Gourmet (Jiro Taniguchi e Masayuki Kusumi, 1997)

Tiago Canário*

Quadrinização do cotidiano: a experiência do álbum Gourmet


A trivialidade cotidiana, o dia a dia de um homem comum; não a presença de grandes desafios, mas o desenrolar de pequenas ações. Sem dramas ou tensões, Gourmet reúne as pequenas crônicas de um viajante. Publicado originalmente em 1997 – tendo chegado à França em 2005 e, no Brasil, em 2009 –, o álbum retrata uma rotina extremamente simples, como a de boa parte dos leitores, que veem a si mesmos nas páginas do livro.

Parceria dos artistas japoneses Masayuki Qusumi (roteiro) e Jiro Taniguchi (desenhos), Gourmet explora as experiências deste personagem, um homem de 40 anos sobre o qual se diz pouco, nem mesmo seu nome. Comerciante, viaja por diferentes cidades em busca de importações e, em suas andanças, experimenta pratos da culinária de cada região. Em restaurantes locais, tece considerações sobre a comida, o ambiente e as pessoas. É possível observar os costumes e pequenos hábitos do protagonista, homem de classe média de Tóquio. Não há elogios a este sujeito ou prenúncio de um futuro redentor; ele é um indivíduo como qualquer outro (e nisso não há qualquer problema).

De modo geral, esse Gourmet (ou gourmet solitaire, como traduziu a edição francesa) chega a (ou está a caminho de) uma cidade, interessa-se por um prato, o compra, saboreia e termina a crônica com suas considerações sobre a refeição. Seguindo quase sempre essa mesma estrutura, o álbum chega a seu fim sem que o personagem pareça chegar ao seu. Ele parece seguir com sua vida, com uma série de eventos possíveis, apenas não quadrinizados. A décima oitava viagem é a última mostrada, mas de modo algum sugere a inexistência de outras.

Essa grande narrativa que se constitui a partir dos 18 fragmentos é, portanto simples, mas rica em detalhes. São constantemente inseridas informações aparentemente de pouca importância, gratuitas. Não se tratam de pistas para a resolução de um quebra-cabeça da trama, nem de um suspense hitchcockiano. Ao contrário, o leitor, consome uma série de pequenas informações todo o tempo.

Com a atenção dada a ações mínimas, com seus defeitos e qualidades, as sutilezas se tornam fundamentais. Ao longo das histórias, sem implicações em outros eventos, como que despretensiosamente, o roteiro de Qusumi centra a narração no modo de preparo de um prato, em um fragmento de conversa de terceiros, no voo de um pássaro ou nas apresentações de artistas de rua – o que se soma ao detalhamento e à precisão do traçado de Taniguchi, que, por si só, retrata uma infinidade de pormenores, como a diversidade de indivíduos circulando pelas ruas, a arquitetura dos edifícios e anúncios publicitários em outdoors e placas.

O discurso revela o pequeno caos de um cotidiano não controlado, suscetível a uma série de infortúnios, tropeços, desvios de atenção; em suma, plural e diversificado. O personagem é protagonista, mas nem por isso o universo gira a seu redor. Há uma série de detalhes que tem por fim construir a ilusão de realidade, simular um mundo como o conhecido pelo leitor. Em um momento bastante curioso, ao avistar uma loja de peças de couro, o personagem central se lembra dos brechós de Paris e de um momento passado na cidade. Trata-se do fim de seu relacionamento com “uma jovem atriz de sucesso”, também não nomeada. Eles se separam por conta de algumas incompatibilidades (instante em que se detém a memória).

A passagem, como outras do tipo, não é retomada ou explicada, pois, em seu universo (que, como se revela, aparenta ser não só seu) – do qual vislumbramos uma pequena parte –, elas já fazem sentido. Também por isso, quaisquer personagens coadjuvantes (figurantes), quase não são introduzidos; o gourmet já sabe quem são, não precisa de apresentações. Os eventos não são pistas para soluções de problemas levantados pela trama, mas partes da história desse comerciante. A lembrança, para um terceiro que a observa, pode revelar pouco, mas para ele é um recorte suficiente. A recordação é inserida como uma ação cotidiana, trivialidade à qual o leitor também está suscetível.

As cidades visitadas, por sua vez, seguem o mesmo padrão, malmente nomeadas e, algumas vezes, rememoradas com detalhes não aprofundados. Aqui, o passado não está em jogo. O álbum não tem qualquer pretensão de esgotar ou mostrar de forma enriquecida a vida do personagem, porque (aparentemente) ela não se esgota nas páginas. O álbum é como uma junção de recortes do cotidiano desse personagem em suas aventuras gastronômicas, sem sequência cronológica e sem resumir a sua história.

A leitura torna absolutamente plausível que novos capítulos sejam produzidos, também deixa claro que o personagem, em seu universo narrativo, continua seus dias – o início despretensioso da primeira crônica se repete no desfecho da última; o álbum não inicia ou finda as possibilidades do protagonista. Como um enquadramento específico, o livro é uma espécie de diário gastronômico de um gourmet real, interessado em falar sobre tais eventos específicos; outras de experiências são deixadas para relatos diferentes, e sua vida prossegue.

Quanto à sua construção gráfica, ainda que as páginas não sejam divididas igualmente, de maneira homogênea, não há a utilização de imagens pregnantes ou sequenciamentos multilineares. Embora as vinhetas não sejam simétricas, não há uma diagramação arrojada – comum às narrativas de ação, sobretudo em quadrinhos japoneses – para acelerar a leitura, como se o olhar fosse sempre surpreendido.

Qusumi e Taniguchi rechaçam assimetrias gráficas e seus respectivos efeitos de inquietações. É clara a intenção de repouso do olhar sobre cada quadro com mais lentidão, contemplando o que é retratado. As emoções e sensações são trabalhadas mais no modo como as vinhetas se relacionam – portanto, no modo como a ação é retratada, como o tempo é representado. São priorizadas transições momento a momento ou aspecto a aspecto, que permitem o sequenciamento de um ritmo lento e subjetivo, ao mesmo tempo em que atencioso com pormenores do ambiente e das relações.

Criação cíclica e labiríntica, o livro explora seu enredo lentamente, em narrativas de intervalos, subjetivas. A escolha, então, permite uma narrativa detalhada. O leitor encontra momentos em que é convidado a observar apenas o ato de mastigar, o detalhe a refeição, a sensação das primeiras gotas da chuva cair, expressões faciais – cada instante reforçado pelo traço de Taniguchi, que preza por particularidades, das dobras da roupa aos grãos espalhados pelo prato. O uso auxilia na feitura de um trabalho contemplativo, mais lento pela riqueza de minúcias.

Em Gourmet, o leitor encontra passeios inocentes, divagações, rituais e prazeres da degustação. Dada a atenção a detalhes e ações mínimas, é também pela relevância do intimismo e da trivialidade do cotidiano que muitas vezes o álbum pode parecer enfadonho para alguns. E se pode soar repetitivo ou cansativo, com crônicas de estrutura e de desenvolvimento similares, é porque o próprio dia a dia dos leitores se renova muito pouco e lentamente, em uma sucessão de reproduções.

Tiago Canário*Jornalista e pesquisador de narrativas em quadrinhos no mestrado em Análise de Produtos e Linguagens da Cultura Mediática, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia – PPGCCC/UFBA.

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