Entrevista com Sara Brandellero

*por Samuel Paiva

A propósito do livro The Brazilian Road Movie: Journeys of (self) Discovery [O Road Movie Brasileiro: Viagens de (Auto) Descoberta], editado por Sara Brandellero, professora da Universidade de Leiden (Holanda), contando com vários autores, tais como Mariana A.C. Cunha, Stephanie Dennison, Tatiana Signorelli Heise, Luciana Martins, Lúcia Nagib, Samuel Paiva, Adriana Rouanet, Darlene J. Sadlier e João Luiz Vieira. Publicação da University of Wales Press, em 2013.

RUA: Vamos começar pelo começo, o título do livro: The Brazilian Road Movie – Journeys of (self) Discovery. Como surgiu a ideia deste projeto? E em que medida podemos compreender a perspectiva de “journeys of (self) discovery” proposta nesta publicação?

Sara: Muito obrigada pela oportunidade de falar sobre este projeto. O projeto do livro surgiu a partir de um simpósio que organizei sobre o tema dos road movies brasileiros, em 2008. Na época, lecionava na Universidade de Oxford. Curioso que quando iniciei com a ideia, várias pessoas me perguntaram se havia road movies brasileiros. Ainda hoje ouço isso. O título surgiu do que entendo como sendo uma das linhas de força dos filmes de estrada brasileiros, ou seja, o fato de que a viagem amiúde se torna oportunidade para refletir sobre o pais, desde dentro. Há uma perspectiva que poderíamos definir de pós colonial na escolha do título.

RUA: Um dos aspectos instigantes propostos no livro diz respeito ao seu questionamento em relação a certos, digamos, mitos, criados em torno do road movie, por exemplo, de que esse gênero surge nos anos 1960 nos EUA com filmes como Easy Rider (Dennis Hopper, 1969), considerado “epítome do gênero”. Poderíamos pensar que os road movies brasileiros apontam para outras direções historiográficas ou mesmo teóricas acerca do road movie?

Sara: Uma das minhas hipóteses é justamente a de que chegar a uma definição monolítica sobre o que é um road movie é problemático. O próprio gênero é híbrido – comédia-road movie, buddymovie-road movie, etc. – encontramos diferentes combinações no nível narrativo, por exemplo. É verdade que o road movie norte-americano é geralmente considerado como o que cristaliza as características do gênero: estética do movimento, veículo como símbolo de libertação e empoderamento, viagem como busca da contracultura, etc. Porém, há diferentes expressões do gênero e recentemente o livro de Rascaroli e Mariezka, intitulado The European Road Movie,  argumenta que também é possível estar “on the road in Europe”. David Laderman, um dos principais estudiosos do gênero, identifica o movimento em direção à contracultura como sendo uma das principais linhas de força do road movie americano. No Brasil, poderíamos dizer que os road movies articulam um movimento centrípeto, de uma maneira ou de outra os filmes nos levam a refletir sobre a sociedade. É uma das questões tratadas no meu livro, ou seja, de como o cinema brasileiro tem dialogado com o gênero road movie produzido fora. De uma maneira geral podemos dizer que o road movie brasileiro muitas vezes transcende o âmbito individual para articular uma crítica, uma reflexão sobre a sociedade. No Brasil, parece-me que as viagens funcionam como oportunidade de dirigir um olhar crítico sobre questões históricas e contemporâneas, tais como o próprio impacto do desenvolvimento, da construção de estradas no meio ambiente, comunidades indígenas, por exemplo. O filme Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1974), é um exemplo desta tendência.

RUA: Na “Introdução” do livro, a citação de filmes do primeiro cinema, como L’Arrivée d’um train à la Ciotat (dos irmãos Lumière, 1895) ou Voyage dans la lune (Georges Méliès, 1902), nos leva a pensar em origens bastante remotas do gênero road movie. No caso do Brasil, há, por exemplo, os filmes de Silvino Santos, que são discutidos por Luciana Martins no primeiro capítulo do livro (intitulado “Silvino Santos and the Mobile View: Documentary Geographies of Modern Brazil”). Martins diz que, embora filmes como No país das amazonas (1922) ou os fragmentos de Terra encantada (1923) não possam ser considerados road movies tout court, eles expressam algo relacionado ao gênero, não é isso?

Sara: Parece-me muito produtivo pensar na genealogia do que hoje chamamos road movie. No Brasil, os filmes de Silvino Santos representam um exemplo significativo disso, pois refletem a interligação do cinema com a experiência da modernidade – a que a própria experiência do movimento está ligada – e a questão da penetração/ mapeamento da nação. Modernidade (e sua contradições) e nação são preocupações centrais até hoje nos road movies.

RUA: O segundo capítulo do livro (“Paths of Brazilian Road Movies in the 1950s”) foi escrito por mim e dedicado a três filmes: Sai da frente (Abílio Pereira de Almeida, 1952), A estrada (Oswaldo Sampaio, 1955) e Pé na tábua (1957). De uma certa forma, eu procurei discutir esses filmes em um esforço de considerá-los segundo uma linha de coerência que envolve aspectos como a transição da população brasileira do campo para a cidade, a instalação da indústria automobilística em São Paulo e as políticas desenvolvimentistas de Getúlio Vargas e JK, inclusive, a inauguração de Brasília como capital do país. Você também considera os anos 1950 como um ponto de inflexão considerável no debate sobre os filmes de estrada no Brasil?

Sara: Sim, concordo com a sua hipótese e sem dúvida estes filmes articulam tensões (mobilidade-estaticidade, tradição-modernidade etc.) que persistem até hoje. Certamente os anos 50 e o seu contexto histórico-cultural foram um momento definidor no desenvolvimento do gênero no Brasil. Diria que depois os anos 70 representam um outro marco, em que o cinema voltou a pensar estas questões dentro de um contexto de política desenvolvimentista do governo militar da época. Há alguns filmes emblemáticos nesse periodo, tal como o próprio Iracema (de Bodanzky e Senna).

RUA: O terceiro capítulo do livro (“Bye bye Brasil and the Quest for the Nation”) é de sua autoria e os argumentos focam o filme de Cacá Diegues (1979) como ponto de partida para questões diversas referidas à nação e personificadas nos personagens da Caravana Rolidei: Lord Cigano, Salomé, Ciço, Dasdô e Andorinha. Dentre os vários pontos discutidos no texto, há a questão das “mulheres na estrada” que, como você afirma, têm um papel central no filme. Em sua percepção, poderíamos considerar esse filme na chave de uma ruptura com uma cultura patriarcal hegemônica?

Sara: A questão da mobilidade feminina é uma chave importante quando discutimos os road movies. Tradicionalmente, quem está em trânsito são os homens, protagonistas do seu destino na estrada, são homens que tradicionalmente estão no volante. O corpo feminino tem sido também ligado a ideologias e discursos colonialistas de conquista e dominação. No capítulo, refleti sobre estas questões a partir do personagem da Salomé, e a representação de seu corpo, como “mapa” da nação. Diria que é um filme que critica a cultura hegemônica patriarcal, não acho que necessariamente proponha soluções inovadoras, mas certamente põe estas perguntas na mesa. Como digo no final do capitulo: a Salomé pega no volante no desfecho do filme, num ato de suposto empoderamento, mas o seu destino é incerto.

RUA: No capítulo escrito por Mariana Cunha (“Framing Landscapes: the Return Journey in Suely in the Sky”), sobre o filme de Karim Aïnouz (2006), a questão das mulheres novamente está em pauta, com Hermila (a personagem principal) transitando entre os papeis de mãe e prostituta. Na comparação desse filme com o de Cacá Diegues, que você analisou, o que mudou de lá para cá na estrada das mulheres? Também poderíamos lembrar, a propósito, de outro road movie dirigido por Karim Aïnouz (e codirigido por Marcelo Gomes), Viagem porque preciso, volto porque te amo (2009), que apresenta um protagonista homem mas invisível…

Sara: Você coloca uma questão importante. A relação de gênero, no sentido da relação entre genre e gender, é bastante produtiva. Quem viaja? E por quê? Qual a relação da identidade feminina ou masculina com a experiência do trânsito? Sim, parece que o cinema coloca, problematiza estereótipos sexuais através do road movie também (Thelma and Louise, por exemplo) e o filme do Aïnouz também problematiza a masculinidade em trânsito. No entanto, estamos longe de ter figuras femininas realmente empoderadas. A Suely determina o seu caminho mas continua sendo uma personagem em crise.

RUA: Já o capítulo escrito por Tatiana Signorelli Heise (“Road to Riches: Migration and Social Mobility in 2 Filhos de Franscisco”), sobre o filme de Breno Silveira (2005), guarda uma conexão com os textos anteriores, na medida em que também destaca a questão do “sertão” como um aspecto emblemático de filmes de estrada no Brasil, ainda que numa perspectiva diferente daquela do Cinema Novo, em filmes como Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Iracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky, Orlando Senna, 1974) e mesmo Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979)…

Sara: O sertão é um espaço icônico no cinema brasileiro. Sendo revisitado em filmes contemporâneos, como também Central do Brasil. Interessante que tanto o filme de Salles como o de Silveira associam o sertão a um espaço de resolução de conflitos, de promessa futura, regeneração, e também tradição, história, família. Ou seja, ambos representam uma tendência nos road movies que não se encaixa no modelo teórico proposto por Laderman no sentido de contracultura.

RUA: A perspectiva de revisão do Cinema Novo, por sinal, está presente no capítulo escrito por Adriana Rouanet (“God is Brazilian: a Re-Examination of Cinema Novo and Self”) sobre outro filme de Carlos Diegues (Deus é brasileiro, 2003). Em sua análise, Rouanet faz menção à literatura picaresca, e seu caráter satírico, como um dos aspectos trabalhados por Cacá Diegues para marcar nesse filme sua própria revisão em relação ao período do Cinema Novo. Mas será que não daria para pensar em Bye bye Brasil também na chave satírica ou picaresca?

Sara: Sim, o capítulo de Rouanet propõe uma leitura instigante, colocando uma dimensão profunda no filme do Diegues no sentido de uma revisão do propósito e alcance do Cinema Novo. Em Bye bye Brasil, a sátira certamente é fundamental, há também elementos picarescos. Diria que a dimensão picaresca está aí para articular a crítica social e política do filme. Na realidade, não há uma subversão fundamental da ordem no final do filme, a dimensão picaresca existe em nível satírico, a resolução final tende ao restabelecimento da ordem.

RUA: Até aqui, todos os capítulos mencionados fizeram parte da primeira parte do livro. A segunda parte, que está mais voltada a questões internacionais, começa com um texto de Darlene J. Sadlier sobre filmes de Walter Salles (Terra Estrangeira, 1995; Central do Brasil, 1998, e Diários de Motocicleta, 2004). E segue com o capítulo de Lúcia Nagib (“Back to the Margins in Search of the Core: Foreign Land’s Geography of Exclusion”) sobre Terra Estrangeira (codireção de Walter Salles e Daniela Thomas). Sintomaticamente, as duas autoras começam seus argumentos mencionando a crise nacional instaurada pelo governo Collor, momento de rever a categoria nação em face de um mundo globalizado. E Lúcia Nagib fala de uma dialética centro/periferia que permeia o filme que ela analisa (no caso partindo da reflexão sobre Portugal e suas ex-colônias, como o Brasil, aspecto trabalhado em Terra Estrangeira). Mas talvez pudéssemos pensar nessa dialética centro/periferia como uma questão que perpassa outros road movies de Walter Salles, não?

Sara: Certamente é uma questão que retorna nos filmes de Salles, tanto num contexto nacional como transnacional. Parece que há uma preocupação para identificar o lugar da identidade. Ao mesmo tempo as viagens nos filmes de Salles projetam uma visão caleidoscópica, plural, da identidade.

RUA:  O capítulo escrito por Stephanie Dennison (“Sertão as Post-National Landscape: Cinema, aspirinas e urubus”) volta à questão do sertão, mas explorando o filme de Marcelo Gomes (2005) na chave das identidades pós-nacionais, no caso, a partir dos personagens do sertanejo Ranulpho e do alemão Johann. Ao estabelecer aproximações entre esses personagens, o filme na verdade discutiria menos a nação e mais o mundo, inclusive, na perspectiva da guerra mundial?

Sara: A leitura de Dennison analisa o sertão dentro de um contexto de sua importância enquanto símbolo nacional para o Cinema Novo. No filme de Gomes, o sertão é um espaço em que as identidades nacionais se diluem. Na estrada, o que emerge com mais destaque são as relações afetivas para além de definições de identidade nacional. É revelador que o Gomes tenha escolhido este espaço -o sertão- para problematizar definições rígidas e oficiais de identidade. Com isso, ele estabelece um diálogo com toda uma tradição cinematográfica brasileira, discutindo também o papel do cinema num contexto cultural brasileiro. O capítulo de Dennison levanta questões neste sentido.

RUA: No último capítulo do livro (“Women on the Road: Sexual Tourism and Beyond”), João Luiz Vieira estabelece um cotejo entre Iracema: uma transa amazônica (Jorge Bodanzky, Orlando Senna, 1974) e Anjos do Sol (Rudi Langeman, 2006). Aqui é interessante lembrar que é justamente uma imagem do filme Iracema que está na capa do livro. Como se deu essa escolha? Está relacionada ao fato de que o filme de Bodanzky e Senna, como bem nos lembra João Luiz Vieira, questiona um mito de fundação do Brasil, no caso, o romance de José de Alencar?

Sara: Sim, fiquei extremamente grata ao Jorge Bodanzky por ter autorizado o uso da imagem, que capta bem vários fios temáticos, ideológicos, discutidos no livro. Iracema é um filme que remete a mitos de fundação e os põe em questão. É um filme que se propõe a re-descobrir o Brasil, assim que é central para o propósito e a hipótese geral do livro. É importante pensar como a questão do gênero, ligada à identidade indígena, é central. Uma mulher na estrada desestabiliza conceituações monoliticas de identidade nacional. É um filme importantíssimo. O ponto de vista do que chamamos hoje de cinema ecológico – de certa forma demonstra bem a relevância e o potencial do gênero road movie e a carga ideológica que identificamos neste gênero no Brasil. Se existe uma percepção bastante generalizada do road movie como um gênero “leve”, de entretenimento apenas, frívolo, até, este filme vem demonstrar claramente a sua complexidade e potencialidade.

* *Samuel Paiva é doutor em Comunicação pela ECA-USP e professor adjunto do Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar, onde atua no Curso de Imagem e Som e no Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som.

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