher grávida de gêmeos que se vê presente num caso de superfecundação heteroparental; isto é, grávida de dois homens ao mesmo tempo, em que um dos gêmeos pertence ao seu marido, Tomás (Vladimir Brichta) e o outro é filho de Oscar (Felipe Abib), um homem que a violentara sexualmente. Receosa do julgamento social que enfrentaria e das dúvidas que recairiam sobre ela devido ao preconceito – e misoginia – da sociedade, Liana decide guardar o segredo da paternidade dos gêmeos, mas verdades vêm à tona quando Oscar retorna para a cidade anos depois da gravidez e se encontra com os meninos.
A estrutura em que a obra é composta (uma narrativa em dezessete capítulos que não necessariamente compõem uma temporada, pois não prevê uma continuação para próximas temporadas) lembra as minisséries brasileiras – como eram chamadas, embora hoje se configurariam como macrosséries pelo número de capítulos – de antes, como remake de O Rebu (2014), de George Moura e Sérgio Goldenberg e Hilda Furacão (1998), de Glória Perez.
A abordagem mais melodramática retoma elementos da telenovela, mas ainda assim, cria lacunas no desenvolvimento, inclusive na estrutura de capítulos. Enquanto a telenovela promove desenvolvimento contínuo dos capítulos, a série geralmente propõe uma estrutura mais fechada por episódios. A estrutura serializada geralmente propõe uma sequência um pouco mais “fechada” e concentrada em um ponto da trama, pois é composta por episódios que se fecham em temporadas. Já em telenovelas, os capítulos são mais “diluídos”, abertos, pois não necessariamente fecham “blocos” como temporadas, mas respondem a uma estrutura geralmente de 170 ou 200 capítulos, o que permite que a história progrida abordando um tema e, posteriormente, abordando outro, ou focando em tramas diferentes com focos que variam.
As séries possuem um foco mais centrado, assim como Pedaço de Mim, mas justamente essa obra, por também responder a uma estrutura de novela, se abre para mais tramas e temas diferentes, mas acaba não os desenvolvendo por inteiro, o que faz parecer mais uma sequência de capítulos iniciais de uma novela do que uma série/minissérie completa e acabada. É na tentativa de abarcar tanta variedade de núcleos que a trama se repete nos capítulos finais.
Na abordagem audiovisual, algumas escolhas feitas pela direção tornam a obra apática e dissociada do estilo do melodrama, o que acaba por esfriar o drama proposto pelo texto da série. Enquanto há o melodrama no tratamento dos temas pelo enredo, a abordagem cinematográfica não responde tanto a esse estilo, preferindo enquadramentos mais afastados, a câmera na mão às vezes até assumindo uma espécie de acompanhamento voyeurístico do espectador (observamos o desenrolar de uma história mais afastados, como numa investigação, dialogando com o gênero suspense). Mas se a câmera prefere uma abordagem mais sóbria, tal decisão contrasta com o que é proposto pelas atuações, pelos diálogos e pelas tramas, que tendem mais ao hiperbólico, ao drama carregado. Em cenas decisivas como reviravoltas ou resoluções de determinados mistérios, toda a emoção do texto é retida na imagem sóbria, deixando confuso se o drama é que se sobressai por ser o essencial ou se ele se destaca por parecer deslocado.
Entretanto, o trabalho com o suspense na estruturação dos capítulos é o que mais se destaca e motiva o espectador a continuar acompanhando a série: os saltos temporais que criam tensão ao abordar a questão do trauma, que advém de um fato do passado e ecoa no presente de Liana; e também a abertura da cada capítulo, que geralmente não continua de imediato o gancho do capítulo anterior. Toda a estrutura fragmentária é feita de modo que o espectador seja apresentado a uma teia de fatos dos quais ora presencia, ora apenas especula, e precisa juntar as peças, unir os pontos conforme os episódios vão sendo construídos e o mistério sobre questões e traumas passados que vão sendo retomados. O tratamento de temas como abuso e violência sexual é feito de maneira precisa durante os capítulos, trazendo as problemáticas em que Liana se encontrava entre se reconhecer como vítima de um crime e encarar os obstáculos sociais que isso implica de uma forma compreensiva e pertinente.
Em suma, Pedaço de mim propõe mais um dos possíveis caminhos de se trabalhar o melodrama nos dias atuais, um gênero tão famoso na TV e no cinema nacional.