Por Vitoria Rocha
Nestas últimas notas, a fim de concluirmos nossa breve cobertura do Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade, apresentamos o fechamento de uma jornada entre os caminhos de um cinema de retornos e permanência. Iniciado sob uma perspectiva de volta aos palcos presenciais, o evento nos permitiu visionar obras e construções narrativas em seus mais diferentes formatos de exibição. Partindo deste ponto, decidimos apresentar um caminho que pudesse contar uma história sobre o cinema, relembrando alguns de seus personagens e apresentando novas verdades, novos questionamentos e até confissões. Esta trilha que percorremos junto ao É Tudo Verdade, devolve para nós, em um suspiro aliviado, a existência viva e em atividade de nossa prática de registro, seja em nossas películas e arquivos digitais ou até mesmo em nossas palavras. Tudo que foi registrado, continua a confessar segredos a cada revisionamento, pois tudo que imprimimos em nossas imagens conta uma narrativa imortalizada. O que nos vale, em todos os tempos, é a ocupação de uma memória dentro dos imaginários que criamos, capazes de resistir ao tempo; onde foi tudo real, onde é tudo verdade.
As “digitais” do passado do cinema impressas em todas as imagens por ele criadas, tecem revelações que não são afetadas pelo tempo e espaço. Não importa o quão “velho” um filme preservado seja, tudo o que ele comunica a alguém volta a existir no momento em que se dá esta comunicação. O momento em que foi feito, abarca seu contexto, mas não impede sua identificação com quem assiste. É por isso que ao falarmos de recordações, falamos de imagens. Imagens que foram geradas pela captação instantânea de um determinado presente. Tudo o que foi sonhado por nossos primeiros realizadores, pelo nosso país e por um imaginário social e histórico, encontrou morada em nossas películas, como se fossem elas quem tivesse sonhado, e não o ser humano. Existe, à vista disso, a mais mútua ligação entre as verdades humanas e o registro cinematográfico, que perpetua a existência de pequenos fragmentos de presente, e não de passado. As realidades e formas de apresentá-las, refletem uma discussão formal de como podemos falar sobre o que somos, porque voltamos ao que fomos.
Andrés Di Tella, professor, diretor e escritor, foi um dos ilustres convidados da 20ª Conferência Internacional de Documentários, que tivemos a oportunidade de acompanhar. O realizador que já dirigiu diversas obras (Montoneros, una historia (1995), Fotografías (2007), Hachazos (2011), 327 Cuadernos, (2015), etc.) inspirou nossa reflexão sobre passado e presente baseada na prática do registro, através de sua participação no Festival. Em uma exibição que uniu a transmissão de sua obra Diarios (2022) e a leitura de suas reflexões em um diário físico, Andrés realizou uma experiência performática sobre a solidez do presente que existe na vida captada pelas lentes. O projeto, já descrito pelo autor como “mutante”, se utiliza da performance por ele realizada para gerar experiências diferentes a cada visionamento e deslocalizar a narrativa de Diarios de um tempo e espaço definidos. O uso de materiais de arquivo, vídeos e filmes familiares e outras formas de registro, são usados como as “linhas” que tecem um subtexto íntimo e carregado de sentimentos para desvendar até onde existem as delimitações entre as motivações de um filme e as de nossas próprias vidas. Esta vivência poética proposta pelo diretor, nos leva ao mais profundo questionamento sobre a existência do passado e a perenidade do presente possibilitadas pela captação de nossas câmeras.
Afirmando, em uma de suas leituras que “o passado não existe”, Di Tella aponta que as lembranças despertadas por ele por meio de seu diário e filmagens, o transportam para um momento em que deixa de ser passado justamente em virtude de sua rememoração. Os diários que servem como registros de pequenos “agoras”, fazem com que o passado deixe de existir em um passado, porque só existe no presente. No presente que convocamos a todo instante. É esta a forma que Andrés encontra para demonstrar habilmente a forma com que o cinema é capaz de dilatar momentos e apresentar mundos que já não existem mais. A efemeridade do tempo presente assume um conteúdo mais duradouro diante de nossos olhos, porque vemos memórias passadas adentrando nossa perspectiva atual, na medida em que estamos vivendo dentro deste atual. Duas doses de presente, para uma de passado. Sua forma, tão abstrata quanto seu conteúdo, não está conformada às mise-en-scenes de suas documentações e materiais de arquivos. A única coisa que determina um lugar e um espaço é a própria presença de Andrés ao vivo lendo seu diário e andando no palco entre uma exibição e outra de seu “filme”. Neste sentido, Diarios não tem um lugar físico e muito menos um único significado, sua única convicção é habitar o presente.
Nesta linha de raciocínio, no filme Pan-cinema permanente (2008) de Carlos Nader, o diretor aborda ligações intrínsecas do cinema com a poesia. Apresentando a palavra poesis, do grego, como ação ou trabalho, Nader define uma feliz ligação entre as duas diferentes experiências artísticas capaz de elucidar e confirmar todo o arcabouço de ideologias abordadas por Di Tella. Ao afirmar que no cinema é preciso confirmar a prontidão da luz e da câmera para enfim podermos ter a “ação!”, Nader realiza um paralelo entre a existência mútua do registro cinematográfico com um impulso emocional e humano para que exista de fato uma obra. Coexiste, portanto, nesta mesma filosofia sobre o sentimento e motivação subjetivos do fazer cinematográfico, a obra presentista de Di Tella, que manifesta “luz, câmera, ação!” tanto quanto nos confessa “luz, câmera, poesia!”. O enunciado de Nader encontra no cinema de Andrés sua efetivação prática.
Ainda mais do que isso, e por último, Di Tella confirma a comunicação de um filme com a vida de qualquer espectador que o assista, fazendo com que suas memórias também se tornem nossas e passem a transmitir a nós, sentimentos particulares diferentes dos que foram experimentados pelo artista. A forma do presente, construída pelo diretor argentino, comprova a potência de permanência do registro e sua ligação com a vida, criando uma perspectiva de realismo que não se conforma à ficção ou à documentação. Ao contrário, esta realidade existe sem conformações e definições, sua forma não é facilmente dividida e colocada em “caixinhas”, pois dentro de toda documentação existe uma escolha e dentro de todas as ficções existem documentações. Entre todas as grandes faculdades intelectuais, o cinema é uma das únicas que aproxima a vida ao mais próximo do que ela é, trazendo suas complexidades, coincidências e até as mentiras que fazem dela uma ficção em determinados momentos. Diarios (2022) somos nós refletidos na tela vivenciado uma experiência única, que não existe até ressurgir da instantaneidade. E sempre, no final de tudo, vamos pensar que mais uma vez é tudo verdade.