Entre a Música e o Cinema – Michael Nyman e Peter Greenaway

Clélia Maria Lima de Mello e Campigotto, possui graduação em História pela Universidade do Vale do Paraíba (1986) , mestrado em Multimeios (incompleto) pela Universidade Estadual de Campinas (1998), mestrado em Ciências da Comunicação (doutorado direto) pela Universidade de São Paulo (1998) , doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2001) e pos-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) . Atualmente é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Artes , com ênfase em Poéticas de Imagem e Som. Atuando principalmente nos seguintes temas: cinema, Peter Greenaway, encenação, interdisciplinariedade, hipermídia, molduras culturais e experimentação metodológica.

Muito se tem escrito sobre o cinema de Peter Greenaway. E embora muitas pessoas o considerem um “visualista” é inegável a notável importância dada à música em seus filmes. Porém, no Brasil, e com raras exceções no mundo, essa questão está à margem das discussões. Na sua reflexão estética, a música é um dos elementos fundamentais da composição fílmica. E é por isso que retomo o tema que motivou a minha pesquisa sobre esse artista*.

De início creio ser pertinente lembrar que, na história do cinema, até o início dos anos 1990 a prática mais comum era a da composição de uma trilha musical que ilustrasse o que se processava em determinada cena. Por sua vez Greenaway, ao pensar o cinema como música e imagem, imprimiu um estilo cinematográfico quando organizou conceitualmente os elementos em que os conteúdos se manifestam. Elementos esses que foram vinculados por suas propriedades materiais e formais específicas e não apenas pelo seu sentido imediato. Com esse intuito, houve uma radical utilização da estrutura musical.

Para tanto, Greenaway contou com a contribuição do compositor Michael Nyman, em condições diversas da práxis habitual. Por mais de vinte anos, Nyman criou a maioria das músicas para os filmes de Greenaway, o que possibilitou inclusive que as idéias musicais iniciadas em um filme pudessem ser desenvolvidas em outro. É que da música adveio uma das formas da obra, para além do costumeiro papel de guiar o consumo do enredo – seja esta utilizada como simples ilustração ou para intensificar algum sentimento implícito na narrativa.

Uma cena em The Cook, the Thief, his Wife and her Lover evidencia de modo particular a inflexão do valor dos conceitos utilizados e como esses atingem o espectador em relação ao sensível, conclamando-o para uma tarefa do pensamento ao arrancá-lo de uma postura passiva, ao mesmo tempo em que produz uma poderosa resposta emocional abstrata. Trata-se do cromatismo da passagem da sala de espera ao lavatório, no primeiro encontro de Georgina com aquele que será o seu amante, quando o vestido dela e também a cor predominante na cena se alteram drasticamente.

O tema musical apresentado vai do simples acompanhamento à ambigüidade da referência, visto ter sido composto para Drowning By Numbers. O requinte é extremo, pois além do jogo com as imagens visuais e com a referência anterior, o timbre é a cor própria do som. Acentuando-se que timbre também é conhecido em música como um motivo melódico já existente que o compositor utiliza para criar um novo texto – como é próprio do procedimento de Nyman e, na transposição, de Greenaway.

Já o canto entoado pelo sopranino no mesmo filme, foi baseado no ritual litúrgico. O cântico que começa solo, ao ser alternado pelo contraste de vozes, transforma-se numa antifonia, com a palavra a instigar outras leituras. Nyman musicou um dos salmos de Davi, precisamente o de número 51, que é literalmente endereçado ao diretor da música. Se pensarmos que o compositor é o diretor musical da encenação, acrescenta-se outra voz, estando em jogo associações conceituais referentes à própria construção musical.

A moldura musical estabelecendo relações que ultrapassam a diegese também está presente em outros filmes. Tal como acontece em Prospero’s Books na longa passagem da abertura(1), ao pontuar a ligação com o final de The Cook, the Thief, his Wife and her Lover(2); bem como, em outro momento, com A TV Dante(3) no qual John Gielgud, que na encenação protagoniza o múltiplo Próspero/Shakespeare/Greenaway, fez Virgilio. Essa ressonância musical será ainda mais evidenciada na cena em que Alonso vivencia a morte do filho(4): a música foi composta para o filme A Zed and Two Noughts(5). Ao mesmo tempo, devido a sua estrutura, leitmotiv e re-orquestração, ela remete à música que marca The Cook, the Thief, his Wife and her Lover(5).


(1): Prospero’s Book: abertura


(2): The Cook, the Thief, his Wife and her Lover

(3): áudio de A TV DANTE aqui


(4): Alonso vivencia a morte do filho


(5): A Zed and Two Noughts


(6): The Cook, the Thief, his Wife and her Lover

Como pôde ser percebido o jogo entre forças que é ativado pela música, investe a cena de uma significação que não seria possível somente através da imagem visual ou da imagem musical, pois existe uma correspondência substancialmente diferenciada, entre o movimento da cena e o movimento de um trecho da música, que amplifica o recorte espaço-temporal presente num filme. Nesse processo, no qual a aproximação e o vínculo composicional ultrapassam a fronteira entre filmes, a postura típica de um espectador é modificada ao contrastar com o procedimento usual de recepção:

Ao retomar as referências em seus desdobramentos e implicações em relação ao tempo, é proporcionada uma particular interação com a encenação. A qual possibilita que, por meio de todos os registros do repertório, possamos jogar em contraponto com o motivo em cena numa série de paralelismos e rotações. Tal como acontece na forma aberta do próprio processo de criação em meio à estrutura organizacional austera: da música de Nyman à composição fílmica de Greenaway – o encenador. E, presente desde o início, faz pensar o Cinema.

*O anteprojeto proposto em minha candidatura ao mestrado, em 1995, foi sobre a música no cinema de Peter Greenaway. Ele previa a utilização de recursos audiovisuais para a abordagem do tema e esboçava a minha insatisfação com a forma de apresentação e os recortes de estudos que tratavam do cinema contemporâneo. Desde então busquei utilizar a convergência dos meios para pensar o cinema, de maneira que a forma esteja imbricada com o conteúdo. O material aqui presente tem como referência o CD-ROM O Cinema em Cena: uma aproximação hipertextual à encenação de Peter Greenaway, apresentado em 2001 à ECA/USP para fins de doutorado.

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