Entrevista com Eryk Rocha e Fernando Bezerra

Fernando Bezerra e Eryk Rocha no CineUFSCar

Diretor e ator de Transeunte falam sobre o filme em exibição no CineUFSCar.

Por Thiago Jacot


O diretor Eryk Rocha e o ator Fernando Bezerra trouxeram para o Cineclube da Universidade Federal de São Carlos, o CineUFSCar – um dos poucos cineclubes do país com exibições em película – , em parceria com o NPD( Núcleo de Produção Digital São Carlos), o novo filme de Eryk, Transeunte de 2011. O filme foi premiado nos Festivais de Brasília e no Festival Latino Americano de São Paulo, sem falar na seleção para o seleto Festival Internacional de Cinema de Telluride no Colorado, Estados Unidos. Diretor de filmes como Rocha que Voa(2002) e Intervalo Clandestino(2006), Eryk sela sua parceria com o veterano ator dos teatros brasileiros, Fernando Bezerra para seu primeiro longa de ficção. Após a sessão de Transeunte, seguida do debate, o diretor e ator concederam entrevista a Revista RUA.


Thiago Jacot – Eryk, você é filho de cineastas, sendo seu pai o cineasta Glauber Rocha. Como foi para você a influência de seus pais na sua carreira e formação e como foi estudar na Escola de Cinema de San Antonio de los Baños em Cuba?

Eryk Rocha – Minha família, além da minha mãe e do meu pai, meu avô era um grande poeta colombiano, minha avó é diretora de teatro, meu tio filósofo e dramaturgo, meus irmãos também fazem cinema e artes plásticas. Foi esse o ambiente em que eu cresci. Fui formado pela minha mãe Paula Gaitán, que é cineasta e artista plástica, porque meu pai morreu quando eu era muito moleque, eu tinha três anos de idade. Então a pessoa que me formou, digamos assim, plasticamente, esteticamente, filosoficamente foi minha mãe, e com ela comecei a fazer meus primeiros trabalhos de vídeo e de cinema, fazendo assistência para ela, filmando, fazendo câmera em alguns trabalhos dela, então ela foi uma pessoa decisiva na minha formação, na minha escolha pelo cinema, pelo audiovisual, pela imagem e pelo som. Principalmente, quando a gente saiu do Brasil, quando eu fui morar na Colômbia, no final dos anos 80, o [Fernando] Collor de Melo, em 90 mais especificamente, acabou com a EMBRAFILME, e minha família e parte dela dependiam da EMBRAFILME, que era o instituto de cinema no Brasil, para sobreviver. Então, foi muito complicado esse momento para a cultura brasileira e para o cinema brasileiro. A gente teve que migrar para a Colômbia. Eu tinha 16 anos na época. Minha mãe foi convidada para trabalhar na TV Cultura da Colômbia. Foi lá na Colômbia, nos três anos que eu morei lá, que foram definitivos pela minha escolha pelo cinema, lá que eu comecei a frequentar cinemateca, museu de arte moderna, ver os filmes. Então, quando eu morava na Colômbia foi o momento que eu descobri o cinema, e o desejo e a vontade de fazer cinema foi se tornando uma realidade, foi crescendo, foi transbordando. Fiz meus primeiros vídeos experimentais lá, com meus amigos e trabalhei com a minha mãe como já falei. E isso meu levou a Cuba. Estudei em San Antonio de los Baños[Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños], uma escola criada nos anos 80 pelo Gabriel García Marquéz, e alguns cineastas latino americanos. E eu sempre fui um leitor da Revolução Cubana, sempre estudei, me interessei muito. E essa escola era uma escola muito interessante, que era uma escola que reúne estudantes do terceiro mundo, América Latina, Ásia, África. Na época, era fundamentalmente isso, hoje já está aberto para a Europa e Estados Unidos. A escola foi criada com o intuito de dar a possibilidade para os estudantes do terceiro mundo que não tinham condições de pagar uma escola de cinema. Escola dos três mundos se chama. Para mim foi marcante, passar esse período em Cuba de três anos, de estudar na escola, de ter grandes mestres do cinema, grandes encontros, encontros por exemplo com o fotógrafo do Transeunte, Miguel [Vassy] que estudou comigo na escola, que fotografou meu primeiro filme Rocha que Voa. E depois fazer o Rocha que Voa, que foi o primeiro longa que eu dirigi, que foi um documentário de ensaio, um documentário poético que a gente começou a pesquisar na época em que estudávamos na escola, e depois quando terminou a escola, a gente filmou, a gente realizou esse filme que foi, digamos assim, a minha verdadeira universidade de cinema. Porque você estuda e aprende muito, mas na hora em que você faz o filme, é onde você realmente aprende a dimensão do que é fazer cinema, do artesanato de um filme, do processo de criação de um filme. O Rocha que Voa foi a minha catarse, realmente minha entrada para o cinema. Neste filme estão todas as coisas que eu venho desenvolvendo com meu trabalho, esse filme é um pouco de ensaio, de manifesto nesse sentido.

Thiago – Seu primeiro longa de ficção Transeunte é apontado como um filme de experimentação de linguagem, extremamente autoral. Como foi a concepção desse projeto, a escolha dos temas…

Eryk – Não tudo tem um porquê nas coisas, o que me levou nesse filme foi uma pesquisa, uma questão que já estava presente em todos meus filmes, a questão do anonimato, a questão do anônimo latino americano. Seja em Havana, seja no Rio de Janeiro, seja em La Paz, seja nos Andes Peruanos, mas agora num sentido mais de sair de uma perspectiva da multidão e do coletivo e ir para o corpo desse homem[Expedito, protagonista do filme interpretado por Fernando Bezerra] em uma grande cidade. A questão do filme ser autoral ou de experimentar, simplesmente é a minha forma de sentir o mundo. Minha e das pessoas que fizeram o filme comigo, o Fernando por exemplo. O cinema é uma celebração de um encontro, um filme é uma celebração de um encontro. O filme é meu, mas também de muita gente, do meu encontro com essas pessoas, e desse encontro de várias pessoas, de um grande ator, de um grande fotógrafo, de uma grande montadora, de um grande som designer, e por aí vai, de uma produtora que irá respaldar isso, então é um encontro, a celebração desse encontro e na cresça de alguma coisa que todo mundo persegue, estamos juntos perseguindo, e nem sempre se sabe tudo a respeito. Um filme você persegue uma imagem, você persegue algumas intuições, você vai descobrindo o filme também. Você faz o filme para descobrir o que ele é também. É um bando de gente que acredita em algo que não está revelado, que está se formando, que se forma, que tem pistas, que tem impressões, que tem sensações sobre isso. Então o filme é resultado disso. Como eu falei, eu acho que a forma, a construção poética de um filme, a gramática de um filme, não existe a priori, ela vai sendo descoberta, construída com o processo. O desafio era esse, era encontrar uma forma própria, uma forma de falar, de abordar essas questões que o filme toca, a solidão, a velhice, o recomeçar, o anonimato, a cidade, a construção, a reinvenção de um homem, então como encontrar mesmo uma forma, que forma é essa, que preto e branco é esse, que imagem é essa, que som é esse, que música é essa, como a gente vai encontrar essa forma de falar disso, de potencializar isso. Esse é o desafio de qualquer filme, na verdade. Para mim a arte é isso, é você sair do campo temático, você não pode depender só de um tema. O tema não vai digamos assim: “Segurar a onda do seu filme”. O tema não vai resistir ao tempo. Qualquer tema pode ser interessante, eu acho que mais que o tema, é a relação que você tem com aquele tema. O que você lança, o mundo que você abre com aquele tema, o mundo de imagens e de sons, eu acho que isso é um pouco do desafio do Transeunte.

Thiago – Fernando, como foi seu trabalho de imersão neste personagem, em ser o Expedito?

Fernando Bezerra – Do meu ponto de vista, esse filme foi assim um desafio delicioso. Desde que eu peguei o roteiro, eu percebi que havia um risco muito grande, mas ao mesmo tempo havia uma promessa de possibilidades imensas, algo muito estimulante. Uma coisa que eu sempre vi nesse personagem é que ele vai muito além desse homem solitário, restrito a um espaço, ele vai muito além disso. Ele é um filme que em princípio te fala de vida, de um renascimento mesmo, de repente você se redescobrir , e se redescobrir em função de um grupo muito maior que você. Você não se redescobre sozinho, você não vive sozinho, não nasce sozinho. Nascer sozinho você nasce, mas se sua mãe não estivesse lá, e a parteira não estivesse lá você não nascia também. Então, a gente nunca está sozinho, isolado, somos animais gregários. O trajeto desse homem parte de uma visão equivocada que “estou sozinho”, “eu sou ninguém”, “não tenho família”, “não tenho isso”, “não tenho aquilo” e começa a descobrir que existe isso, existe aquilo e aquilo outro e “eu faço parte”, entendeu, ele dá a virada.

Thiago – No momento em que o Expedito começa a cantar, tomei um susto, justamente por essa virada, percebi quanta vida há nesse personagem, há muita vida…

Fernando Bezerra – A gente fica meio condicionado, até por uma questão histórica, antropológica até, de você vir sempre sendo sujeito a regras para poder conviver. Você acaba sem querer indo além dos limites disso e ficando limitado em excesso. Quando de repente você dá uma brecada e olha em volta, você percebe que há outras possibilidades, há outros caminhos a serem trilhados. É um pouco isso que o Expedito faz. Eu tomei sustos com esse filme, é incrível. De jovenzinhos de 15 anos virem falar comigo depois do filme, super emocionados, falando do filme como uma menina de 15 aninhos : “ Nossa! Esse filme falou de vários momentos da minha vida”…

Eryk – Só complementado o que você falou Fernando, o filme fala de renascimento, fala de velhice, fala de solidão, fala de transformação de um homem, claro, fala de tudo isso. Mas acho que tem alguma coisa intrínseco, que são os estados desse homem, o trânsito dele. São os estados da alma, que são os estados da solidão. São coisas intrínsecas a todos os seres humanos. Então existe uma projeção de trazer a esse homem, trazer a pele desse homem para o mundo. A pele do homem vira as raízes do mundo. A sensibilidade dele está a flor da pele e o filme quer, ambiciona e deseja traduzir isso, traduzir essas sensações e esses estados. E esses estados, são como eu falei, são intrínsecos a qualquer ser humano, o estado de estar sozinho, de caminhar, de pensar, de ver, de ouvir, de estar só no mundo. Uns são mais solitários, outros menos. Mas a solidão é algo inerente a todo ser humano, então eu acho que isso cria uma relação da identificação, uma projeção com o Expedito que independe da idade, do gênero, do sexo, da nacionalidade, como a gente tem visto com o filme fora, acho que é uma coisa mais como o rapaz falou hoje no debate, o estado bruto. Uma coisa bruta do filme, eu acho muito bonita, do homem, da carne, da pele, do osso, de sentir aquilo, eu acho que é muito bruto. O preto e branco que deixa a imagem num estado ainda mais bruto, o grão, tem alguma coisa das vísceras, da imagem e desses estados. Eu acredito muito mais nesses estados. A interpretação do filme não é psicológica, não trabalha, por mais que você tenha a escola de Stanislavski, eu acho que o filme não segue uma linha de Stanislavski, uma coisa psicológica. O filme trabalha muito mais os estados, a paixão do ator e a transiluminação do ator, no sentido do que ficou do filme, não do todo, porque a interpretação está ligada a imagem, a tudo, a montagem, o cinema é o todo, to falando nisso nos termos do cinema não do teatro, que é uma outra coisa, outro signo, mas no cinema como um todo, eu acho que o trabalho do Fernando está menos ligado ao psicológico, muito mais aos estados, as sensações, as sugestões, as relações.

Thiago Jacot é graduando do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Editor da Revista RUA.

Confira a programação do CineUFSCar em : http://www.cinema.ufscar.br/

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