Por Gustavo Aguiar, Débora Taño e Priscila Lourenção
Durante os dias 17, 18 e 19 de maio ocorreu na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar o 1º Encontro Estadual da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. No decorrer dos três dias importantes nomes da pesquisa sobre a audiovisual se reuniram, juntamente com mestrandos e graduandos, para acompanhar as palestras e mesas sobre diversos assuntos na área. Foram 37 mesas, nas quais os participantes falaram sobre seus respectivos trabalhos de pesquisa. Além das mesas painéis foram montados no saguão da biblioteca onde graduandos e recém graduados puderam também puderam mostrar um pouco de suas pesquisas.
A programação contou também com convidados e eventos especiais, como as palestras “World cinema e a ética do realismo”, com a Profa. Dra. Lúcia Nagib (University of Leeds); “Apontamentos sobre um cinema outro”, Profa. Dra. Mirian Tavares (Universidade de Algarve); “Algumas tendências no cinema mexicano contemporâneo: a História e as identidades”, Profa. Dra. Aleksandra Jablonska (UPN e UNAM); o debate “Políticas de regionalização no campo da pesquisa em cinema e audiovisual” com as Profas. Dras. Maria Dora Genis Mourão (USP), Anelise Corseuil (UFSC) e Mariana Baltar (UFF) e o minicurso “Cinema latino-americano contemporâneo: estética e experimentação” ministrado pela Profa. Dra. Cynthia Tompkins (Arizona State University). Além destes eventos os participantes puderam conferir o filme “Testemunha Oculta” (José de Oliveira, 1969) com acompanhamento ao vivo da Orquestra da UFSCar e a apresentação do “Aparelho Diegético”.
Nesta edição da Cobertura contamos com textos sobre as duas primeiras palestras, sendo a primeira de abertura e a segunda de encerramento do evento, e sobre o minicurso. Os eventos especiais e algumas mesas tiveram transmissão online ao vivo e podem ser conferidos nos sites: http://www.livestream.com/socinesp_florestan e http://www.livestream.com/socinesp_bento Aguardem no próximo mês o dossiê sobre World Cinema e as demais entrevistas da SOCINE.
Palestra de Lúcia Nagib sobre World Cinema e a ética do realismo
Por Gustavo Aguiar*
No primeiro encontro estadual organizado pela SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual) – em São Carlos –, a professora Dra. Lúcia Nagib, atualmente docente na Universidade de Leeds, no Reino Unido, ministrou a palestra de abertura do evento, no dia 17 de maio. Intitulada de “World Cinema e a ética do realismo”, a palestra discutiu os principais pontos defendidos pela teórica em seu livro homônimo – em inglês, World Cinema and the ethics of realism.
A proposta teórica de Lúcia Nagib parte da desconstrução de certas teorias já solidificadas no contexto dos estudos cinematográficos, como a que se embasa pelos Estudos Culturais, assim como aquelas que se fundamentam nas questões envoltas pelo realismo no cinema. A teórica, portanto, propõe uma quebra de dicotomias já alicerçadas – Hollywood e world cinema, por exemplo – e apresenta uma nova forma de se pensar o cinema e as relações e implicações decorrentes de produções em diferentes contextos sociais, políticos e econômicos. Partindo do conceito de que há a possibilidade de existência de uma rede de produção cinematográfica policêntrica, Lúcia acredita na quebra da supracitada dicotomia Hollywood e world cinema, defendendo uma cadeia fundamentada por inúmeros pontos produtivos.
Na sinopse de sua palestra, presente no site da SOCINE Estadual, Lúcia afirma que os filmes e cineastas por ela citados abordam as questões dicotômicas de maneira a suprimir os limites existentes entre elas e que “Sua ética se traduz, em primeiro lugar, em ‘compromisso com a verdade’, mesmo quando esta advém do contingente, do inesperado e do incerto”. Os trechos analisados rapidamente por ela, durante a palestra, fazem parte dos seguintes filmes:
• Les Quatre Cents Coups (1959) – François Truffaut;
• Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) – Glauber Rocha;
• Atanarjuat: the fast runner (2001) – Zacharias Kunuk.
Tais trechos apresentam personagens que correm em direção ao mar, a fim de encontrar um subterfúgio para a situação de suas vidas: Antoine Doinel, protagonista do filme de Truffaut, foge do reformatório e das rígidas regras a ele impostas; Manuel, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, corre influenciado pelos dizeres canção O sertão vai virar mar, ansiando distanciar-se das complicações da vida no sertão; e o inuit do filme canadense corre nu por inóspitas paisagens gélidas, a fim de se livrar de uma perseguição. O que todos os personagens têm em comum é entender o mar como simbologia para a libertação. E, no caso do filme Atanarjuat: the fast runner, trata-se de uma produção cinematográfica dos povos inuit, o que se configura como mais um objeto de estudo da teórica: a produção indígena dos inuit.
Em Les Quatre Cents Coups, o protagonista foge do reformatório.
Manuel corre em direção do mar. O inuit corre, para fugir da perseguição.
Lúcia Nagib ainda salientou bastante a questão do realismo no cinema, trazendo à discussão a seminal teoria do realismo cinematográfico, de André Bazin. Respondendo uma pergunta sobre como os contemporâneos avanços tecnológicos influem na produção de uma noção de realidade edificada pelo cinema, Lúcia comentou que na cena do filme Atanarjuat: the fast runner essas novas possibilidades tecnológicas foram utilizadas: há vários efeitos gráficos na cena em questão, vários cortes, mas o inuit ainda teve de correr nu pelas planícies congeladas do filme. Dessa forma, ela vai construindo o seu pensamento rumo à formulação de sua proposta de realismo. A fim de reiterar seu ponto, ela ainda cita o exemplo de outro filme, cuja produção exigiu que o curso de um rio fosse modificado, a fim de que se formasse uma cachoeira cobrindo uma gruta, exatamente como havia sido pensado e desejado pela equipe do filme. Lúcia Nagib chega à conclusão de sua palestra, defendendo a realidade do aparato, e não da fábula. Uma realidade que pode ser construída dentro das inúmeras possibilidades apresentadas ao ato de produção e construção cinematográfica.
*Gustavo Aguiar é graduando em Imagem e Som pela UFSCar e participa colaborativamente como editor da seção Panorama, da Revista Universitária do Audiovisual (RUA).
Minicurso “Cinema latino-americano contemporâneo: estética e experimentação” Ministrado pela Profa. Dra. Cynthia Tompkins (Arizona State University)
Por Débora Taño*
O minicurso começou com uma introdução a respeito do tema tratado: o cinema latino-americano contemporâneo. A Profa. Dra. Cynthia Tompkins escolheu alguns gêneros cinematográficocs produzidos atualmente e, baseando-se nas idéias de Gilles Deleuze, analisou fundamentalmente a relação destes com o tempo e o intervalo. Segundo Deleuze, o cinema do pós-guerra, chamado por ele de cinema da “imagem-tempo”, diferente do cinema clássico hollywoodiano – o cinema da “imagem-movimento” ou “imagem-ação” – que se preocupava com a causalidade de seus enredos e com a relação entre a parte mostrada e o todo, tem seu foco em processos mentais de memórias e sonhos e na relação dos personagens ou paisagens com o tempo, causando uma falta de causalidade de enredo e planos muitas vezes autônomos. Além destes pontos grande parte dos filmes tratados apresenta a questão da repetição com variações, ou seja, temas ou planos que se repetem em diferentes contextos ou não, mas com pequenas diferenças, principalmente com relação à narrativa, dentro do próprio filme. Com relação à temática há uma grande variação, entretanto no geral os filmes abordados apresentam de alguma forma uma falha do Estado, seja econômica, política ou socialmente. A partir destas características, presentes em todos os filmes analisados de formas e em graus diferentes, cada gênero citado recebe suas próprias características e questões.
A cada filme comentado trechos foram mostrados, além de um breve resumo do enredo feito pela Profa. enfatizando os pontos principais tanto para o entendimento do filme como para o desenvolvimento da análise.
Neo-noir
Este gênero, assim como o seu antecessor – o próprio noir – tem a figura da mulher como um dos pontos principais. Baseado em aspectos estéticos do expressionismo alemão e narrativos da literatura norte-americana, como Hemingway, os filmes noir acompanham o desenvolvimento e a resolução de um raciocínio. Entretanto, diferentemente do gênero da década de 1940, os personagens do neo-noir não passam pela dicotomia bem x mal. Eles possuem ambos os lados e quando fazem algo moralmente ruim, há algum motivo para que não seja tão ruim assim, não existindo, assim, um castigo para esses personagens.
Filme: El Aura (2005) – dir. Fabián Bielinsky – Argentina, França e Espanha
Neste filme as ações são apresentadas variando entre acontecimentos reais e imaginados. Muitas vezes o espectador fica sem saber exatamente se aquilo que viu aconteceu ou foi apenas uma idéia do personagem principal. Algumas destas dúvidas são posteriormente esclarecidas, fazendo com o que tempo perca sua linearidade. Além disso, o fato do personagem principal sofrer de epilepsia o deixa em constante alerta para a chegada de uma crise. Quando isto acontece o tempo se fragmenta e se dissolve em intervalos que se repetem ao longo do filme e fazem com que a história não tenha necessariamente causalidade entre os acontecimentos.
A relação com o neo-noir se dá pelo fato do personagem principal – Esteban – tem o sonho de praticar um crime perfeito. Enquanto planeja estes crimes as crises de epilepsia acontecem, ao meio de outras ações, fazendo com que o espectador acompanhe seu raciocínio muitas vezes incompleto por conta dos “brancos” causados pela crise.
O filme demonstra uma falha do Estado argentino no que diz respeito ao roubo. É possível depreender que em meio a crise argentina – momento do filme – todos roubam.
Filme: O Homem que Copiava (2003) – dir. Jorge Furtado – Brasil
O ponto inicial deste filme é a comparação de André a um personagem tipicamente hitchicockiano, um voyeur. A partir disto, além de acompanharmos seu o ponto de vista, visualmente falando, a voz over narrativa do filme também é sua, provocando uma identificação ainda maior do público com o personagem. Além destes recursos o personagem de André é construído pelos seus desenhos, transformados em animações, que prenunciam as ações que ocorrerão no filme e colocam o personagem dentro da esfera de seus objetos de consumo. É neste ponto que aparece a falha do Estado. André por mais que trabalhe de forma honesta não conseguirá alcançar seus desejos de consumo ser cometer algo ilegal. Este ponto, por sua vez traz a questão do neo-noir. O público acompanha o raciocínio e os planos, não exatamente corretos, do personagem, que não é castigado por eles por haver um fator que justifica ou ameniza seu erro.
Outro ponto relativo ao neo-noir é a presença de Silvia, o objeto observado. Seguindo a visão de André vemos Silvia como inocente e encantadora. No entanto, depois descobre-se que ela arquitetou tudo para que André se aproxima-se dela. A mulher manipuladora do noir tradicional se encontra ai. Entretanto, assim como o erro de André não é castigado, Silvia mesmo tendo matado seu padrasto não é culpada por isso, uma vez que há outros fatores que a redimem do crime.
Filme: O Cheiro do Ralo (2007) – dir. Heitor Dhalia – Brasil
O próprio título do filme remete ao neo-noir a partir da referência que faz ao que está dentro e fora do corpo humano. Além disso, se afasta do noir tradicional pela falta de explicação tanto com relação ao cheiro quanto ao vudu.
O personagem principal explora os seus clientes, de forma que cada novo cliente que entra na loja há uma repetição na estrutura, mas com variações de acordo com a situação. Além disso, o personagem principal é acompanhado pelo público pelos seus pensamentos, que, no geral, precedem suas falas.
Road movie
A viagem é tema recorrente no cinema do pós-guerra, sendo, geralmente, acompanhada pela mistura entre ficção e documentário. Esta fusão tem como influência os filmes de Alberto Cavalcanti sobre Paris e Berlin feitos entre 1926 e 27 e é feita por meio da montagem que reformula a maneira de pensar, como fazia Eisenstein. Os trechos documentais apresentados reforçam a validade dos fatos apresentados, o que é bastante recorrente no cinema latino-americano contemporâneo, tendo como expoente o cinema cubano pós-revolução, que dentro de suas ficções apresentava trechos de acontecimentos reais, como que para validar e mostrar a situação cubana na época.
Durante um Road movie seus personagens passam por provações e mudanças a partir de seus conflitos iniciais, seja este com alguém, com a sociedade ou mesmo interno. A viagem funciona como o tempo, que no seu transcorrer faz com que as pessoas sejam modificadas pelo que vêem ou passam, assim como a paisagem que se altera, tornando-se um personagem. Em relação à estética deste tipo de filme, o close é extremamente valorizado, por criar uma aproximação com o personagem, uma imagem afetiva, que também pode ser usado para objetos significativos. Para Deleuze o close demonstra duas situações: se o rosto do personagem está sem muito movimento, significa que há um estado de êxtase, já se o rosto se movimenta com freqüência ou há tiques o personagem demonstra desejo.
Filme: Central do Brasil (1998) – dir. Walter Salles – Brasil
Neste filme as imagens documentais se misturam à ficção de forma quase imperceptível. Durante a viagem de Dora e Josué são mostradas procissões religiosas que foram filmadas diretamente no local e realmente estavam acontecendo. Além disso, quando Dora escreve as cartas para as pessoas tanto na estação carioca quanto durante sua viagem a câmera funciona como uma câmera documental que tende a não interferir no que acontece, uma câmera apenas de observação. Nestes mesmos momentos a montagem é muito importante, pois temos a repetição de temas, variando os endereços das cartas ou o seu conteúdo, dando dinâmica e significado próprios ao momento. Além disso, a montagem se faz presente em momentos em que orienta e nos mostra o fluxo de pensamento da personagem.
Com relação aos personagens tanto Dora quanto Josué passam por transformações. Dora inicialmente não honesta começa a valorizar mais a questão familiar e chega, talvez, a se arrepender do que fizera no passado. Josué, por sua vez, passa o caminho achando possíveis pais, mas acaba por encontrar apenas seus irmãos. Mesmo não encontrando o pai Josué amadurece durante a viagem.
O filme foi feito em grande parte em locações e com atores não profissionais, com exceção de alguns. A viagem contrária ao fluxo comum, indo do sul para o norte, remonta às viagens feitas pelos cineastas do cinema novo para reencontrar as origens e o povo brasileiro das regiões norte e nordeste.
Filme: El Camino de San Diego (2006) – dir. Carlos Sorín – Argentina
Este filme é um dos primeiros argentinos que tira a câmera da Buenos Aires europeizada e a leva à Patagônia, mudando a relação até então existente no cinema do país ao ponto de colocar falas em guarani durante o filme. A viagem ocorre por conta do desejo do personagem principal em levar um presente a Diego Maradona que está hospitalizado, como símbolo de uma promessa que havia feito. Para isso atravessa o país encontrando as dificuldades presentes durante a crise. Em seu caminho muitas vezes é barrado por piquetes ou manifestações populares que não querem deixá-lo chegar a Buenos Aires, mas quando explica seu motivo e sua promessa para a saúde de Maradona é liberado e encorajado a continuar. O filme constrói um paralelo entre Maradona e o momento da morte de Evita, retomando a necessidade dos países latino-americanos de terem um herói popular.
O filme demonstra a questão neo-realista de conhecer o país e mostrar suas debilidades, como, por exemplo, a falta do estado de bem estar e serviços nas regiões mais afastadas da capital. O enredo se baseia em um fato real para criar a história deste personagem, que se torna verossímil, uma vez que a comoção nacional foi tão grande por conta da internação de Maradona que seria completamente possível haver uma história como esta.
Filme: El Cielito (2004) – dir. María Victoria Menis – Argentina
A viagem tratada neste filme se dá do interior para a capital, quando um rapaz de rua assume os cuidados de um bebê abandonado pelos pais – aparentemente a mãe, uma boliviana, se mata por conta dos abusos e maus tratos do pai – e vai em direção à capital em busca de trabalho para sustentar a criança. Durante seu caminho encontra, assim como em “El Camino de San Diego” piquetes e pessoas em dificuldades procurando trabalho.
O rapaz se identifica com o bebê e em determinados momentos suas lembranças se sobrepõe à realidade, misturando passado e presente. Assim como o bebê, o personagem principal foi abandonado pelos pais, mas criado pela avó, o que é pouco comum em sua cultura, guarani, na qual o pai é responsável pelo cuidado do menino. Ele repete os cuidados que a avó teve com ele ao cuidar da criança. Estas ações são fortemente relacionadas à passagem do tempo, que é mostrada em marcas físicas em árvores e casas.
Chegando à capital o rapaz arruma um emprego, mas é confundido com outro que matou um homem e é morto, deixando o bebê sozinho, assim como ele ficara.
Depois desta parte, que corresponde ao primeiro e segundo momentos, a Profa. Dra. Cynthia Tompkins respondeu à pergunta que relacionava o neo-realismo tratado no minicurso e o italiano. Ela afirmou que o italiano não propunha soluções à situação em que se encontravam, enquanto o contemporâneo latino americano apresenta questões e temas referentes à situação de seu país deixando ao espectador a tarefa de refletir sobre elas e, talvez, achar possíveis soluções.
Drama
Sobre o gênero drama como um todo pouco se tem a falar uma vez que é algo abrangente e recorrente. O centro destes filmes é a reflexão sobre os problemas do protagonista. Entre os filmes analisados permanece a questão da falta do Estado em determinadas situações e sobretudo a relação importante com o tempo, o que é comum, como dito no início, aos filmes contemporâneos.
Filme: Como pasan las horas (2005) – dir. Inés de Oliveira Cézar – Argentina
Inés de Oliveira Cézar mistura em seus filmes a relação que tem com o teatro e psicologia. Neste seu primeiro filme, com influência de Tarkovsky, ela esculpe o tempo. O tempo real se manifesta de diferentes formas, unido a um tempo mítico no qual se refletem as atividades do dia a dia. Estas, por sua vez, são extensões de atividades realizadas por antepassados (atividades que sobrevivem), dando ênfase aos ciclos e repetições existentes, sobretudo em comunidades agrícolas, por serem regidos fundamentalmente pelos ciclos da natureza. “O mito nos precede e nos sobrevive”. “Somos pequenas partes neste mecanismo muito maior que nos supera”. Segundo Lacan, repetimos estes ciclos inconscientemente, pois fomos formados por eles.
Assim como os demais filmes o argumento não é muito complexo e não possui causalidade exata. A história trata de dois argumentos paralelos em que em um está uma mulher com sua mãe passeando no campo e no outro seu marido e filho passeiam na praia. A mãe possui uma doença terminal, mas o que ocorre é a morte inesperada do marido. As ações são reduzidas, dando prioridade ao fluxo de memória. As tomadas fogem do clichê, como, por exemplo, no momento em que há uma cena na praia está frio e a praia está deserta. Toda a história se baseia nas repetições de ações que ocorrem em ambas partes, valorizando a relação com o tempo e entre as pessoas.
Filme: Dias de Santiago (2004) – dir. Josué Mendez – Peru
O personagem Santiago volta da guerra (não se sabe se passaram três ou seis anos – entre 92 e 95) contra El Salvador, por não concordar com aquela situação, abandonando o exército, mas quando volta vê que sua família está desfeita – seu irmão mal trata a mulher e ambos rejeitam o filho e se pai abusa de sua irmã. A cunhada tenta seduzi-lo para que mate o irmão. Ele quase o faz, mas se dá conta e a mãe fala para que ele vá embora para não estragar sua vida.
O protagonista sofre de síndrome pós-traumática – os dramas do passado são disparados em sua mente de acordo com o que ele vive no presente, revivendo suas tragédias. Estas lembranças são colocadas no filme de maneira diferente do presente. As primeiras aparecem com imagens em preto e branco e as outras, coloridas. Com este tema o filme trata da situação dos ex-combatentes que não possuem nenhum apoio do Estado para se reintegrarem na sociedade. A síndrome pós-traumática apresenta sintomas como violência para com os outros, reações súbitas, corte emocional (impede relações amorosas), temor, entre outras, sendo reações que dificultam a relação com as pessoas sem que haja um acompanhamento especializado.
Cinema Experimental de Autor
A noção de autoria se desfaz a partir do momento em que toma-se o cinema como uma arte de grupo e não individual. Entretanto a idéia é retomada na crítica contemporânea vendo este tipo de filme não como algo individual, mas como um reflexo do autor.
Neste tema os dois filmes tratados são do mexicano Carlos Reygadas. Ambos tratam da situação mexicana de uma forma considerada violenta, pois possuem como centro grandes tabus da sociedade mexicana. Reygadas o faz propositalmente para chocar seus espectadores. A utilização da música é extremamente importante em suas produções, assim como a noção de esculpir o tempo (inspirada em Tarkovsky) e a não direção dos atores (inspirada em Bresson). Reygadas trabalha com atores não profissionais que atuam como sua vida diária (assim como em Central do Brasil, os personagens secundários), chegando até mesmo a não lhes falar sobre o roteiro do filme.
Filme: Japón (2002) – dir. Carlos Reygadas – México
No filme, o tabu é a questão sexual entre o personagem principal e uma idosa octogenária. Ele pensava em se suicidar, mas vivendo junto com esta desiste por vê-la em tantas experiências novas mesmo com a idade que tem. No momento em que desiste a tela é tomada por imagens em planos bem abertos do local onde ele se encontra, como um renascimento do personagem. O filme também apresenta falta de causalidade de forma que o protagonista está imerso nas ações sem saber exatamente o porquê. Isto faz com que o filme jogue com a noção do sublime, presente na escola poética francesa. “O invervalo se converte em uma unidade variável, numérica e sucessiva que se relaciona metricamente com os demais fatores, que em cada caso define a maior quantidade de movimento relativo ao conteúdo e para a imaginação.” A partir disto fica a idéia de como é possível representar o sublime.
Filme: Batalla en el cielo (2005) – dir. Carlos Reygadas – México
Desta vez o tabu tratado é o sexual entre etnias. O motorista é indígena e a moça é loira.
A história trata de um bebê que é raptado e acaba por morrer. O motorista sofre com esta morte, ao mesmo tempo em que a menina não se comove. O primeiro acredita que deverá se entregar por conta desta morte, mas não entende porque, uma vez que a menina, que tem tudo, trabalha como prostituta por prazer. Ele decide assassiná-la e depois disto paga penitências. A trama deixa diversas incertezas que os espectadores devem fazer conexões para entender. As situações são dispersas, assim como as informações, diferentemente do noir, proporcionando diferentes leituras e evitando o clichê.
Durante o filme a questão sexual entre os dois personagens é tratada de forma aberta, o que choca os espectadores, sobretudo mexicanos que não aceitam muito este tipo de envolvimento entre etnias. Além disso, Reygadas faz uma representação do corpo como superfície
Cinema Experimental de Autor e Intertextualidade
Nesta etapa do minicurso os filmes tratados possuem alguma relação com outra forma de narração, seja uma peça teatral ou um mito reformulado. Esta intertextualidade se dá desde a livre adaptação da história até sua utilização como pano de fundo, de forma tanto estética quanto narrativa. Assim como o tema anterior esses filmes possuem a marca de seu autor, a partir do conceito contemporâneo dado a este.
Filme: Stellet Licht (Luz silenciosa – 2007) – dir. Carlos Reygadas – México
Este filme é baseado em uma peça teatral que já havia sido filmada anteriormente, mas este conta com o tipo de filmagem de Reygadas. Poucas tomadas são feitas de frente, de forma a homogeneizar as pessoas da família. Os personagens sabem pouco sobre as ações, gerando, assim como nos outros filmes, a causalidade mínima. O filme abrange a questão do tempo e dos intervalos, sendo o maior deles o da morte.
A história fala sobre um homem casado que se apaixona por outra mulher, indo contra a tudo o que acredita ser certo, inclusive sua religião. A partir disto é desenvolvida a relação entre estas duas mulheres que se odeiam e acabam por se ajudar mutuamente.
Filme: Extranjera (2007) – dir. Inés de Oliveira Cézar – Argentina
O tema deste filme é baseado no mito de Ifigênia, recontado por diversos poetas gregos, no qual a jovem deve ser sacrificada pelo bem de sua comunidade. Nesta livre adaptação um grupo de pessoas, incluindo uma família, anda por campos sem água e o chefe religioso acredita que sacrificando sua filha todos serão poupados e encontrarão o que procuram. Durante o transcorrer da história acompanha-se o drama desta jovem e de sua mãe que tenta ajudá-la. Entretanto os personagens são impenetráveis, não se sabe o que pensam e o que sentem com clareza.
O filme dialoga além do mito grego e da analogia entre a seca do local e a que colaborou com a degradação dos templos gregos, com outra civilização, a dos cometingones, povo originário da região de Córdoba, Argentina, por meio das vestimentas usadas pelos personagens. Além disso as marcas do tempo ficam sempre presentes por conta da locação ser muito antiga.
Esta obra foi utilizada por diversos grupos de teatro do mundo todo como símbolo para uma forma de protesto pacífico contra a guerra do Iraque, pois Ésquilo, um dos poetas que recontou a história de Ifigênia, foi contra a guerra do Peloponeso.
Filme: El recuento de los daños (2010) – dir. Inés de Oliveira Cézar – Argentina
Assim como no filme anterior a diretora retoma os textos clássicos para afirmar que o que passamos hoje já ocorre há séculos em diferentes classes e tempos. Neste caso o texto tratado é Édipo. A narrativa trata de uma mulher, que foi separada de seu primeiro filho durante a ditadura militar pela apropriação do Estado. Seu marido é morto em um acidente de carro pelo jovem, seu filho, que foi criado na França. Ao voltar para a Argentina ocorre o acidente e ele encontra sua mãe, sem saber sua real situação e tem relações com ela. Esta por sua vez, ao entender o que se passou enlouquece.
No Édipo grego o que desencadeia a “maldição” é uma relação homossexual não autorizada pelo pai de um dos envolvidos, o que permite criar um paralelo entre a instituição militar, que afastou as mães de seus filhos durante a ditadura, por ser ela predominantemente masculina.
Filme: Madrigal (2006) – dir. Fernando Pérez Valdez – Cuba
Madrigal tem como personagem principal um jovem escritor que participa de uma companhia de teatro. Sua relação com uma moça se desenvolve durante o filme de forma confusa e desgastada. O fato dela ser gorda soa como um luxo frente à crise cubana. Suas histórias se misturam com a realidade, fazendo com que as imagens se misturem entre realidade e sonho. Na segunda parte do filme o onírico predomina, sendo uma visão do jovem de 2020, onde reina o império de Eros, do sexo fácil e triste. Nesta parte a trama se recria com os mesmos personagens, mas agora em momentos e funções diferentes.
A interpretação do filme não se resume a apenas uma. Ela dependerá da ideologia do espectador. Uma das visões possíveis é uma alusão ao fracasso da revolução tendo Cuba como um local de turismo sexual. Ao mesmo tempo, é possível depreender uma reflexão sobre o futuro do país. Tais análises são tão abertas por conta das alegorias mostradas. Sem elas o filme não passaria pela censura nacional.
Uma observação é a participação de uma atriz espanhola no elenco e na recorrente citação a elementos espanhóis. Isto ocorre por conta do filme ser uma co-produção. Este tipo de relação é muito comum no cinema latino-americano, que coloca em seus filmes elementos dos países que co-produziram.
Pseudo-documentário Experimental
Nesta última parte do minicurso o tema trabalhado foi o pseudo-documental. O gênero recebe este nome por conta de sua íntima relação com a ficção, além de ter elementos fortes experimentais, que acabam, muitas vezes, por subverter o gênero documental propriamente dito, como por exemplo a falta de falas (ou a quantidade reduzida) como é mostrado nos dois filmes analisados.
Filme: Suite Habana (2003) – dir. Fernando Pérez Valdez – Cuba
Vale ressaltar inicialmente que Fernando Pérez Valdez é um dos diretores cubanos mais importantes da atualidade. Ele trata neste filme do cotidiano das pessoas em Havana, mostrando que mesmo com as dificuldades cada uma delas encontra uma forma de escapar disto por meios artísticos, seja pintando, dançando, etc.
A montagem é fator fundamental e dá o ritmo e as intenções do filme. É uma montagem dialética associativa que une, por repetição com variações, as ações dos personagens – ao meio dia todos comem, no final da tarde todas as mulheres cozinham.
A interpretação se dá assim como em Madrigal, variando de acordo com a ideologia do espectador. Ao mesmo tempo é possível enfocar a força dos habitantes de Cuba de resistir e encontrar na arte um refúgio ou o fracasso da Revolução com relação à população.
Filme: La Hamaca Paraguaya (2008) – dir. Paz Encina – Paraguai
Um filme quase sem falas, com apenas uma câmera, no geral, frontal e sem grandes movimentos dão o tom experimental. O tema é o trauma da Guerra do Chaco, tratado a partir da vida de um casal de aguarda a volta de seu filho da guerra. Ambos em determinado momento sabem que o filho não voltará, pois a guerra já acabou, mas escondem isso do outro para evitar que este sofra.
Durante o filme as lembranças do filho bem à tona por meio de sua voz que aparece dando tchau antes de partir. Entretanto não se vê a imagem dele. O carteiro e o veterinário que aparecem no decorrer da história também são lembranças, subvertendo o que aparentemente era realidade. A partir disto é possível inferir que as próprias conversas do casal podem ser apenas lembranças também, pois em momento nenhum se vê as bocas se mexerem.
O autor brinca com a questão do tempo e enfatiza seu regime cíclico, imperativo às comunidades arcaicas e camponesas, tendo como base a ausência e o possível retorno do filho.
Conclusão
Após a exposição e análise dos filmes, no final do segundo dia de minicurso algumas questões foram levantadas. A principal delas diz respeito à atual forma de produção dos filmes, principalmente longas-metragens. É comum que jovens realizadores idealizem seus projetos, façam o roteiro e o enviem a grandes festivais de cinema. Estes festivais costumam ter uma verba de apoio a produções. Conseguindo este apoio é que o filme se concretiza.
De forma geral o minicurso foi bastante rico tanto para um conhecimento da produção atual latino-americana quanto para o aprofundamento em questões estéticas e narrativas que são recorrentes, ou, no mínimo, bastante utilizadas neste momento. Além disso, as análises dos filmes baseadas em um pensamento específico sobre o cinema do pós-guerra fez com que questões caras ao momento atual cinematográfico fossem melhor elucidadas, dando uma base de incentivo para análises críticas posteriores sobre outros filmes do mesmo período ou não.
*Débora Regina Taño é graduanda em Imagem e Som pela UFSCar e co-editora da seção Cobertura da RUA.
Um cinema outro
Por Priscila Lourenção*
O dia de encerramento do primeiro Encontro Estadual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual na fria quinta-feira a noite, 19 do mês de Maio, trazia os resistentes do publico para debater um chamado “cinema outro”. O fechamento do evento que ocorrera na cidade de São Carlos esteve sob responsabilidade da professora Mirian Tavares, do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), da Universidade do Algarve, em Portugal. Mirian Tavares, brasileira com sotaque português, é uma estudiosa de Cinema Africano, mais particularmente o que nasce em Moçambique, após a sua independência dos feridos anos de processo secular da colonização européia no continente.
As aspas para falar de um “cinema outro” são justificadas no próprio trabalho da professora Tavares, que inserido no debate sobre World Cinema, cumpre um importante papel na discussão de uma condição que parece nascer junto ao Cinema, acerca de uma cinematografia hegemônica cunhada pela industria norte-americana e européia. Mas a discussão suscitada pelo trabalho de Tavares não se encerra nesta aparente tendência em vislumbrar apenas as diferenças entre as cinematografias do globo, sempre comparadas com uma determinada linguagem dominante de um modelo a ser seguido, e assim vistas as diferenças, o pensamento crítico estaciona. Transbordando às margens, ao falar de Cinema em um continente como a África, é falar de uma pluralidade de olhares e possibilidades narrativas que são particulares à cada um de seus países, daquele espaço, daquelas pessoas e suas realidades, um cinema que segundo a professora Tavares não é mais barrado pelas dificuldades de produção, graças ao já barateamento dos materiais e produtos digitais, mas sim, pela dificuldade em distribuí-lo mundo afora, na dificuldade em fazer o “outro” olhar para este Cinema e enxergar a sua importância. Ou seja, é uma questão de política e economia externas, muito além de uma mera escolha formal ou estética.
Cidades, centros periféricos
O cinema em Moçambique que será fonte de investigação para Mirian Tavares é particularmente o de ficção, produzido após a independência colonial de Portugal, em 1975. A produção de ficção foi bem menor comparada a de documentários, estes pequenos filmes de atualidades – ou kuxakanema – produzidos pelo INC, o Instituto Nacional do Cinema na época, também logo após o processo encabeçado por Samora Machel contra a colonização portuguesa em Moçambique. Após a independência em 1975, este cinema serve aos fins ideológicos, propagandísticos e pedagógicos de criar uma nova imagem para o país, uma identidade nacional pós-colonização. Atualmente, sem mais o INC destruído por um incêndio em 1991, a produção ficcional moçambicana é financiada por ONGs, com o intuito de alertar e educar os moçambicanos para os problemas como a miséria e o HIV, o desenraizamento dos indivíduos e a violência doméstica, fardos carregados por todo o continente africano.
Na palestra para a SOCINE, a professora Tavares enquanto fala, mostra atrás de si trechos de filmes produzidos em Moçambique, criando uma luta interior naquele que quer assistir e ao mesmo tempo quer escutar. Pois bem, estando ali diante de um encontro importante para a produção em teoria de Cinema, era melhor ouvir, escutar e espiar com os olhos curiosos aquela particular captura da realidade diante de nós. Cenas de “O Grande Bazar” filme de Licínio de Azevedo de 2006, foram projetados na tela do anfiteatro Florestan Fernandes, enquanto a professora explicava a questão das cidades africanas, com as suas lógicas internas determinadas pela lógica externa globalizada, cidades estas que ora são como pano de fundo para as histórias, ora se apresentam como personagens que se afirmam como espaços urbanos do continente africano. Pensar as cidades abre a possibilidade de questionar a distribuição dos espaços que trazem o centro modernizado e “avançado”, cercado pelas periferias espalhadas, pobres e deficitárias de olhar e cuidado. Considerando essa lógica tanto para a realidade quanto para o cinema, porém, também fica a pergunta: o cuidado de quem? De colonizadores vindos da parte ocidente “modernizada” do globo?
Alertando para o perigo de um olhar etnográfico ocidentalizado da África e conseqüentemente de sua produção cinematográfica, como um paraíso de pesquisa e exotismo, um olhar que olha de cima, quase imperial e quase com compaixão para a realidade diferente ali apresentada, Mirian Tavares lembra que os africanos não são um rebanho esvaziado de qualquer capacidade de pensar por conta própria, mas sim, fazem por conta própria o seu cinema com a sua identidade e suas visões de mundo particulares. É uma questão clara das diferenças que devem ser evidenciadas para estarem livres de posicionamentos hipócritas frente a dura realidade da pobreza e os problemas sociais enfrentados no continente africano, e que assim, da arte se abre a possibilidade de criação de algo novo, único e belo com a sua coloração particular. A professora corrige que o problema não estaria na matéria da Etnografia sobre a realidade, que outros campos devidamente considerados, o econômico por exemplo, apresentariam as reais e diversas facetas da questão.
Para Mirian Tavares, o conceito chave de investigação sobre este cinema é o de Modernidade, cuja expressão espacial são as modernas cidades da virada do século XIX para o século XX, que se ramificaram e complexificaram em sua caminhada até os dias de hoje. Aponta para a singularidade dos termos, “modernidades” e “cidades”, que no plural busca encerrar a possibilidade de avistar o processo como um caminho de uma única via ao progresso, que avançaria contra uma barbárie pressuposta. Esta ideia carregada através dos mares pelos colonizadores portugueses, aterrissaria em terras africanas já desde o século XV, para educar os povos atrasados que ali habitavam, e com a graça de Deus, levar a civilização civilizada aos considerados então primitivos. Para a professora Tavares, as “cidades inacabadas”, as imensas metrópoles como Paris, Berlim na virada do século XIX, ou NY no século XX, são emblemas concretos de um novo mundo, no qual nasce um novo homem, isolado e individualizado diante da multidão e do cotidiano. Por isso cita Baudelaire e Walter Benjamin, que pensaram este momento na poesia e na teoria literária e estética, respectivamente.
“A cidade real é o espaço da alteridade, onde não reconhecemos aqueles com que nos cruzamos todos os dias. São invisíveis como nós. Assim, o espaço urbano converte-se no local do reconhecimento da fractura do indivíduo, local de vivências diversas e da experiência constante do esquecimento: do outro, de nós, daquilo que nos rodeia. Aprendemos a ver/viver a cidade como aprendemos a ver os filmes. A imagem, no cinema e fora dele, é um texto que precisa de ser descodificado. Em parte da Europa e nos Estados Unidos torna-se mais fácil este processo de descodificação porque foram eles quem inventaram as regras do jogo, do cinema e da cidade moderna. De que maneira os definitivamente outros, como os africanos, vêem e vivem estes dois textos fundantes da civilização ocidental contemporânea?”
Demonstra que junto a este novo espaço das cidades-metrópoles, nasce nos indivíduos uma nova consciência de si mesmo e do outro, que transparece nas relações entre os homens, e que o cinema nesta fase surge como o ápice do avanço tecnológico. E o Cinema que é industria, só poderia ter como berço esta nova realidade industrial do mundo. Como portanto, ele se relaciona com a realidade africana? E de que modo a cidade e o cinema serão vivenciados pelos africanos?
Mudança de eixo: a visão da margem
Nos três dias de encontro da SOCINE, colocada a importância do debate como alavanca para se pensar Cinema e os caminhos traçados pela teoria, foi significativo unir as palestras de abertura com a professora Lucia Nagib e de encerramento com Mirian Tavares, que colocaram em xeque o modelo de narrativa hegemônico disseminado nos embates teóricos. Ao ouvir sobre cinema moçambicano, que é produzido em solo africano com ares das particularidades de cada espaço singular do continente, me pareceu ser questionado novamente o centro e sua relação com a periferia. Ouvir sobre a “periferia” que apresenta os seus abismos diante das cinematografias ao redor do globo, diante do tema da marginalização de produções cinematográficas, em uma cidade de médio porte como São Carlos no interior paulista, parece uma proveitosa ironia. Saindo da centralização da capital, a importância dos conhecimentos produzidos e disseminados na SOCINE em São Carlos parece óbvia, e traça paralelos da descentralização, da mudança de ângulo na visão central e estática do cinema nos arredores do mundo.
Estar a margem não é estar necessariamente em um nível baixo, inferior, beirando a barbárie frente a modernização ou avanços de primeira linha, do primeiro mundo e das formas do discurso hegemônico. O processo dos avanços nas diferentes comunidades não se apresenta como um caminho linear do primitivismo à civilização, conceitos estes já muito bem quebrados por suas intrínsecas contradições, mas sim no caminhar de um processo que será desigual, mas combinado, um dependente do outro, juntos, centro e margem, apresentando seu progresso e atrasos (tecnológicos e também humanos).
Porque como bem aponta a professora Tavares, o discurso hegemônico é carregado por nós mesmos do lado de cá dos mares, com este olhar ocidental, que assim como os pioneiros da etnografia, deitam seus generosos olhos como em um movimento de compaixão a um cinema que deseja e necessita ser olhado. A ideia do isolamento regional também não é necessariamente ruim, pois livre das influências externas ditas “dominantes”, se faz brotar a forma particular e original de um espaço também particular e original. No caso do cinema, a tentativa de se igualar a predominante forma narrativa, talvez apareça como também tentativa de se afirmar diante do próprio mundo que o coloca como diferente. À alteridade é dada significado a partir do posicionamento do outro que nos vê, e como ele nos vê, e nos enxerga como “outro”. E a África, posta como “outro”, intensificada e machucada com o processo de colonização de todo o continente, faz surgir este chamado “cinema outro”.
Trazer o cinema africano para o interior paulista é suscitar as questões primordiais na ordem política do debate, pois descentraliza o eixo dominante, faz confluir com as questões éticas e estéticas, e da própria linguagem, da forma e conteúdo, ou seja, dos grandes embates na teoria, além é claro de ampliar a troca e levar o cinema africano para fora do continente africano, e trazer para um outro continente como o latino americano – que sabe que carrega o seu próprio abismo e as fraturas diante da produção mundial hegemônica. Lembrando que na África a produção cinematográfica é possível, a dificuldade está em sua distribuição, fazer o olhar do outro enxergá-lo como diferente, e se assumir enquanto tal, não menos ou mais, apenas diferente, é a importância do cinema africano. Ao apresentar em suas imagens e movimentos os significados particulares de suas histórias, as historias que apenas os africanos nos podem contar.
*Priscila Lourenção é graduanda em Imagem e Som pela UFSCar e editora das seções Entrevistas e Dossiê da RUA.