Crítica | Elvis (2022), de Baz Luhrmann

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Por: João Marcello Arenhart S.

Seguindo uma das novas tendências de Hollywood, Elvis (2022) chega para compor a leva de filmes biográficos de estrelas colossais históricas do entretenimento, cujo sucesso e imagem estão muito além do mortal que a representa. Logo, é muito difícil responder a perguntas tais quais “como expressá-los na grande tela?” e “o que fazer com esse deus de carne e osso?”, questionamentos chaves que distinguem grandes obras de representações superficiais. Mas o mais importante agora, onde Elvis se encaixa nesse nicho? 

O filme de Baz Luhrmann é, acima de tudo, uma obra de enorme personalidade, com aspectos técnicos sublimes (um ode também à sua equipe) e decisões narrativas muitíssimo interessantes, decidindo sim filmar uma divindade na terra, mas respeitando as suas nuances comuns de seres humanos e tensionando a história ao trazer a perspectiva majoritária ao vilão do drama quase épico. 

Elvis é narrado pelo coronel Tom Parker (Tom Hanks), que deu vida e matou Elvis Presley (Austin Butler), um charlatão e homem do entretenimento que assessora a grande estrela ao longo de praticamente toda a sua carreira. Porém a perspectiva narrativa não acaba aí, já que em certos momentos de desconfiança ou cenas muito íntimas da vida do personagem, o espectador é aproximado da figura de Elvis Presley. Essa decisão criativa levou a escolhas estéticas que garantiram ao filme um aspecto de fato memorável. Se temos de um lado um homem do entretenimento, um ilusionista, e do outro um showman extravagante e transgressor, a obra ressoa perfeitamente um espetáculo visual que ambos têm familiaridade, que sacrifica o realismo em função de um visual puramente plástico – colorido e saturado, vibrante e estilizado – que cativa os olhos do público, da mesma forma que não o permite piscar demais para não perder nenhum segundo da intensa e rápida sequência de quadros, que por vezes dividem o espaço em tela com mais uma, duas ou três outras imagens complementares à ação da cena. É como se o filme gritasse para que não tiremos os olhos da tela em hipótese alguma, para não se perder o grande truque e deixar o espectador com um vislumbre nos olhos no final. 

O ritmo, portanto, é muito acelerado e instigante, o que em linhas gerais funciona ao longo das 2h40 de duração do filme, porém não integralmente, perdendo forças, por exemplo, na cena do funeral de Gladys (Helen Thomson), mãe de Elvis, onde a emoção e drama não floresceram, ao que atribuo a um desacerto rítmico e melodramático da montagem e direção. Cenas como essa são incomuns no filme, portanto não ofuscam seus acertos, mas confesso que houve também uma sensação de desgaste por volta do fim do segundo ato do longa, tornando-o um tanto cansativo, mas que logo é pulverizada pelo desolador terceiro ato. Outro ponto a se comentar decorrente da mesma relação rítmica é a sensação de passagem de tempo, praticamente inexistente, que na minha opinião viria a impulsionar o drama dos constantes altos e baixos da carreira do cantor se bem manuseada. Mas, novamente, esse e os demais problemas não configuram um eclipse ao brilho que é alcançado nesse filme pelas mãos do diretor e a sua equipe, mas são problemas que, ao adotar a estética, tem o potencial de saturar o estilo, por mais que eu não considere de forma alguma que a obra tenha caído em uma vala comum ao dedicar as suas forças nessa forma de representação.

O longa, como dito antes, se organiza a partir da perspectiva de Tom Parker acerca da vida do seu grande astro e por vezes a partir da perspectiva do próprio Elvis. Nisso, a relação e o atrito desses dois personagens tornam-se a força motriz da história. 

Logo no início do longa, é dado ao espectador informações cruciais sobre a personagem de Tom Hanks, um empresário enganador viciado em jogos, e isso também se torna imprescindível para o entendimento da narrativa. Do início ao fim o coronel serve como um demônio vestido de anjo, sobrevoando os ombros do seu cliente orientando sobre o caminho que o levaria para a conquista das suas ambições infindáveis, uma sedução pelo prêmio, mas que demanda um sacrifício alto demais a se pagar, porém tornado brando pela voz do velho Tom, que encontrou a forma perfeita de ganhar dinheiro sem ser prejudicado: apostando por terceiros. O carisma do personagem e a sua vontade de passar a perna e sobressair-se de uma situação é tanta que até ao espectador tenta enganar, declarando-se honesto e inocente, e cuja vida se resume a escapar, mentir e manipular: um verdadeiro ilusionista. 

Já o personagem de Butler, uma verdadeira vítima, mas não redimido de culpa, representa o boneco do mestre dos fantoches, por maior que fosse a sua expressividade, transgressão e até mesmo noção do caráter do seu descobridor. Mas Elvis Presley não se resume somente a isso, ele reconhece as suas origens, o que representa e o que quer, sabe lutar pelo o que ama e vive intensamente entregando o melhor show que o público poderia imaginar receber. O circo, então, está montado. No que tange o arco do Elvis, ele é suturado, curiosamente, em paralelo a história americana da metade do século XX, um período de exposição e desgaste dos valores familiares americanos e de suas promessas de prosperidade, grandeza e liberdade, onde a perseguição segregacionista aflige a sua integridade civil e artística devido ao seu forte viés vindo da música negra (importante considerar que tais consequências foram infinitamente menores que um afro americano estaria sujeito a sofrer em seu lugar), a sua derrocada coincide com o período sombrio de crise moral americana em função das guerras dos anos 60, a sua tentativa de resposta e até desobediência em função da manutenção da imagem possui ressonância no discurso das diferentes camadas sociais do país, a sua volta aos trilhos e queda novamente traçam paralelos com a ascensão e morte de heróis americanos como Martin Luther King e, por fim, a destruição da esperança de recomeço e um futuro próspero que nunca chegou, que mais uma vez se estende do seu país para a sua história de vida.

Essa estrutura e correlação entre personagens unificam e mantém girando a narrativa de forma muito certeira e com resultados predominantemente positivos, mas há também escolhas de direção e roteiro que não me parecem salvas de ressalvas, especialmente aquelas às margens da relação dos personagens centrais do filme, como a relação do astro com os membros de sua família e esposa, bem como o papel de certos membros da comissão de Tom para a narrativa. Todos são introduzidos e esquecidos ao longo da obra ou facilmente solucionados, sem propor um aprofundamento, funcionando quase como sobras da trama. Mas, novamente, por estarem à margem da linha narrativa predominante, não configuram uma diminuição gritante da qualidade do que foi alcançado e nem atrapalham o aproveitamento do filme.

 Elvis (2022) definitivamente não é perfeito, mas não cai em uma vala comum em sua tentativa efetiva de impressionar visualmente e de prender em sua narrativa eletrizante. É verdade que esse longa consegue ir além do grande showman, e aí mora um grande mérito. É também o filme sobre Elvis Presley, o ser humano, sobre as raízes africanas nos Estados Unidos – e a conturbada relação da população negra com o seu próprio país – e, também, sobre os EUA propriamente dito, a terra das oportunidades (ou dos vigaristas). 

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