Festival Varilux de Cinema Francês 2023

A seguir, você encontrará as críticas de cada um dos filmes exibidos no Festival Varilux de Cinema Francês de 2023, cujas projeções ocorreram no Cine São Carlos, em São Carlos. A cobertura do festival foi realizada pela equipe de Redação da Revista Universitária do Audiovisual (RUA), contando com as contribuições de Vinicius João, Luiz Carlos Borralho e João Cardoso. Promover festivais e mostras como o Festival Varilux de Cinema Francês no interior do estado de São Paulo constitui uma chance para enriquecer a vivência cultural da comunidade local. Ao descentralizar tais eventos para áreas além da metrópole, não apenas se amplia o acesso ao cinema, mas também se desempenha um papel essencial ao impulsionar a construção coletiva de um repertório cinematográfico mais abrangente. Esse é um movimento importante em direção à democratização do acesso à cultura e ao lazer nas cidades do interior, um direito fundamental muitas vezes negligenciado por diversos agentes públicos e privados.

Gabriel Pinheiro, Coordenador de Redação da RUA

Maestro(s) (Sessão de Abertura) – Por Athos Rubim (07/11 – 19h)

Com direito a champagne, salgadinhos e petiscos, o Festival Varilux de Cinema Francês 2023 iniciou-se com um coquetel de abertura no Cine São Carlos. O filme para a sessão comemorativa gratuita foi Maestro(s) (Bruno Bauer Chiche, 2022). O evento foi extremamente agradável e juntou todos os tipos de frequentadores do cinema: estudantes, idosos, alunos de francês… Já o filme, é simples, porém muito divertido.

A trama gira em torno de uma dupla de regentes de orquestra, um pai e um filho. O embate entre os dois é o que movimenta a narrativa, pois, apesar do parentesco, eles não se dão bem. O pai, François Dumars (Pierre Arditi), é um homem clássico, que valoriza a harmonia e estabilidade da música, enquanto Denis Dumars (Yvan Attal), o filho, é jovem e desafiador, priorizando a paixão e os sentimentos presentes nas composições.

O filme abre com uma cerimônia de premiação, onde Denis é condecorado com um prêmio Victoire de la Musique Classique, sua agente (e ex-esposa), sua namorada, seu filho e sua mãe estão todos presentes para prestigiá-lo. Porém, seu pai opta por ficar em casa, desmerecendo o prêmio. 

O grande conflito aparece pouco tempo depois, quando François recebe um convite para ser o maestro oficial do La Scala de Milão. No entanto, isso só aconteceu pois a assistente do diretor do teatro se atrapalhou e ligou para François quando deveria ter ligado para Denis. O resto do filme então se trata de Denis ponderando se deve aceitar o cargo, em detrimento de seu pai. Porém, é também aqui que o filme se perde, pois, depois de passar mais da metade do tempo desenvolvendo esse conflito, ele é resolvido muito rapidamente. Quando Denis aceita o cargo, em sua primeira apresentação, François aparece como um maestro convidado e os dois conduzem a orquestra juntos. A falha existe na forma como isso é feito, pois do momento de conflito para o momento de resolução existe apenas um corte, esperando-se que o espectador fosse se chocar com a presença de François no palco de Denis, mas o que aparece é só a falta de cuidado no desenvolvimento da trama.

Os destaques do filme são o elenco, especialmente Pierre Arditi como François, que faz um excelente trabalho, e as sequências orquestrais. A montagem nesses momentos é primorosa, mergulhando o espectador no momento, fazendo com que se possa não apenas ouvir os instrumentos, mas sentí-los, e não individualmente, mas como um conjunto: a orquestra. 

No final, como antes mencionado, o filme é simples, e claramente não agradará os cinéfilos mais ávidos. Mas para o público variado desta sessão de abertura, foi mais que o suficiente para instigar os aplausos.

 ★★★½

O Renascimento – Por Vinicius João (09/11 – 19h)

        Servindo de sessão inaugural para todo o restante da programação do Festival Varilux de cinema francês, a comédia ‘Un coup de maître’ (2023) (no português: “um golpe de mestre”) do diretor Rémi Bezançon, foi exibida às 19h. O filme se concentra no relacionamento entre um pintor à moda antiga e seu amigo dono de uma galeria de arte; a dificuldade do pintor em se adequar à mercantilização das obras de arte, os valores que norteiam a produção artística, a indústria cultural e pinturas como forma de investimento e moeda de troca (daí as tentativas de gracejo com os NFTs), são algumas das discussões levantadas, mas nunca discutidas pelo filme do francês.

A produção propõe um drama de fundos existenciais sobre a ruína de um pintor, mas tudo o que se encontra são tentativas de extrair comédia da relação entre os dois atores protagonistas. É uma comédia sem graça, monótona, apoiada por todo o filme em diálogos extensos (e histéricos) e sequências de campo/contracampo da forma mais padronizada possível. Sem gags visuais, esculhambação, expertise cênica, improviso ou quebra de expectativa, toda a estrutura do filme consiste em repetições de um mesmo modelo de situação, de um mesmo esquema de atuação, de uma preguiça que não se assume. Filme que espanta a juventude; apesar de nem mesmo os mais velhos (praticamente todos na sessão eram pessoas idosas) terem deixado escapar uma gargalhada ou um riso frouxo sequer.

O diretor Rémi e toda a equipe de produção ainda tentam um cuidado maior com as cores, com a iluminação controlada das cenas, com a higiene visual e toda a destreza técnica que o digital possibilita, mas que só torna o filme piegas e faz não passar despercebido ao espectador todas as fraquezas do desenvolvimento dramático. É uma direção de seriado para streaming, de um quê publicitário. Tipo de produção de “filmmaker”, não diretor, muito menos cineasta. E é uma pena saber que um filme tão inofensivo possa estar na seleção do Varilux.

Crônica de uma Relação Passageira – Por Athos Rubim (10/11 – 19h)

Infelizmente, Crônica de uma Relação Passageira (Emmanuel Mouret, 2022) não é um bom filme. A produção tenta evidenciar a volatilidade das relações modernas, líquidas, como propõe Bauman, através de um casal Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne), porém acaba se tornando tão raso e vazio como aquilo que está retratando.

A começar pelos personagens, totalmente anti-carismáticos que iniciam sua relação através de uma traição, já que Simon é casado. Porém, isso não parece abalá-los, muito pelo contrário, é algo tratado com extrema naturalidade, como se fosse o esperado e o correto. Entretanto, o filme perde seus personagens na sua decisão de priorizar a superficialidade dessa relação, pois, assim como eles não chegam e a se conhecer de verdade, o público também não pode alcançar as verdades dessas pessoas. Isso acaba tornando a experiência de acompanhá-los extremamente chata e apática.

A direção do filme também é nada inventiva, com decisões simplórias e batidas, como por exemplo zooms para momentos de realização dos personagens. É fato que, em um filme bom, esses artifícios não incomodariam tanto,  passando despercebidos, mas no filme de Emmanuel Mouret chamam atenção. Aliado a isso, alguns dos planos parecem ter sido escolhidos por alguém que viu três filmes cult e se acha capaz de ser cineasta. Em muitas das cenas, os personagens estão emoldurados por paredes ou corredores, algo que poderia ser interessante se o filme entregasse algo para ser interpretado junto a isso, porém, da forma como é feito só é possível entender os personagens como presos nesses ambientes e incapazes de serem alcançados pelo espectador.

Já quando se trata da trama geral do filme, as coisas ficam ainda piores. Logo de início, somos apresentados ao casal e, como já dito anteriormente, ao fato de que Simon é casado. O filme então segue a relação dos dois através de fragmentos de tempo curtíssimos em dias variados durante vários meses. Esse esquema contribui para o problema central da produção, ela não permite que o espectador alcance os personagens em um nível emocional. Ainda por cima, já para o fim da narrativa, os dois resolvem incluir uma terceira pessoa na relação, Louise (Georgia Scalliet), que acaba se apaixonando por Charlotte. Isso faz com que Charlotte deixe Simon para ficar com Louise, outra trama que é extremamente mal desenvolvida. Além disso, o filme se utiliza de todos os clichês e estereótipos possíveis quando se trata dos costumes franceses, sendo o mais claro, a naturalidade do adultério.

Durante todo o filme, é impossível não relacioná-lo com Passagens (Ira Sachs, 2023), que também trata sobre a liquidez das relações modernas. Porém, no filme de Sachs, acontece justamente o que é impossível no filme de Mouret, o público é capaz de se conectar com os personagens em tela, possibilitando a empatia e despertando o interesse pela narrativa. O filme de Mouret, infelizmente se perde e, ao tentar retratar a superficialidade, acaba tornando-se superficial.

★½

Maestro(s) – Por Júlia Machado (11/11 – 17h)

Apesar de uma trilha sonora encantadora e da imersão dentro das salas teatrais, “Maestro(s)” traz uma história romantizada e até certo ponto previsível. O drama envolve a rivalidade entre Denis (Yvan Attal) e o seu pai François (Pierre Arditi). Ambos estão na carreira musical, que é permeada de intrigas, mesmo que o filme não se aprofunde tanto nelas, dando ênfase aos maestros e sua relação de pai e filho. Além disso, o longa também recheia a vida desses personagens, trazendo alguns pequenos conflitos, mas que em suma, servem apenas para reforçar o conflito entre Denis e François.

Seguindo uma história razoavelmente simples, o conflito do filme acontece quando o convite para reger em um importante concerto é dado para François e não a Denis. A partir disso, o filme segue trabalhando um pouco sobre como as personagens lidam com a situação, com o ego de cada uma, isso sempre mesclando as relações pessoais, ou íntimas, das personagens.

O desfecho final do longa ocorre de maneira madura e racional, com ambos sendo os regentes da orquestra. Essa ideia apaziguadora dá à obra um ar bonito, afinal, todos terminam felizes e sem remorsos, porém reflete um senso muito idealista. Dessa forma, o filme no geral é simples, mas devido ao seu tom romântico, é uma ótima opção para quem opta por obras mais otimistas, visto que é possível extrair um pouco de reflexão pessoal dos conflitos apresentados.

⭐⭐⭐

Orlando, Minha Biografia Política – Por Athos Rubim (11/11 – 19h) 

Com diversas homenagens estéticas à obra de Jean-Luc Godard, “Orlando, Minha Biografia Política” (Paul B. Preciado, 2023), é o filme de estreia de Paul B. Preciado, filósofo e ativista queer contemporâneo. Nesta obra, Preciado se inspira no livro “Orlando: uma Biografia” de Virginia Woolf. No livro, Orlando é um aristocrata inglês que depois de um sono profundo acorda em um corpo feminino. Sendo assim, o diretor acredita que os Orlandos do mundo moderno são as pessoas trans e não-binárias, e faz então uma adaptação dessa história.

O filme é muito interessante pois une o documentário com a ficção com muita engenhosidade. A todo o momento o espectador é convidado a refletir sobre o que está assistindo, se é algo roteirizado ou espontâneo. Além da narrativa ficcional, o filme conta também com momentos de entrevista, quando pessoas trans e não-binárias contam um pouco sobre suas experiências, seja com a medicina, psicanálise, discriminção e vários outros aspectos. A transgressão do limite entre documentário e ficção também está presente nesses momentos, misturando as pessoas com os Orlandos que elas estão interpretando, o que engrandece ainda mais a obra e instiga o público.

A única crítica aqui vai aos momentos em que o filme não se aprofunda de fato no discurso proposto. Deixando a discussão um pouco simples, pontuando coisas que já foram muito faladas e não precisavam ter sido ditas novamente. A repetição também atrapalha a obra quando o diretor insiste que cada ator se apresente e apresente seu personagem olhando diretamente para  a câmera. Esse mecanismo foi interessante nos primeiros usos, porém, depois de ter sido utilizado várias vezes, acabou se tornando repetitivo, desconectando o espectador, além de não contribuir muito ao conjunto.

Porém, esses pequenos deslizes não diminuem o filme. A obra de Paul B. Preciado traz à tona uma discussão importantíssima e que acaba não sendo tão abordada quanto deveria. E isto, o faz com maestria, desafiando as concepções de gênero não só na sociedade mas também no cinema, desfilando sobre a linha tênue entre ficção e documentário como se fosse uma passarela.

★★★★½

Disfarce Divino – Por Júlia Machado (12/11 – 17h)

O recente filme de Virginie Sauveur é uma obra-prima. Dentro de uma trama que traz suspense investigativo, o filme torna-se hipnotizante, além da forma como trata de certos paradigmas da igreja católica em um tom sensível ao ponto de gerar questionamentos internos no público. A obra é tão cativante, que ao abordar os papéis de gênero e os dogmas católicos, não há confusão, existe apenas uma história linear, com retomadas ao passado por meio de relatos falados, que ao passo que avança aumenta a nossa reflexão, assim como a reflexão das personagens, com destaque à chanceler do diocese, Charlotte Rivière (Karin Viard).

Alerta de spoiler! Sim, temos uma padre mulher. No começo do filme somos logo direcionados para a morte do padre Pascal, que aliás, não aparece diretamente no filme, mas é sempre mencionado como uma figura de admiração, seja pela sua bondade, ou por seu conhecimento. Diante dessa perda, a protagonista Charlotte se encontra em uma situação apertada ao estar ciente do atestado de óbito da padre, onde consta que ela era do sexo feminino. Com um passado complicado, que será destrinchado posteriormente, ela recorre ao Monseigneur (François Berléand) para relatar o ocorrido, e como a igreja iria assumir aquilo, e se iria assumir. O desejo de abafar o caso é maior, e assim o filme prossegue uma extensa investigação a fim de descobrir como Pascal chegou ao seu posto.

Durante essa investigação, nos aproximamos da vida de Charlotte, que apesar de parecer bem, passa por complicações com o seu filho de quinze anos, Thomas (Maxime Bergeron). O filme apresenta apenas duas causas para o problema psicológico do garoto, sendo a vida ocupada da mãe, consequentemente a sua ausência, e o desconhecimento sobre a sua origem paterna. Ao desenrolar do filme, é revelado que o pai do garoto é um padre e optou por abafar o caso com sua mãe, a fim de continuar no cargo. Aqui nos vemos diante de outra ruptura de dogma católico que a história provoca, o que provoca o ápice de frustração do filho, que recorre a uma tentativa de suicídio. Felizmente o garoto sobrevive e não guarda julgamentos ou rancor da mãe, e finalmente esquece seu pai, visto que o mesmo o abandonou. Nesta segunda ruptura, também é importante a forma como Charlotte narra o ocorrido, a personagem não parecer falar como se tivesse cometido um pecado tremendo, afinal, eles estavam apaixonados quando a gravidez aconteceu.

Essa falta de culpa por parte de Charlotte é posta novamente no fim do filme, quando ela parece ver o ato da padre como algo revolucionário, e ainda argumenta isso com o Monseigneur, que de forma conservadora, reprime as opiniões dela. Por fim, acho significativo reconhecer que a padre, por mais que não se identificasse com o gênero masculino, se medicava com hormônios e utilizava nome e pronome masculino para conseguir exercer seu cargo dentro da igreja católica, sem que pudesse levantar suspeitas. Isto sem falar na carta póstuma que ela deixa, onde relata que não está sozinha; há mais mulheres exercendo cargos masculinos dentro daquela instituição. Com isso, o filme finaliza com essa discussão que por ser tão ampla, gera cada vez mais questionamentos.

⭐⭐⭐⭐⭐

Anatomia de uma Queda – Por Arthur Matsubara (12/11 – 19h) 

O ganhador da Palma de Ouro de 2023, “Anatomia de uma Queda”, é um espetáculo de atuação e direção, com um roteiro extremamente inteligente que, mesmo apresentando um claro problema de ritmo no terceiro ato, extrai o melhor de um drama de tribunal.

O som do filme remete muito ao estilo de Yorgos Lanthimos, com um silêncio incômodo seguido por uma explosão de música clássica que assusta o espectador, mesmo quando não há ação na tela. Isso cria uma memória sonora específica, utilizando uma música que estava presente no dia da queda, e que acompanha a trama, ressignificando-a a cada uso.

Justine Triet não busca reinventar a roda; ela conta a história no molde “padrão” de um drama de tribunal, seguindo cronologicamente os fatos, ou seja, a morte seguida pela investigação que culmina no tribunal. A investigação é apresentada de forma crua, e o roteiro deixa claro logo no início do segundo ato que a verdade não é necessariamente o foco do longa, mas sim todo o contexto da família que levou a morte do marido. Durante o segundo ato, o julgamento se torna o foco da trama, sem negligenciar a investigação, caminhando juntos para um jogo de argumentação baseado em teorias, que são derrubadas ou criadas a partir de pistas encontradas na investigação. 

No início do filme, é evidenciado que a decupagem se mantém ambígua, alternando entre uma abordagem clássica e, em alguns momentos, adotando a estética de uma encenação similar a uma reportagem. Essa ambiguidade, somada à própria incerteza dos fatos apresentados, gera uma dúvida no espectador, criando uma necessidade intrínseca de antecipar os acontecimentos que, em momentos cruciais, essa antecipação é subvertida, moldando assim a nossa descrença ou crença na protagonista.

No final do segundo ato, há uma cena arrebatadora (o clímax do filme) que representa um confronto crucial do casal, sendo o ponto chave do julgamento. Até este ponto, o clímax ser tal conflito segue a lógica previamente estabelecida, dando foco às questões familiares e não com o veredito. No entanto, essa cena se destaca de maneira tão intensa que acaba por prejudicar o ritmo do restante do filme. O filme não consegue recuperar a mesma energia, resultando em um terceiro ato morno.

Mesmo com essa ressalva, “Anatomia de uma Queda” é notável pela sua sensibilidade e violência, méritos de uma direção inteligente e atuações impecáveis, destacando especialmente a brilhante Sandra Hüller, que carrega todo o peso do holofote necessário para que o filme se mantenha, quase por completo, em um nível de excelência.

★★★★½

Almas Gêmeas – Por Júlia Machado (13/11 – 19h)

Almas Gêmeas é um filme complicado e confuso que na tentativa abordar o tabu do incesto, acaba mal-empenhado, demonstrando ser um filme fraco e insuficiente por si só. Dirigido por André Téchiné, o filme retrata a trajetória de amor que David (Benjamin Voisin) passa por sua irmã Jeanne (Noémie Merlant). Infelizmente, essa trajetória é construída de uma maneira abusiva por parte de David, visto que Jeanne deixa sempre evidente o desejo de não fomentar um relacionamento amoroso entre eles, mas sendo sempre caridosa em manter a relação parental.

O filme, inicialmente, tenta fazer com que simpatizamos com o romance através da amnésia de David, decorrida após o incidente no conflito de Mali do qual ele fazia parte. De fato, o personagem passa por um grande trauma e um longo período sofrido de recuperação. Porém, o filme faz uma seletividade, no mínimo duvidosa, das memórias que foram afetadas pela personagem, não havendo racionalidade nenhuma em certas cenas. Como que David consegue preparar uma arma, mas é incapaz de ouvir um não de sua irmã? Dessa forma, o protagonista se torna tão insuportável, visto que ele também não faz um esforço para que seja dado um “fim” em sua amnésia. Para além disso, quando a ex-namorada de David tenta se aproximar dele, ele acaba a esculachando, e mesmo sua irmã sempre se posicionando contra a ideia de um relacionamento romântico entre os dois, o personagem persiste na sua chatice. Se por um lado o filme gostaria que tivéssemos pena dele, o único sentimento que tive foi raiva.

Agora sobre Jeanne, ela passa todo momento sendo cuidadosa e prestativa com seu irmão, pois de fato sente um amor fraternal por ele e se preocupa com a sua saúde. Dessa forma, não a vejo tomando atitudes erradas. Ao contrário de seu irmão, ela faz de tudo para que ele retome as suas memórias, que para ela são valiosas; e por mais que essas tentativas de combater a amnésia de David sejam dolorosas para ele, é difícil sentir a dor dele, porque a simpatia de Jeanne em voltar ao que era antes é muito agradável. Quando ela relata o caso que os dois tiveram no passado, ela não parece demonstrar arrependimento, mas nem por isso quer que eles virem parceiros românticos agora. A posição dela em todo o filme é muito lógica e eficiente, sendo uma personagem agradável. Ela, Marcel (André Marcon), dono da casa e a fotografia são os únicos elementos que salvam, devido ao filme estar sob a perspectiva de David, o personagem mais tediante e mal-agradecido do longa.

⭐⭐1/2

A Musa de Bonnard – Por Gabriel Pinheiro (14/11 – 19h)

O “não dito” no cinema pode se manifestar de várias formas. Bergman sabia muito bem como fazer isso ao colocar Liv Ullmann em primeiro plano; os olhos dela pareciam sempre querer expressar algo que estava engasgado. O mesmo aconteceu com Kieślowski e suas personagens, especialmente na vertente francesa de sua filmografia. Através de cenas em que o toque e o corpo eram focados, exclamavam-se juras de amor e ódio. É possível compreender muito sobre uma personagem pelo que não é dito por ela, e o cinema sempre teve o dom de capturar e expressar isso de maneiras muito criativas.

Em “A musa de Bonnard”, Martin Provost subverte a cinebiografia do pintor francês pós-impressionista Pierre Bonnard ao deslocar o foco para sua companheira, Marthe de Méligny. Ao fazer isso, abre-se um universo de possibilidades para o “não dito”. Afinal, tanto no final do século XIX ao início do século XX quanto, infelizmente, nos dias de hoje, existem muitos desses “não ditos” quando falamos de mulheres que se relacionam ou casam com grandes nomes da arte em geral. Especialmente aquelas que, em algum momento de seu relacionamento, foram as musas desses artistas.

“A musa de Bonnard”, filme de 2023 dirigido por Martin Provost que está sendo exibido no Festival Varilux do Cinema Francês retrata retrata ao longo de cinco décadas a vida do pintor francês Pierre Bonnard, interpretado por Vincent Macaigne e de sua esposa Marthe de Méligny vivida pela atriz Cécile de France. Aquele que era chamado por seu país natal de “o pintor da felicidade” retratou sua esposa em mais de um terço de suas pinturas. Considerado um dos maiores pintores franceses do século XX, Bonnard dedicou-se ao impressionismo e à abstração em suas obras. Para isso, utilizava cores vibrantes e representava cenas da vida cotidiana. Juntamente com outros artistas, ele fundou em 1888 junto com Vuillard, Maillol e Vallatton o grupo de artistas conhecido como os Nabis.

Ao longo de todo o filme, acompanhamos Marthe e seu relacionamento com Pierre. O que começa em um ateliê em Paris, com a moça posando nua para ele, termina em uma noite de amor logo em seguida, revelando uma paixão incontrolável e genuína entre os dois. Como mencionado, o filme desloca o olhar para a parceira do pintor, permitindo a discussão de questões cruciais sobre a vida e o papel legado às mulheres ao longo dos anos. Esse papel muitas vezes envolvia a responsabilidade de resguardar o marido, ser sempre fiel, não atrapalhar seu trabalho, cuidar do lar e, acima de tudo, ser divertida, leve, apaixonada e estar disponível sexualmente para o parceiro a todo momento. 

Todo esse processo acaba inevitavelmente gerando desconfortos contínuos para Marthe, que constantemente se sente deixada de lado pelo companheiro, Pierre Bonnard. A tensão e o cansaço se acumulam ao longo de cinco décadas de idas e vindas desse relacionamento, que parece nunca se concretizar e permanece apenas no campo da fantasia pueril e das brincadeiras, pelo menos na perspectiva de Bonnard. Ele não reconhece ou valoriza todos os sacrifícios que Marthe faz constantemente por ele.

Essas questões vão gerando silêncios cada vez mais ensurdecedores. Os “não ditos” tornam-se a tônica, e o filme reforça isso com uma trilha sonora tímida, especialmente uma composição do violinista minimalista Michael Galasso, que entra em cena toda vez que esse relacionamento escapa para o campo da fantasia que mencionei. No entanto, se a trilha sonora é discreta, os sons diegéticos, como portas batendo, passos, pássaros cantando em uma casa repleta de memórias e, principalmente, pinceladas, são tão ensurdecedores quanto os silêncios de Marthe.

Cada pincelada que Bonnard dá em seus quadros parece representar uma parte de Marthe que se esvai. Não é que ela inveje o companheiro ou não queira que ele trabalhe, mas cada uma daquelas pinceladas simboliza momentos de sua vida se perdendo na carreira de Bonnard e se desvanecendo dentro dela mesma, a ponto de se tornar irreparável. O diretor Martin Provost e a equipe de som de “A musa de Bonnard” dedicaram-se de forma intensa para capturar esses sons das cerdas do pincel de Bonnard arrastando no tecido da tela, tornando-os praticamente carrascos da protagonista do filme, que ironicamente está sempre sendo deixada de lado pelo artista.

Os olhos cansados da atriz Cécile de France começam a expressar a dor do tempo passando, das oportunidades perdidas e dos talentos dela desperdiçados. Ela rouba o filme ao encarnar essa mulher que, no fim das contas, tem uma história muito semelhante à de várias outras, não apenas companheiras e “musas” de artistas. Vincent Macaigne incorpora o espírito livre e alegre de Bonnard com a esperança pueril de um homem que conquistou o privilégio de viver de sua arte, mas que parece não olhar diretamente para as questões mais importantes da vida, pelo menos não cedo o bastante. Conforme o filme avança, Macaigne enfrenta a interpretação de um Bonnard idoso, amargurado, carregando muita culpa nas costas, e o ator se curva para representar esse peso que o próprio Pierre Bonnard impôs a si mesmo com suas escolhas.

Martin Provost constrói uma narrativa excepcionalmente humana, profundamente comprometida com a reconstrução das épocas em que se desenrola, repleta de interpretações envolventes, zelosa em seus diálogos e, acima de tudo, empenhada em transmitir as nuances não verbalizadas por meio de várias sutilezas, destacando-se principalmente no aspecto sonoro. A trama, permeada por elementos românticos, destaca-se por abordar o tema com respeito e a devida seriedade que merece, especialmente ao explorar a vida de um artista e sua companheira. 

Em um momento significativo e muito representativo do filme, Renée, a jovem amante de Bonnard, interpretada de forma brilhante por Stacy Martin, expressa sua admiração a Marthe, destacando-a como um mito na Escola de Belas Artes em que estuda. Afinal, Bonnard imortalizou a “musa” em diversos quadros, constituindo pelo menos um terço de sua produção total. Em um dos instantes em que o não dito se transforma em palavras, Marthe responde de maneira marcante: “Este mito precisa voltar agora para as panelas.”

O Livro da Discórdia – Por Athos Rubim (15/11 – 17h)

Como muitos dos filmes do festival, O Livro da Discórdia (Baya Kasmi, 2023), é um filme simples. Nada sobre a produção é espetacular ou chama muita atenção, porém também, ao assistí-la, nada desagrada fortemente.

A trama gira em torno do escritor Youssef Salem, que acaba de publicar seu primeiro romance, chamado “O Choque Tóxico”. O livro, na realidade, é uma ficcionalização de sua própria vida, com personagens representando os membros de sua família e as pessoas importantes da sua vida. Porém, vindo de família árabe, imigrante na frança, Youssef teve uma criação rígida, e muito do que ele escreveu em seu livro são na realidade as verdades não ditas da família.

O conflito se inicia quando o livro começa a fazer sucesso, pois, os irmãos do autor leem o livro e se sentem profundamente ofendidos pela forma como suas vidas foram usadas de material para o romance. Além disso, o pai de Youssef, o responsável por sua criação rígida, está o tempo inteiro tentando ler o romance, mas é impedido das mais diversas formas por ele. Essa confusão fica ainda maior quando a obra é indicada ao Prêmio Goncourt, um dos mais estimados prêmios literários da França.

O filme se apoia muito em seu tom cômico, que é bem trabalhado. Os jeitos malucos que Youssef consegue impedir com que seu pai leia o romance realmente são engraçados. Dessa forma, o filme se faz muito divertido, porém não tem grandes qualidades além disso.

Indo em direção ao fim, a produção traz um fator dramático importante. Seu pai consegue finalmente ler o livro, e ele tem um ataque cardíaco que o leva ao hospital, vindo a falecer. A família inteira fica extremamente irritada com Youssef. O escritor então resolve não assinar mais seu romance, transferindo os créditos da autoria para outra pessoa. Com essa atitude, o filme tenta dizer que a experiência de ser filho de imigrantes árabes na França é muito universal, como se qualquer franco-árabe de ascendência imigrante pudesse ter escrito o romance de Youssef. Além disso, após esse feito, toda a família resolve contar para a mãe todas as verdades que vinham sendo escondidas.

Em conclusão, o filme é interessante, porém, em sua simplicidade, acaba puxando mais pontas do que é capaz de amarrar. O sentimento que fica ao deixar a sessão é de ter assistido um filme muito divertido, mas que podia ter atingido muito mais.

★★★½

As Bestas – Por Júlia Machado (15/11 – 19h)

O filme “As Bestas”, de Rodrigo Sorogoyen, é sensível, tenso e um retrato muito fiel da realidade. Em resumo, o longa mostra a vida de um casal francês maduro que se muda para uma pequena vila, muito pobre, na Espanha. Lá eles acabam entrando em desacordo com a população local, principalmente com os seus vizinhos, por diversas razões que aos poucos vamos descobrindo. O que parece ser xenofobia, acaba também sendo um desencontro da diferença de classes, consequentemente a falta de escolaridade e os propósitos divergentes do casal e de seus vizinhos. Mas tudo isso se torna pior quando os franceses acabam não aderindo à construção de uma usina de energia eólica, com o argumento dela não ser ecológica e outros. Isso gera um forte impacto e frustração da dupla de irmãos (os vizinhos), que desejavam a usina devido ao valor razoável (que, para eles, era alto) em dinheiro que eles receberiam por ela. Dessa forma, uma série de ataques pessoais de cunho psicológico e até físico se procedem, por parte dos homens.

Dentro dessa primeira parte do filme, vale destacar a maneira como esses dois “grupos adversários” interagem. Enquanto o casal busca apaziguar o desentendimento, os irmãos continuam com pequenas implicações, como deixar garrafas na varanda, cuspir e proferir uma série de ataques verbais. Tudo isso acaba sendo filmado por Antoine (Denis Ménochet), o marido do casal. Porém, boa parte de suas filmagens se mostram ineficientes ao serem apresentadas para a polícia, que a todo momento é parcial para o lado dos irmãos Xan (Luis Zahera) e Lorenzo (Diego Anido). Nesse aspecto, a esposa de Antoine, Olga (Marina Foïs), acaba não menos ativa na briga, até pedindo para o marido parar com as gravações a fim de diminuir o conflito.

Do meio do filme há os momentos mais críticos, quando Xan e Lorenzo poluem a fonte d’água da horta de seus vizinhos com chumbo e o ataque, por gritos e batidas, que eles realizam ao casal “protegidos” dentro do carro. Vale ressaltar a eficiência com que o filme constrói esses momentos de tensão, através da trilha sonora, dos movimentos de câmera, montagem e pela valorização do som ambiente. Há também um diálogo importante para entender o outro lado, visto que, como espectador, observamos a vivência do casal, não dos irmãos. Após essa cena, é possível compreender o desejo que os moradores locais sentem pela construção da usina de energia eólica. Eles não entendem que o valor oferecido pela empresa é uma pechincha, pois estão fadados da sua condição de vida insalubre e almejam por uma pequena ascensão social, que os levem a ter uma vida como a do casal francês.

Infelizmente, a rivalidade continua e chega ao extremo com o assassinato de Antoine. A morte do francês merece destaque pelo jeito que ela remete à primeira cena do longa, com a morte de um cavalo. Há uma conexão majestosa, e que leva ao pensamento de que talvez essa tragédia, o assassinato, já havia sido pronunciada.

Já na segunda parte para o final, somos levados a observar Olga, que agora viúva, busca justiça pelo seu marido. Sem a ajuda eficiente dos investigadores, ela procura pelo corpo de Antoine, isso sem provocar ameaças ou qualquer outro ataque aos seus vizinhos, mesmo sabendo que eles são os verdadeiros culpados. Além da sua visão, a perspectiva da filha do casal (Marie Colomb) também é trazida à tona, e ao contrário da mãe, ela está completamente enfurecida com a incompetência da polícia sob o caso. Aqui há um conflito de ideias, muito bem construído através da discussão das duas sobre a situação como um todo.

Por fim, Olga encontra o corpo do falecido e notifica a polícia. Não é possível decifrar o que será procedido daí, se os irmãos realmente serão presos e se foi possível identificar a causa da morte. O filme deixa essa questão no ar, apesar de que dentro da visão de Olga, os seus vizinhos serão presos. Acredito que o final casa com a proposta de tratar o real como elemento fundamental do filme, afinal, nunca sabemos quais serão os próximos acontecimentos de nossas vidas, por mais bem-arquitetados que estejam, o futuro é improvável: pode ser justo, injusto, grandioso e assim por diante.

⭐⭐⭐⭐⭐

O Astronauta – Por Luiz Carlos Borralho (16/11 – 19h)

Surgiu uma oportunidade que não me parecia tão comum, e de certo me animava, escrever sobre um filme de um festival de cinema. Sempre tive o estereótipo que festivais eram um evento totalmente nichado, que apenas os cinéfilos iam. Dessa forma, apresentariam salas extremamente vazias e por consequência deprimentes. No entanto, ao chegar na sala me deparei com uma sessão extremamente cheia, indo de encontro com as minhas expectativas. O filme em questão era “L’astronaute” (Nicolas Giraud, 2022), nesse texto vou dar minha opinião sobre esta obra.

A priori, o filme apresenta um título que nos leva a imaginar o grandiosismo da ficção científica e todas as possibilidades que ela consegue nos instigar. No fundo, o filme entrega uma história muito mais minimalista, mas que não deixa de entregar o fantástico que o gênero nos promete. A trama conta a história do engenheiro aeronáutico Jim, interpretado pelo próprio diretor, que possui um projeto de garagem absurdo: construir uma nave espacial, caseira e fazer o primeiro voo tripulado ao espaço amador. Mesmo que constitua um absurdo, a premissa do filme funciona, já que a princípio nem mesmo os próprios personagens acreditam no próprio potencial. Dessa forma, embarcamos em uma aventura que nos atrai pela sua ideia extravagante além do senso de confiança que vai ser construído tanto por nós, quanto pelos personagens. 

Dito isto, o filme se propõe muito mais a discutir os dramas internos do que a própria odisseia espacial, sendo essa apenas um plano de fundo para os conflitos e relações desses personagens. Dentro desse drama, o diretor tenta implicar algumas pautas sobre questões ambientais e pautas motivacionais. Talvez essa seja a maior falha desse filme, pois, muitas vezes, ao tentar conseguir a melancolia, o diretor acaba acertando em frases de autoajuda e reflexões rasas, que não conseguem impactar o espectador, muito menos serem desenvolvidas ao longo da trama. 

No entanto, o filme tem seus momentos de grandiosidade, principalmente em relação à questão espacial apresentada no seu terceiro ato. Vale destacar que uma grande parcela da imersão desse filme se deve à trilha sonora composta pelo artista “Superpoze”, que possui as referências certas. A trilha usa e abusa de sintetizadores que, alocados nos momentos certos, conseguem alcançar a atmosfera futurista  e espacial digna de uma boa ficção científica. Outro fator que funciona no filme é a fotografia, que acerta ao apostar em cores cinzas e azuis, fortalecendo o ambiente melancólico da trama. 

“L’astronaute”, apesar de algumas falhas, principalmente em alguns pontos da trama, se tornou uma boa surpresa. Conseguiu no fim emocionar, ao mesclar de maneira efetiva um bom drama digno dos clássicos da sessão da tarde com uma boa aventura espacial, trazendo a grandiosidade do espaço com intimismo. Talvez a grande questão do filme seja essa contradição, em que a personalidade e a vontade humana de fato consigam alcançar o infinito. 

⭐⭐⭐

Sob as Estrelas – Por Gabriel Favareto (17/11 – 19h)

“Sob as Estrelas” nos conta a história de Yazid Ichemrahen, o chefe confeiteiro que, além das metáforas e signos do título de sua cinebiografia, realmente vive sob as estrelas – tanto aquelas que brilham no céu e o acolhem, quanto aquelas que o apoiaram em sua carreira profissional. O longa, dramático, comovente e com uma generosa pitada de sutileza, mostra a vida do chef e campeão mundial e, mais do que tudo, mostra o brilho que o protagonista sempre carregou dentro de si, ou acima.

Em três períodos distintos, três fases da vida de Yazid são apresentadas: 1986, 2006 e 2013. Em 1986, ainda criança, os duros conflitos de sua infância constroem o passado e os conflitos iniciais da narrativa. Em 2006, já jovem, novos conflitos surgem, e quando não, os antigos aparecem para equilibrar a trama, seja com flashbacks ou acontecimentos presentes. A montagem, que une o passado conflitante com o presente ora agradável, ora conturbado, mostra claramente a repetição que a vida do chef sofre – mesmo com problemas distintos: a força para superá-los ainda é a mesma. É só em 2013 que a alternância de conflitos cessa e, agora com novas aspirações, um novo arco é iniciado.

Não somente a montagem bem-estruturada nos faz compreender a história do confeiteiro, mas também as variadas formas de filmar e o belíssimo jogo de luzes. Em momentos de maior conflito ou simplesmente no cotidiano do protagonista, a câmera na mão se torna uma opção muito utilizada. Contudo, nos momentos em que Yazid faz o que faz de melhor – cozinhar -, a sutileza e o refinamento das gravações são surpreendentes. Não mais a câmera na mão, mas os planos-detalhe estáticos e dinâmicos, movimentos de câmera imersivos e um ritmo completamente diferente da narrativa, como se realmente fossemos transportados para outro lugar, outro espaço, junto com o personagem. Ademais, a iluminação que evidencia o cozinheiro e seus ingredientes e exclui todo o resto do cenário contribui para o efeito.

Outro fator importante a se destacar é a trilha sonora e a marca da contracultura, uma vez que, pensando em um filme construído com tamanha sutileza, espera-se que outra sutileza venha daquilo que escutamos. E realmente acontece. A música clássica é amplamente utilizada no filme, nos momentos em que o personagem cozinha, mas também nos momentos em que vive os dramas de uma vida conflituosa. Enquanto isso, é nos raps que seus problemas são retratados e, num estilo bem mais popular, surgem as músicas que o acompanham em seus dramas particulares e também durante o cozinhar.

Quanto às estrelas, Yazid conquistou sua sorte sendo bom no que faz. Nunca teve em seu encalço um tirano cruel, que o puniu em seus desvios, mas, e sobretudo na infância, também rareou de pessoas em quem se apoiar, até ser adotado. Sempre foi capaz de superar as adversidades por si só, e quando não, por conta do caráter forjado na dificuldade e pelas habilidades excepcionais na cozinha, obteve ajuda de pessoas importantes, seja para sua vida profissional, seja para os íntimos conflitos pessoais. Mesmo numa vida tempestuosa, sempre esteve sob as estrelas, ou ao lado delas.

A Viagem de Ernesto e Celestine – Por Gabriel Favareto (18/11 – 17h)

Pensando em animações voltadas para o público infantil, muitas vezes é difícil encontrar algo além das velhas histórias que, a partir de conflitos simples, se desenrolam grandes aventuras. Narrativas complexas e mirabolantes com reviravoltas épicas e dramáticas acabam ficando de fora, já que o público-alvo prefere ver outra coisa. No entanto, a viagem de nossos heróis, que retornam nesse filme para revisitar o passado, se dirige também para um público muito amplo, diverso e principalmente para aqueles que receiam sair da bolha.

Mesmo a narrativa infantil é capaz de contar de forma comovente a história de dois grandes amigos, em que um deles precisa revisitar seu passado, suas memórias e os medos e receios que deixou para trás para seguir o seu sonho. Toda a viagem é acompanhada por uma delicadeza no ato de mostrar, confortando os olhos, os sentimentos e a imaginação. Até o maior dos problemas possui um lugar de calmaria e aprendizado – e nos conduz para um final alegre e revigorante.

Não somente a história é feita de forma simples para o seu contexto, como a própria animação, que surge carregada de sutileza e criatividade em todos os quesitos. Sejam as cores que, em tons que se mesclam, combinando e se complementando, dão vivacidade à jornada dos protagonistas; seja a animação estilo aquarela, que são um verdadeiro deleite para a visão; seja o momento de abstração que a arte do filme muitas vezes assume – tudo é incrivelmente bem-orquestrado para funcionar com maestria. A arte traz a mesma paz que a solução dos conflitos e a felicidade dos personagens.

É assim, e somente assim, que até mesmo a mais simples história sobre tradições e costumes leva seus espectadores a uma grande saga em Charabie.

Making-Of – Por Arthur Matsubara (18/11 – 19h)

“Making Of”, dirigido por Cédric Kahn, é uma jornada cinematográfica que se destaca por sua abordagem cômica em meio a uma direção simples e um claro amor pelo cinema. O filme, estreado no Festival de Veneza 2023, encanta ao mostrar os bastidores da sétima arte, mas não está isento de desafios, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento do roteiro para um público fora da produção audiovisual.

A simplicidade na direção é, paradoxalmente, uma de suas maiores forças. Kahn demonstra um profundo apreço pela essência do cinema, capturando momentos engraçados de forma despretensiosa, revelando um toque leve e autêntico. A atmosfera de amor pela sétima arte permeia cada cena, proporcionando um deleite aos amantes do cinema.

Entretanto, o filme enfrenta um desafio significativo no terceiro ato devido à proliferação de subtramas. O roteiro se perde ao abrir diversas problemáticas em diferentes direções, resultando em um terceiro ato congestionado e uma resolução que parece tropeçar. Isso prejudica o ritmo construído nas fases iniciais, deixando os espectadores um tanto desconectados do enredo principal. As linhas narrativas entrelaçadas, embora inicialmente promissoras, acabam por se tornar um ponto de confusão. A complexidade excessiva obscurece a mensagem central, tornando difícil para o público manter o foco e a empatia pelos personagens.

No entanto, é importante notar que o filme não é desprovido de méritos. A direção eficaz nas partes mais leves e cômicas contribuem para momentos de puro prazer cinematográfico. A cinematografia, embora simples, se destaca na captura da essência dos bastidores, adicionando um toque autêntico à produção metalinguística, que para quem participou, nem que seja minimamente, de alguma produção audiovisual, se relaciona com a trama.

Em última análise, Making Of é uma experiência cinematográfica ambígua. Seu apreço pelo cinema é evidente, mas a execução do roteiro complexo deixa a desejar, resultando em um terceiro ato que luta para amarrar todas as pontas soltas. Uma obra que, apesar de suas falhas, destaca-se pela sinceridade e paixão de seu diretor, proporcionando momentos de comédia e ternura, mesmo que às vezes desordenados e desconexos, mas que para o público geral, que não realizou efetivamente nenhuma obra cinematográfica, a comicidade, personagens estereotipados e as problemáticas podem perder o seu significado.

Conduzindo Madeleine – Por Gabriel Favareto (19/11 – 17h)

Sob uma lavagem rápida conhecemos um táxi. Esse vai nos conduzir diante de toda uma jornada, uma aventura, vivida pelos dois personagens principais desta história: o taxista e sua passageira. Dentro do táxi há o primeiro, Charles (Dany Boon), e logo de início já entendemos muito de sua personalidade – um taxista frustrado, que ganha mal, com problemas com o irmão, pouco presente para uma esposa e uma filha e que por conta disso adquiriu um temperamento um tanto quanto grosseiro.

Logo após o primeiro, conhecemos a figura central de toda a narrativa: Madeleine Keller (Line Renaud). Essa, uma senhora com seus 92 anos, alegre, abarrotada de assuntos (enquanto o taxista pouco fala), vivências e com destino a uma casa de repouso. Triste pelo seu destino, Madeleine percorre todo o longo caminho até o asilo contando a vida, suas histórias e seus amores, enquanto revisita alguns lugares que a marcaram. Em toda essa trajetória nós espectadores somos ambientados com ótimos e surpreendentes flashbacks e reviravoltas, uma vez que em muitos momentos o drama comovente do filme é interrompido por uma situação trágica ou, mais comumente, tragicômica.

E em toda essa trajetória, não somente a história da vida de Madeleine nos é contada, com seus altos e baixos, mas aos poucos o taxista (que em um primeiro momento era extremamente irritado e recluso) também começa a se abrir, e melhor, uma visível evolução do personagem ocorre enquanto a passageira conquista sua abertura. Grande destaque para a interpretação dos atores que, nos momentos e sentimentos diversos vividos por seus personagens, souberam nos acolher com uma atuação comovente e penetrante.

A história por si só é fascinante, e muito capaz de causar a comoção e angústia esperados em um filme com essa premissa. Madeleine Keller teve uma vida agitadíssima, com amores e frustrações, grandes dificuldades, um bocado de violência e até mesmo participação em movimentos sociais – e em todas essas etapas, sempre soube aprender. Seu conhecimento já na velhice é o principal motor de mudança de Charles e também um tocante motor para o público espectador.

A forma como é contada também é extremamente criativa, uma vez que a escolha de um táxi acaba remetendo aos filmes do gênero road movie, que possuem como uma de suas características o deslocamento de um ou mais personagens de um ponto até outro, enquanto no percurso vemos uma melhoria pessoal, até mesmo espiritual, destes personagens. Além disso, também é característica a representação da quebra da moral masculina, claramente a situação do motorista do táxi, contudo indo além e representando também a já citada melhoria pessoal.

Culpa e Desejo – Por Arthur Matsubara (19/11 – 19h)

Indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2023, “Culpa e Desejo” é difícil de digerir, e nem um pouco amigável ao mostrar de maneira crua o relacionamento entre os protagonistas. Por meio da discussão desse tabu, Catherine Breillat mostra, de forma delicada, uma visão além do julgamento do desejo, incentivando o público a observar sua própria sexualidade.

Para lidar com o adolescente rebelde, Anne tenta agir como uma aliada do jovem, mas a relação entre eles muda na medida que os deslizes inevitáveis culminam para a destruição da família que, de maneira brutal, mostra a realidade ignorando a ética, na mais pura lei da selva, onde o mais forte não só sobrevive, mas subjuga os mais fracos.

Sob o mesmo teto com suas filhas pequenas, ao lado de seu marido, Anne nos enjoa com sua indiferença para com o marido e sua falta de firmeza para com o jovem. À medida que a trama se desenvolve, o adolescente se apaixona pela madrasta, com toda a intensidade de um primeiro amor, e às vezes incontrolável, que não funcionaria sem a brilhante e repugnantemente realista atuação do casal.

O caminho inicial seria criminalizar a relação dos dois, mas o sentimento que a cineasta sugere é o de se colocar na posição de normalidade, não disfarçando, mostrando não só a sua intimidade, mas todo contexto da união e do convívio dia a dia. No trabalho, Anne protege menores de pais e adultos abusivos, mas parece ignorar a aplicação da lei quando se trata de suas próprias decisões. 

Nesse sentido, Catherine Braille nos encoraja a pensar que a justiça e a ética só podem existir na completa exclusão do eu, mas esta liberdade do eu é impossível de se controlar no desejo sensual.

Memórias de Paris – Por Gabriel Favareto (20/11 – 19h)

No início, é difícil compreender do que “Memórias de Paris” se trata. A vida de uma parisiense, seu companheiro e seu gato? Outros fatores ao desenrolar da trama? A verdade então chega abrupta e violenta, e assim como marca a protagonista, também marca o espectador que, agora junto com Mia, irá enfrentar uma jornada intensa pela busca da verdade.

Após o trauma, a personagem acaba por esquecer tudo que aconteceu e, a partir de escassas lembranças que ora ou outra surgem, resolve investigar, seguir as pistas que encontra, em busca não somente da verdade, mas também de entender quem realmente é e o que restou da antiga Mia. As memórias que busca então não são de uma Paris bela, iluminada e romântica, mas sim de uma Paris intimamente devastada.

O que mais surpreende durante toda a narrativa é a forma: como o desenrolar dos fatos afundam o espectador num grande drama psicológico, em que a confusão e a angústia da protagonista são refletidas em planos extensos e muitas vezes desconexos. Os longos movimentos de câmera – em uma espécie de busca, tal como aquela busca pelo passado -, visões, jogos de luz e sombra, enfim, tudo é utilizado para reforçar a agonia marcante do filme. Além disso, os sons e os silêncios são a imersão sonora extremamente compatível e eficaz necessária, e que acaba por afligir (e até mesmo assustar) ainda mais o público.

Mas o fator mais relevante dessa história é que, mesmo acompanhando uma das personagens que sofreu com o atentado, esse acaba por não ser um drama pessoal, apenas uma das inúmeras visões que sobreviveram. Ao longo do filme vemos ainda outras histórias, outras pessoas e outros sofrimentos, cada um compartilhado com uma sensibilidade tocante, enquanto os sobreviventes, além de enfrentar os traumas que ficaram, também unem forças para manter os fragmentos que restaram.

Meu Novo Brinquedo – Por Gabriel Pinheiro (21/11 – 19h)

Num cenário hipotético na França, concebe-se um universo em que um magnata bilionário, proprietário de diversas empresas, e seu filho mimado cruzam caminho com um trabalhador pobre e imigrante originário da África. O referido magnata e seu herdeiro submetem esse indivíduo a condições laborais humilhantes, em contrapartida a uma remuneração que para o homem é extraordinária. À primeira vista, poderia-se supor que tal narrativa assemelha-se a um filme que explora e confere uma tonalidade séria à evidente luta de classes subjacente ao motor propulsor do sistema capitalista. Entretanto, tal suposição não se sustentaria e a surpresa, como foi a minha, seria bem grande. Dá para imaginar uma sala de roteiro onde se propõe a seguinte ideia: “Que tal desenvolvermos uma comédia lúdica na qual o jovem pede ao pai esse homem como presente de aniversário e interage com ele como se fosse um brinquedo, explorando todas as situações humorísticas que tal premissa pode ensejar? O que poderia, possivelmente, dar errado?”

Em “Meu Novo Brinquedo”, Samy desfruta de uma existência contente nos conjuntos habitacionais, cercado por amigos de infância e pela esposa, Alice, que aguarda a chegada do primeiro filho. Com o propósito de atender às necessidades de sua futura família, ele obtém um emprego como vigia noturno em uma loja de luxo. Philippe Etienne, o homem mais abastado da França, exibe uma persona fria e insensível desde o falecimento de sua esposa há um ano, dedicando-se integralmente aos seus empreendimentos comerciais. Alexandre, seu único filho e herdeiro da vasta fortuna de Etienne, mantém o pai à distância, refugiando-se no isolado mundo de uma criança mimada. No desdobrar da trama, por ocasião do aniversário de Alexandre, Philippe inaugura o departamento de brinquedos da loja onde Samy exerce sua função como vigia noturno, permitindo ao filho escolher qualquer item à sua vontade. Nesse momento, Alexandre opta por Samy como seu “brinquedo”.

Resta-nos, portanto, abraçar a trama absurda e a abordagem despolitizada e ridícula presente no filme. Afinal, é inconsequente e até utópico avaliar um filme com base no que não se propôs a abordar. Pode-se afirmar com convicção que o diretor James Huth não aspirava a desenvolver uma análise aprofundada sobre as questões de trabalho, luta de classes e imigração que permeiam o cenário francês. A proposta, de fato, reside na busca por uma abordagem lúdica, leve e humorística. Diante dessa perspectiva, torna-se imperativo analisar se o filme foi bem-sucedido na execução da empreitada que escolheu desenvolver.

De certa forma, sim, o filme proporciona momentos de humor. O aspecto “lúdico” destaca-se principalmente por meio do personagem Samy, interpretado pelo veterano Jamel Debbouze. Samy, simultaneamente afetado pelas adversas condições de trabalho como vendedor ambulante, revela-se um indivíduo imaturo e brincalhão, enfrentando dificuldades, ou demonstrando falta de interesse, em assumir compromissos e prover segurança para sua esposa grávida. Possivelmente, parte dessa imaturidade é uma consequência da necessidade de adotar tal postura para atrair clientes nas ruas da França e efetuar vendas de seus bules. O personagem parece habitar um universo à parte, negando-se a reconhecer qualquer aspecto da realidade, inclusive a evidente gravidez avançada de sua esposa. Através muitas vezes do humor físico o ator consegue mostrar o porquê é um dos comediantes mais importantes do país.

Cada vez que o filme explora a imaturidade de Samy, a montagem e a mise en scène adotam uma abordagem inventiva, incorporando movimentos rápidos e estilizados para imergir na esfera mental do protagonista. Esta estratégia revela-se uma tática perspicaz, conferindo uma dinâmica intrigante a um filme que, em sua essência, faz escolhas narrativas consideradas por vezes absurdas. A obra demanda a suspensão da descrença para a construção do aspecto “lúdico”, solicitando ao espectador a aceitação da premissa de que o herdeiro de Etienne solicita o homem como presente de aniversário, indo ao ponto de requisitar o mesmo embrulhado para presente. De certa forma funciona, à essa altura do campeonato já aceitamos muitas coisas como esta do filme e a coisa acaba andando.

A dinâmica entre Daniel Auteuil e Simon Faliu desempenha eficazmente o papel de pai e filho, retratando convincentemente dois bilionários de personalidades frias e amargas. A responsabilidade recai sobre Samy para atuar como mediador, aproximando esses dois personagens e introduzindo o calor humano e afeto que constituem os alicerces da comunidade de origem de Samy.

Apesar da competência na execução desses elementos, o filme, lamentavelmente, não oferece nada verdadeiramente extraordinário, perdendo-se em meio a uma crescente popularidade de comédias similares que, por sua vez, têm se tornado cada vez mais cativantes. A obra não se destaca de maneira significativa, sendo ainda prejudicada pelo seu tempo de duração excessivo. No contexto do Festival Varilux de Cinema, o filme, infelizmente, tende a ser facilmente esquecido em meio à ampla gama de opções em exibição.

A Viagem de Ernesto e Celestine (Cineclube da RUA ao CAIS) – Por Athos Rubim (21/11 -19h)

Foi com muito prazer que a equipe da RUA trouxe para o Cineclube da RUA ao CAIS uma sessão especial do Festival Varilux de Cinema Francês 2023. Para isso, agradecemos a Sylvana Almeida, diretora da Aliança Francesa de São Carlos, que nos possibilitou o contato com os outros organizadores do festival, viabilizando a sessão. Agradecemos também à Bonfilm, distribuidora oficial dos filmes exibidos no festival, que disponibilizou a cópia para nossa equipe. E por fim, agradecemos à organização do Festival Varilux de Cinema Francês, por acolher o nosso humilde cineclube nessa gloriosa programação.

O filme escolhido por nossa equipe foi “A Viagem de Ernesto e Celestine” (Jean-Christophe Roger e Julien Chheng, 2022), que foi exibido no dia 22 de novembro, o último dia do festival, às 19 horas, em um dos auditórios da biblioteca comunitária da UFSCar, em São Carlos/SP. A sessão foi um sucesso e contou tanto com pessoas da equipe da RUA, quanto com pessoas das comunidades universitárias de São Carlos e com o público sãocarlense em geral. 

A escolha do filme se deu com o intuito de trazer o debate cineclubista também para a produção voltada ao público infantil, que infelizmente não recebe tanta atenção da crítica e, no mercado, acaba se concentrando em poucas empresas e uma fórmula quase única de narrativa. E foi justamente isso que ocorreu, pois o debate após a exibição versou justamente sobre isso, além de exaltar a qualidade da obra, em especial para a técnica de animação e também à capacidade de obra de dissolver temas tão importantes de forma que sejam compreensíveis e agradáveis para todos os públicos.

O Desafio de Marguerite – Por João Cardoso (22/11 – 19h)

A matemática é a linguagem da ordenação do caos. Essa frase, ou alguma variação dela, é algo comumente dito pelos amantes dos números e cálculos. Este também é um dos principais argumentos de “O Desafio de Marguerite”, filme que fechou a programação da edição de 2023 do Festival Varilux de Cinema Francês. Durante o filme, acompanhamos Marguerite, uma doutoranda que dedica toda a sua vida à pesquisa e ao estabelecimento de novas fronteiras no infinito universo dos problemas matemáticos. Não vou me preocupar em tentar explicar o problema que a personagem quer resolver, até porque o filme em si não tem esse objetivo, e mesmo que tivesse, eu, que frequentemente tenho dificuldade em calcular minha própria idade, não teria a capacidade de explicá-lo. O que importa é que, em uma apresentação da sua pesquisa, Marguerite é questionada em um ponto que acaba por invalidar completamente toda a sua argumentação. Este abalo faz com que ela perca seu orientador e, por consequência, desista da vida acadêmica, deixando de morar na universidade e passando a viver com uma bailarina na qual Marguerite conheceu em uma entrevista de emprego. É a partir dessa grande mudança na vida da personagem que o filme se desenrola, pela primeira vez não sendo uma pesquisadora, Marguerite deve descobrir o que é a sua vida sem a matemática.

É muito interessante a investigação que a obra faz nos prazeres da personagem, pois o foco está muito mais na autoexploração e na descoberta do que no próprio gozo. Marguerite vai encontrar no seu corpo, na relação com outras pessoas e, curiosamente, no mahjong, outras formas de se satisfazer como pessoa. No entanto, talvez uma das maiores descobertas de Marguerite é de que, de fato, a matemática é central em sua vida, que essa sua obsessão é o que a faz ter vontade de viver e que, independente do passado, seu sonho ainda é o de avançar as fronteiras do conhecimento.

A sua redescoberta do amor pelo estudo vai gerar a grande crise na qual tanto Marguerite quanto o filme em si têm de responder: como voltar para o universo acadêmico tendo experienciado uma nova possibilidade de ser como indivíduo? Devemos tentar parar de onde deixamos as coisas para um lugar conhecido, em que já sabemos como operar? Ou, além de voltarmos para os complexos problemas que foram deixados sem resposta, além de lidar com o trauma que nos foi acometido, devemos ainda dialogar com essas novas descobertas que a princípio dizem muito pouco sobre o problema no qual estamos retornando e sermos uma pessoa “nova”? Estas perguntas e muitas outras são difíceis de serem respondidas, assim como com Marguerite, é um processo de acertos e erros.

A diretora do filme, Anna Novion, joga muito bem com os questionamentos levantados pelo roteiro. Ao longo do filme, a fotografia como um todo vai ganhando uma grande sofisticação, saindo de um início com planos mais contidos tanto em relação a enquadramentos e movimentos de câmera à iluminação, para um visual extremamente criativo que acompanha as constantes mudanças pelas quais passa Marguerite. Elementos importantes para a narrativa, como as longas cenas em frente a um quadro em que termos matemáticos são jogados e equações com mais letras do que números são escritas e reescritas, tornam-se gostosas de assistir mesmo para um público, como eu, que não faz a mínima ideia do que está acontecendo. Mas ao mesmo tempo, que são algumas das minhas cenas favoritas de “O Desafio de Marguerite”, estes momentos tão focados no universo equacional também me causaram um sentimento de falta.

Um dos aspectos que mais me empolga na academia é a paixão pelo conhecimento. Qualquer um que já tenha ouvido um bom pesquisador falar consegue sentir o amor que essa pessoa tem pelo seu estudo. Independentemente da área, é quase palpável esse profundo sentimento que se cria entre pesquisador e estudo. Esse amor, essa paixão está claramente presente nos personagens do filme, não somente em Marguerite. 

No entanto, ela não consegue ser transmitida para o espectador. É claro que a matemática é o motivo de viver da personagem, mas somente dizer isso com palavras não é o bastante, coisa que acontece mais de uma vez, é preciso que isso seja também sentido pela obra. Eu não queria ser convencido de que fazer cálculos intermináveis é a oitava maravilha do mundo, mas sim de que a paixão de um pesquisador por esses cálculos pode ser. Essa falta sentimental certamente o enfraquece. Não é nem de longe o fim do mundo e faz com que, da mesma forma que a pesquisa original de Marguerite, todo o argumento se desfaça completamente, mas certamente não o ajuda, fazendo inclusive com que o romance que é construído ao longo do filme perca um bom bocado de seu impacto, pois é pedido do espectador que trace um paralelo entre o amor pela matemática que os personagens têm e o amor que nasce entre eles por causa da matemática.

Por fim, “O Desafio de Marguerite” é bom, gostoso de se assistir, bonito, mas longe de ter empolgado como outros filmes presentes no Festival Varilux em que estava inserido. Um bom encerramento, leve, divertido, me deixou com um gostinho de quero mais do cinema francês contemporâneo e, acima de tudo, comprova que é necessário ter no mínimo o conhecimento de um pós-graduando em matemática para se começar a entender as regras do mahjong.

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