Entrevista com Carlos Reichenbach – Parte 1

 Carlos Reichenbach diretamente da Sessão do Comodoro, fala de carreira, cineclube e próximos trabalhos. 

Por Thiago Jacot e Estela Andrade*  

O cineasta brasileiro Carlos Reichenbach, diretor de filmes como Lilian M: Relatório Confidencial (1974), Alma Corsária (1993), Garotas do ABC (2004) e Falsa Loura (2007) e símbolo do Cinema Marginal, veio para São Carlos em novembro como parte da programação do 5º Festival Contato para a Noitada Cineclubista e a apresentação da sua famosa Sessão do Comodoro, um cineclube que busca passar filmes “nada óbvios, com temáticas polêmicas e impactantes”, nunca antes vistos, fora do comum. Um trabalho de pesquisa à procura de títulos que não passam no circuito comercial no Brasil. O cineasta concedeu entrevista a Revista RUA, falando sobre carreira, o cineclube e próximos projetos, que será apresentada em duas partes, a primeira em dezembro e a segunda em janeiro.  

Carlos Reichenbach durante a Sessão do Comodoro. Foto Marcelo Félix.

 

Thiago Jacot e Estela Andrade – Você poderia nos contar como foi o início de sua carreira? Como foi ter aula com Luís Sérgio Person?  

Carlos Reichenbach – É uma história longa. Meu interesse por cinema e minha vontade de fazer cinema nasceu muito cedo. Eu sou neto de editor, sobrinho de editor, nasci para ser editor, fui editor dos jornais de todas as escolas em que estudei. Eu perdi meu pai muito cedo, antes de fazer treze anos, foi uma mudança de rota na minha vida. No fundo o cinema surgiu em função dessa perda bastante traumática. Eu me lembro que uma das grandes experiências que eu tive com o cinema, foi ter assistido aos nove anos de idade a leitura de um roteiro cinematográfico que meu pai editou, ele era amigo do cineasta Oswaldo Sampaio, e eu tive a oportunidade de vê-lo contando uma história verbalmente, esse talvez tenha sido o grande impacto. Ele interpretava junto o que estava lendo, a leitura do roteiro ao vivo e à cores, e eu fiquei muito impressionado com aquela forma de expressão, então eu pensei: “Eu gostaria de fazer isso da minha vida”. O tempo passou, eu tive minhas experiências literárias como editor, meu projeto de vida era ser escritor – aliás, é até hoje. Minha primeira experiência com escrita não foi com livros, mas com roteiro cinematográfico, aos doze anos. O meu filme terminal, o último da minha vida, quando eu decidir que não quero mais filmar, está pronto, chama-se “ O Mar das Mulheres Finais”, que eu escrevi aos doze anos. É um filme sobre  visão do fim do mundo por um garoto de doze anos; as ondas começam a trazer corpos de mulheres mortas, uma loucura. É um roteiro inocente mas ao mesmo tempo tem toda a crueldade de um garoto de doze anos. Na minha formação tudo sempre esteve ligado à escrita, tudo sempre começou com texto, até o cinema. Quando eu fui estudar cinema, fazer uma faculdade de cinema, meu projeto era ser roteirista, não diretor. Talvez a melhor escola que eu possa ter tido, mais do que a faculdade que eu fui fazer – eu fui aluno da Escola de Cinema São Luís, em São Paulo, um rascunho que seria a escola de cinema da USP – foi a minha cinefilia. Eu aprendi a não ter preconceitos, descobri que para ver um filme bom antes você tem que ver duas porcarias. Eu aprendi mais vendo filme ruim do que filme bom. O cinema é uma linguagem universal, no fundo, foi por isso. E foi através do Luís Sérgio Person, meu professor de cinema na São Luís, que me disse: “Se você quer ver seu roteiro filmado, você tem que aprender a dirigir”. Eu disse que gostava de trabalhar entre quatro paredes, que tinha problema em trabalhar com muita gente e ele me disse que eu ia aprender, me seduziu para a vida de cigano. E como eu tinha uma câmera de 16 milímetros, ai eu comecei a fotografar muitos filmes dos colegas lá dentro, aprendi na raça e me tornei diretor de fotografia – fiz fotografia de trinta e seis longas metragens -, foi a única época em que eu ganhei muito dinheiro na minha vida, eu só tinha que me preocupar em fazer meu trabalho e receber. Foi um período ótimo, às vezes eu nem tinha tempo de descansar. Aí eu me apaixonei pelo trabalho em equipe, principalmente quando comecei a fotografar os exercícios dos meus colegas na São Luís. Eu falei pro Person: “Você tinha razão, trabalho em equipe é uma coisa muito legal.” Porque te dá conhecimento, não um conhecimento erudito, mas de convivência, você aprende a se entender com todo mundo. Mas até hoje eu ainda sou um homem de quatro paredes, adoro ficar trancado numa sala com a minha montadora, com quem eu me entendo muito bem, terminando o filme; o trabalho de pesquisa também me atrai muito. No fundo é isso, você tem de se adaptar. A minha profissionalização começou muito cedo, eu me juntei com o João Callegaro, um colega da São Luís, e nós abrimos a minha empresa aos dezenove, vinte anos de idade.  

Thiago e Estela – Trabalhava com cinema de publicidade?  

Carlos – Não, longa – metragem, a Xanadú Produções Cinematográficas. Aos dezenove anos eu tinha uma produtora e entrava nos bancos pra pedir dinheiro emprestado, nem sei como nós conseguíamos. Juntamos com a Boca do Lixo e em um ano e meio produzimos doze longas. Depois, nos anos Collor, fundamos a Casa de Imagens um novo modelo. Éramos seis malucos da época do cinema marginal. Hoje, todos os orçamentos admitidos pelos órgãos oficiais usam um modelo que nós criamos para a Casa de Imagens. Não tinha nada, o Collor tinha acabado com tudo. O dinheiro estrangeiro que a empresa ia mandar pra fora tinha que ser reinvestido aqui no Brasil, era com isso que nós trabalhávamos. Nós passamos dois anos tentando descobrir como trabalhar com esse sistema de remessa de lucros. Criamos um projeto de seis longas – no qual foram feitos dois. Imagina seis malucos dos anos setenta, de cinema experimental fazendo curso de administração de empresas. Graças a isso nós conseguimos construir um sistema de produção que serve de modelo até hoje no mundo todo, que foi apresentado em vários festivais de cinema independente como sistema de produção, mas nós nunca chegamos a produzir um filme. No dia em que nós íamos fechar com um banco holandês para trabalhar com dinheiro da Ford e da Phillips, a lei caiu. O cara criou uma lei que não durou dois anos e meio. Mas nós criamos isso na raça e ele é usado como modelo até hoje porque nós sabíamos como o mercado funcionava.  

  

Thiago e Estela – Nós sabemos de seu interesse por cinema japonês…  

Carlos – Eu me interessei pela cultura japonesa muito cedo, de estudar mesmo, aos dezesseis anos eu escrevia sobre cinema japonês. No começo dos anos sessenta eu comecei a freqüentar a aliança cultural Brasil – Japão, eles faziam projeções de filmes japoneses sem legenda; eles entregavam uma folha com explicação daquilo que você ia ver na tela feita por um grande conhecedor da área, o José Rodrigues, de quem fiquei muito amigo depois; viajamos juntos pro Japão, inclusive, fomos convidados como pessoas que conhecem cinema japonês pela Fundação Japão para o Festival de Tóquio. Fui depois com o Ismail Xavier e o Jean Claude Bernardet, eu era professor da USP na época, fomos convidados da escola de Sô Yamamura, um grande diretor japonês, que fundou a melhor escola de cinema que existe no oriente, em Tóquio. Claro que eu fui pra lá mais pra ver o Yamamura do que pra ver faculdade.  

Thiago e Estela – O seu trabalho na Sessão Comodoro? Essa atividade cineclubista, ela reflete justamente esse trabalho de pesquisa, de prospecção, de procurar mais…  

Carlos –  A Sessão Comodoro faz parte disso, da promoção do cineclube. A função do cineclube é essa: dar pra você o que você não tem, ainda mais numa época em que a maioria dos filmes é acessível. Isso também te dá a capacidade de você adquirir um nível de exigência diferente. Eu sou a favor completamente do compartilhamento audiovisual. Começou com o meu livro sobre censura, que à priori era um filme, mas foi ampliado nessa experiência. Ampliou muito mais a necessidade de testar os nossos limites, isso foi bacana. Isso também a gente já fazia quando tinha catorze, quinze anos de idade, de buscar filmes difíceis de ver, como o Planeta dos Vampiros (Mario Brava, 1965) – que depois se tornou um filme cultuadíssimo – e na época ninguém queria ouvir falar, tinha preconceito. O mais interessante não está no que você espera. Hoje, graças ao compartilhamento houve democratização dos gostos também, a sensibilidade. Você pode observar que o que vem de DVD fora do Brasil, hoje, o que tem interesse, principalmente os de filmes difíceis, são filmes de vinte, tinta anos atrás que eram rejeitados pela crítica. O que me atrai também no cinema, no fundo, é esse desejo de prospecção. É muito fácil observar o que já está pronto. Eu queria ver filme japonês e não tinha nenhuma informação; hoje é fácil, você quer ver Mizoguchi e vê. Eu dei aula na ECA durante quatro anos, saí por várias razões, estava a fim de filmar, mas foi um período muito legal. Encontro alunos até hoje que me chamam de maluco por eu passar filmes japoneses sem legenda para os alunos e não explicar nada. Que discussão teórica? Meus alunos aprenderam a ver filme assim, ver com olhos livres. Entendeu ou não, o problema é seu, vai buscar informação!  

Thiago e Estela – Quanto aos seus próximos projetos?  

Carlos – Eu pretendo publicar meu primeiro livro teórico agora, até o final do ano que vem eu devo estar com o livro pronto. Acho que é o primeiro livro no Brasil que trata a questão do que é pornográfico e o que é erotismo. Foram quase vinte anos de trabalho de pesquisa muito profunda. Eu me interessei muito cedo sobre a questão da censura, do que é proibido, do que não é proibido. Essa questão de testar os limites, testar os meus próprios limites de tolerância, o que eu consigo ver e o que eu não consigo, o que o cinema pode mostrar e não pode mostrar. O cinema pode mostrar tudo? Essa é a grande questão. Isso me obrigou a ver imagens que eu jamais pensaria ter estômago pra ver, mas tive que ver. Existem bons cineastas nessa área. Eu descobri meus limites, minha tolerância é imensa, mas, para mim, tem três coisas que são infilmáveis: pedofilia, zoofilia e merda… No sexo. Mas no resto, em tudo, é possível encontrar uma forma de comunicação.  Sempre me interessou a questão de quebra de tabus…  

…Em Janeiro Parte 2 da Entrevista com Carlos Reichenbach. Enquanto isso confira a Cobertura da RUA da Sessão do Comodoro e a da Noitada Cineclubista no 5º Festival CONTATO e  o blog Olhos Livres do cineasta para acessar a programação da Sessão do Comodoro. 

*Thiago Jacot e Estela Andrade são graduandos do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e editores responsáveis pela seção Entrevistas da RUA.  

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