Humberto Mauro: Presente e passado como estados de permanência

  • Post author:
  • Post category:Cobertura

Por Vitória Rocha

Em virtude das infelizes adversidades que nosso mundo e país tiveram de enfrentar durante as restrições sanitárias, o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade passou três de suas 28 edições em programação inteiramente virtual. O evento, que é o maior e mais constante na exibição, premiação e discussão do cinema documental latino-americano, retorna com 72 documentários de 34 países e duas importantes homenagens a figuras essenciais para a cinematografia de seus respectivos países e para a história do cinema mundial: Humberto Mauro (1897 – 1983) e Jean-Luc Godard (1930 – 2022). Interessada em apresentar, sobretudo, as abordagens sobre cinema brasileiro desenvolvidas no Festival, a Revista Universitária do Audiovisual esteve presente na Cinemateca Brasileira para acompanhar o último dia da 20ª Conferência Internacional do Documentário. Na mesa Revisitando Humberto Mauro, Sheila Schvarzman e Eduardo Morettin, dois dos maiores pesquisadores sobre o realizador, estiveram dissertando a respeito da importância historiográfica do diretor, assim como suas motivações criativas e sua trajetória profissional. Nessa perspectiva, o É Tudo Verdade se apresenta como uma das principais ferramentas de incentivo à discussão acadêmica, trazendo de volta ao presente a existência de figuras fundamentais e fazendo com que o passado seja sempre rememorado e permanente. 

Nascido no dia 30 de abril de 1897, no estado de Minas Gerais, Humberto Mauro se consagrou como um dos pioneiros do cinema brasileiro por meio de sua ampla e constante produção desde o final da década de 20 — menos de 30 anos após as primeiras filmagens realizadas em nosso país. Sua prolífica obra, que se consolidou com ínfimos recursos de produção, se estendeu até meados de 1970 e abrangeu tanto o campo documental quanto o ficcional. O início de suas atividades, no ano de 1925 e na cidade de Cataguases (MG), foi em parceria com Pedro Comello, com o filme Valadião, o Cratera (1925). Logo depois, em 1929, ele realizou Braza Dormida, um de seus filmes mais influentes. O prêmio a O Thesouro Perdido, em 1927, denotou o domínio do autor, nesta primeira fase, à linguagem cinematográfica entendida como o padrão do cinema narrativo clássico: o hollywoodiano. Neste sentido, nota-se que o apreço não era somente técnico, mas também temático, trazendo a demonstração de um Brasil cada vez mais “civilizado” para as telas. Além disso, é intrigante notar que este período, talvez, tenha sido uma espécie de prenúncio à construção de um “Brasil exemplar” que Mauro estaria incumbido de criar alguns anos depois.

Em 1930, no Rio de Janeiro e já na produtora Cinédia, de Adhemar Gonzaga, Humberto realiza Lábios sem beijos (1930) e Ganga bruta (1933), seu primeiro filme sonoro e uma das obras fundamentais no cinema brasileiro. Em 1936, sob vigência do governo de Getúlio Vargas, o Estado cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) como parte de um projeto autoritário de uso do cinema para fins “educativos”, com uma produção constante de obras financiadas pelo Governo. Escolhido como diretor-técnico do Instituto, Humberto foi responsável pela obra Descobrimento do Brasil (1937) e Os Bandeirantes (1940), primeiro filme histórico produzido pelo Instituto. Neste período de mudança, é de se imaginar que tenha existido um certo dilema na trajetória de Mauro, provado por novas ideologias, mas que se manteve resistente à completa incorporação das narrativas que vinha produzindo. De acordo com Sheila Schvarzman, na mesa em que estivemos presentes, em resposta a este impasse estaria, acima de tudo, o não-condicionamento do político ao estético. Isto porque a estética seria a política de Mauro. Em um período no qual o autor era um dos poucos produzindo, com recursos escassos e um ensejo de filmar e consolidar sua obra, ele não apenas desfrutou de uma oportunidade estável, como também desenvolveu o tom de seus trabalhos e sua dimensão documental, preservando e difundindo um recorte histórico do país. 

Nesta conjuntura, a produção de Humberto nos possibilita enxergar o que o presente impõe nas imagens de um passado já inexistente e, ao mesmo tempo, preserva a memória deste entre tantas dificuldades de acesso, preservação deteriorada e anteriores desmontes aos órgãos culturais. Por meio da breve tentativa de um cinema cientificista que registrou os movimentos da natureza, por exemplo, Mauro desenvolveu tons líricos que foram usados em seus filmes rurais, assim como práticas de observação apuradas. Todas as mudanças que acompanharam sua jornada profissional não impediram que sua visão de realizador artístico fosse imbuída nas obras, bem como que sua nostalgia e apreço ao documentário rural fossem extinguidos de sua veia criativa. À vista disso, revisitar a obra de Humberto Mauro se mostra cada vez mais como um ato necessário para o estudo de um cinema que nasceu entre percalços financeiros mas ainda assim foi capaz de criar raízes esteticamente palpáveis e reaplicáveis posteriormente. Nos estudos de Eduardo Morettin, o autor alega que Glauber Rocha o nomeou como o “pai do Cinema Novo”, demonstrando o pioneirismo e a importância de sua trajetória como um verdadeiro trabalhador e artista do audiovisual brasileiro. Assim, o resgate material, os estudos e sua exposição nos trazem aspectos significativos do cinema brasileiro, na medida em que trazemos de volta para os nossos tempos o que é preciso reconhecer de nossa cultura e profissão como produtores audiovisuais. É através desta reflexão histórica que somos capazes de manter a obra de Humberto Mauro viva, concebendo arte, técnica e cultura continuamente. Este é o tamanho e a importância deste artífice: a capacidade de fazer do passado e do presente estados de permanência constantes.