Entrevista com Raul de Souza

*Por Amanda Guimarães Gabriel

Com a boca no trombone

Um dos mais conceituados trombonistas de Jazz, Raul de Souza, superou as novidades do século XX através da música, e nos conta um pouco de sua história.

Nasceu no subúrbio carioca de Campo Grande e cresceu em Bangu, onde aprendeu pandeiro, bumbo, caixa e prato. Como adolescente, foi prodígio, tocava tuba na banda da fábrica de tecidos Bangu, aos 16 anos – foi nessa banda que estabeleceu seus primeiros contatos com o trombone (de válvulas).  Não controlava, por assim dizer, sua intensa vontade de tornar-se músico e presentear os ouvidos humanos com um instrumental de primeiríssima qualidade.

O menino João José Pereira de Souza tornou-se Raul (atribuição de Ary Barroso em seu programa de calouros), nome tão forte quanto seu ímpeto musical e desejo de arriscar-se pelas gafieiras cariocas. Sem dúvida, seu caráter inovador e genial logo o levaria a experimentar o trabalho no exterior. É assim que começa a trilhar um caminho repleto de discos como solista – aberto pelo álbum À Vontade Mesmo (1965), no Brasil – principalmente em terreno norte-americano, onde estreou em toda sua magnitude com o disco Colors. Por causa de seus trabalhos nos Estados Unidos, berço do Jazz, Raul foi aclamado, aplaudido, e considerado – a posição é mantida até hoje – um dos cinco melhores trombonistas de Jazz de todos os tempos (e número um pela New York City Jazz Magazine).

Apesar do grande sucesso no exterior e das inúmeras premiações, o trombonista consagrado retorna ao Brasil para nos encantar ao vivo, mais uma vez. Seus destinos: Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais do país. E eis que os amantes de Jazz residentes em Bauru também puderam deleitar-se com um concerto de Raul, que aconteceu dia 29 de Abril de 2009 (quarta-feira), no SESC. Evidentemente, tamanho acontecimento musical é, sobretudo para seus admiradores, de enorme importância, por isso, o local estava lotado. Aproveitando a oportunidade, fomos assistir à apresentação e bater um papo com esse ícone do Jazz e da Bossa Nova.

Logo quando subiu ao palco, Raul mostrou-se claramente dedicado ao que se propôs a fazer: até apostou em um gingado peculiar (o qual animou os espectadores), além de dialogar com o público, nos intervalos entre as músicas. Quando vemos sua performance que, além de tecnicamente monstruosa, é pura arte de improvisação e jogo de cintura, a simplicidade e simpatia são marcantes. Ademais, a banda que o acompanha não fica aquém da qualidade sonora, pois a desenvoltura do baixista ao perfazer seus solos com slaps e o feeling do pianista de dedos ágeis, juntamente às assombrosas viradas do baterista, foram de emudecer.

Enfim, nossa conversa aconteceu no pós-show – tivemos de esperar por cumprimentos, autógrafos e fotografias dos fãs. A princípio, entrevista-lo-íamos em uma mesinha em frente ao bar do SESC, por causa de exigências de sua assessora. No entanto, Raul sentiu-se mal por conta dos ventiladores, além de já ter explicitado que preferiria ser entrevistado em seu camarim, lá o fizemos. A entrevista transcorreu de maneira espontânea e divertida. A ela dedicam-se as linhas que virão a seguir.

A Entrevista…

Raul de Souza diverte-se em suas performances
Raul de Souza diverte-se em suas performances

“Esse comentário do Jazz é para dar valor à música americana e desvalorizar o que os brasileiros fazem” Sobre o Jargão: “Bossa Nova é 50% Jazz”

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(Entrevistadora) Como você se introduziu na música?

(Raul) Eu tinha catorze anos, até menos que isso, meu pai era estudante para ser pastor, e eu comecei a conhecer a música. A vontade de Deus é o que manda ser, todas as vezes. Com dezesseis fui trabalhar na fábrica de tecidos de Bangu, como tecelão. E tocando tuba, tinha uma banda na fábrica; com pessoas que tinham sido militares antes. E ali eu fiquei mais ou menos um ano e pouco, e saí para ser militar. Eu tinha 18 anos e era obrigatório o alistamento. Então minha carreira começou. No quartel eu comecei a trabalhar no clube de gafieira, onde todo mundo dança. Tocava tímpano de sexta feira, sábado e domingo. E me envolvi, depois, logicamente, com música americana na qual existia o potencial de técnicas, estilos, ritmos e harmonias diferentes e envolventes. E então comecei a ouvir e me integrar na improvisação. Fui seguir o meu caminho profissional nessa base. Depois gravei com a turma da gafieira em 1955 mais ou menos. Nove anos depois, em 1964, surgiu a Bossa Nova instrumental; mas eu fiz isso antes, por isso que já falei que sou pioneiro. Bom, tem o Sérgio Mendes & Bossa Rio(1963) em que eu participei. Faz muitos anos, não me lembro bem disso.

Sua vida se passou em grande parte no século XX, que foi uma época de grandes mudanças, tanto sociais quanto culturais. Como a música se insere nisso?

A música foi me ligando na melhor situação. Em 1969, por exemplo, houve aquela revolução no Brasil, aquela coisa horrível. Eu arrumei um grupo e fui para o México, onde vivi três anos, em Acapulco, Porto Vallarta, tocando muito lá. Saí desse grupo e viajei para Los Angeles… Foi quando a minha vida começou a mudar no aspecto de ritmos diferentes, americanos, como o Funk instrumental…Comecei a tocar por lá e coloquei quatro cantoras (Em tal momento sua esposa trocou palavras em francês, afirmando que o número de cantoras na verdade era cinco. A isso, Raul respondeu com um divertido “Ta, ta!”). Ao mesmo tempo, fui tocando minhas coisas, fui indo por esse caminho. Em 1975 foi a minha primeira gravação americana: o Colors, que foi tida como minha apresentação nos Estados Unidos. Toquei na época com Richard Davis, Jack Dehjhonette, J.J. Johnson, trombonista, famosíssimo na época, e o solista, convidado especial, Cannonball Adderley. Esse foi o meu cartão de visita. Passaram-se dois ou três anos, e eu assinei um contrato para cinco discos, na Capitol Records, que é atualmente se chama EMI.

Você citou bastante suas atuações no exterior. Você acredita que isso lhe trouxe amadurecimento musical?

Não, porque tudo o que eu toco eu tocava antes. Aprimorando, logicamente, técnicas, sonoridade, improvisação. É a experiência, no decorrer de todos esses anos, que conta.

Como foi seu trabalho na Orquestra Mayrink Veiga (rádio)?

Ah… a rádio. Aquilo foi logo quando eu saí da aeronáutica. Quando terminou o meu contrato de cinco anos com a aeronáutica eu voltei para o Rio e vim me integrar à Orquestra Carioca, e isso durou um mês só. Saí, e comecei a ensaiar o Sérgio Mendes & Bossa Rio.

Quanto a suas parcerias, há alguma de que você lembra com gosto? (O artista tocou com Antônio Carlos Jobim, Toninho Horta, Gilberto Gil, Pierre Michelot, entre outros).

Não, nenhuma. (Acendeu o seu cigarro e abriu uma lata de Coca-Cola)

Agora, um comentário sobre música. O que você tem a dizer sobre o jargão: “Bossa Nova é 50% Jazz”?

Não é nada disso. Para falar uma coisa dessas, tem que saber falar o porquê, com certeza. O Choro, por exemplo, veio de milhões de harmonias diferentes, mas continua sendo Choro. E o Samba, musicalmente, tem uma maneira diferente de ser, única. Quando Tom Jobim começou a se organizar, junto com Newton Mendonça, eles passavam noites juntos, compondo. Fizeram Desafinado e Samba de Uma Nota Só. Eles estavam vivendo e purificando as harmonias… Mostravam seus melhores atributos, por meio dessas músicas. E foi assim a criação da Bossa Nova. Tom Jobim organizou o repertório harmonicamente e pediu para João Gilberto cantar. Depois disso, veio o lançamento da interpretação melódica da Bossa Nova, juntamente com a harmonia do João, que é mais ou menos similar à harmonia do piano. Agora, esse comentário do Jazz é para dar valor à música americana e desvalorizar o que os brasileiros fazem.

Como você descreve o seu trombone, o Souzabone?

Foi uma invenção minha para trazer à minha música o que eu procurava. Ele tem a cabeça mais longa, e ao invés de três válvulas, possui quatro. Isso favorece a reprodução das oitavas mais baixas e produz um som que não é feito por mais nenhum trombone de vara, por exemplo.

Percebemos uma a grande integração entre você e os músicos de sua banda na apresentação de hoje. Isso é coincidência ou a banda o acompanha?

Não, não é coincidência. Comigo não existe separação entre o pessoal e o profissional quanto à música. O show acaba e nós continuamos nos falando, cada um não vai para o seu canto. Tocamos juntos há cinco anos. (A banda de Raul de Souza é formada por Jeff Sabbag, no piano, Mario Conde no violão e cavaquinho, Glauco Solter, no baixo, Endrigo Bettega com a bateria e a percurssão).

“Comigo não existe separação entre o pessoal e o profissional quanto à música.

Para finalizar, como se encaminham seus últimos projetos?

O Jazzmin, por exemplo, eu gravei com esses músicos que vocês viram hoje. O meu CD novo, o Bossa Eterna, é em homenagem à Bossa Nova, com João Gilberto, João Donato, Robertinho Silva, que veio depois, e o Luiz Alvez. É um encontro nosso, na minha interpretação, no caso, para mostrar como se toca o Samba, para a rapaziada jovem, trombonista, saber como se toca, para depois poder improvisar do seu jeito. Minha idéia foi para passar informação, para tocar com amor. Eu acho que está legal. Já estou preparando um outro para o ano que vem, e esse ainda não tem nome. Pode ser “Por aqui, por ali”. (Risos, seguidos de uma performance musical com a voz do jazzista: “paralá, paralá, pá!”). Então, tenho outras coisas para colocar, como alto saxofone, que eu toco também. Estou só esperando a Yamaha… Com a situação de dinheiro do jeito que está, não é? Eu sempre espero um pouco, espero um pouco, espero um pouco…

Mas, então, podemos esperar um novo CD para o ano que vem?

Sim! Vai ser uma coisa diferente, nova. Eu procuro gravar sempre algo que inove.

(Sua esposa completa que ele tocou ultimamente no Brasil com a Orquestra Sinfônica Tom Jobim, em São Paulo, e com a banda de jazz de Diadema, com músicos todos jovens, e que ele ficava muito contente com isso). Ah, ela é francesa. Eu moro lá, com ela. Eu passo de seis a sete meses aqui, e o restante do ano lá. Na França é mais frio, eu não quero mais (risos). Felicidades, para vocês! (E, entre os beijos e abraços atenciosos do fim da entrevista, sua esposa despede-se de forma graciosa, apontando para as duas entrevistadoras e denominando-as Jornalistas – falando com forte sotaque – e dirigindo-se à nossa colaboradora, Laura Luz, denominando-a Cinegrafista).

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