Império dos Sentidos: A experiência pornográfica como expressão da liberdade.

Autor: Plynio Thalison Alves Nava¹

Co-autora: Antonielly Cantanhêde Wolff²

Resumo: Na urgência de preservar a tradição, o filme Império dos Sentidos constrói uma narrativa que fundamenta o resgate das experiências culturais ancestrais do país como crítica ao processo de ocidentalização, responsável pelo progressivo soterramento do legado cultural japonês. Mediante a integração de dois movimentos antagônicos – o impulso de eros e thanatos, expressos na performance realista de sexo entre atores, no recuo às suas práticas culturais primitivas do país e na utilização da pornografia como expressão da fruição sensual, Império dos Sentidos mostra a sobrevivência da tradição erótica japonesa ao sinalizar a busca por uma cultura de liberdade. Este trabalho pretende analisar de que forma esta obra reflete questões acerca da transmissão da experiência, da educação dos sentidos e compreensão do prazer e sua busca como garantia da autonomia do sujeito.

Palavras-Chave: Erotismo, Cultura, Império dos Sentidos

Abstract: Trying to preserve tradition, the film Empire of the Senses builds a narrative based on the rescue of cultural experiences of the country as critical to the process of westernization, responsible for the progressive burial of the Japanese cultural heritage. Through the integration of two antagonistic movements – the impulse of eros and thanatos, expressed in the performance of realistic sex between actors, the retreat to their primitive cultural practices of the country and the use of pornography as an expression of sensuous enjoyment, Empire of the senses shows the survival Japanese erotic tradition, to signal the search for a culture of freedom.This paper aims to examine how this movie reflects questions about the transmission of experience, education of the senses and understanding of pleasure and its quest to guarantee the autonomy of the subject.

Keywords: Eroticism, Culture, In the realm of the senses.

A Fruição na História Cultural Japonesa

Embora orientada por uma rígida disciplina, os japoneses nunca extraíram de seu foco a satisfação pelos prazeres do corpo. No interior de uma vida social controlada por uma conduta rigorosa, a satisfação dos sentidos ocupa lugar privilegiado no Japão, a ponto de sua fruição ser precedida por um aprendizado. Seja nos tradicionais banhos, na contemplação das cerejeiras, ou na arte dos origamis – atitudes que sobreviveram à massiva ocidentalização dos costumes japoneses – tais hábitos, que se encontram imersos no território a que Ruth Benedict³ traduziu como Círculo dos Sentimentos Humanos(4)  são reflexos da condução de uma vida dedicada à apreciação dos prazeres.

Tal assertiva aplica-se também ao território da sexualidade: desde os primeiros anos de sua vida, as experiências sexuais das crianças japonesas são vividas sem a iminência dos tabus, tampouco constrangimentos paternos.

“As crianças sabem coisas da vida tanto por parte da liberdade de conversas dos adultos, quanto devido à proximidade das dependências em que vive uma família japonesa. Além do mais, suas mães geralmente chamam a atenção para os órgãos genitais dos filhos quando brincam com eles e lhes dão banho, mesmo quando se trata de meninos. Os japoneses não condenam a sexualidade infantil, a não ser nos locais e companhias errados. A masturbação não é considerada perigosa. As turmas infantis são também bastante livres no lançamento de críticas uns para os outros – que mais tarde seriam insultos – e na jactância – que mais tarde daria motivo a profunda vergonha.” ( Benedict, 2002, p. 226)

Para uma compreensão da percepção japonesa sobre o prazer erótico, um retrospecto histórico já seria suficientemente válido para visualizar de que forma a vida urbana oferecia alternativas compensatórias e regozijantes ao homem japonês. Dividido entre uma jornada dupla e indissociável de dever e prazer – separadas moral e espacialmente, a priorização do cumprimento de suas obrigações de cidadão, pai e marido não era vista como pretexto ao usufruto do prazer erótico. Estava circunscrita em uma rotina social como outra qualquer.

Os japoneses recorriam à diversão junto de gueixas, ou usufruíam corriqueiramente dos favores dos prostíbulos. Frequentavam as casas sem constrangimento e não atrelavam às suas visitas qualquer indício de comportamento marginal. A atividade das casas de prazer, no Japão, era regulamentada pelo xogunato e cada proprietária devia seus tributos e satisfações ao governo. Aos japoneses, o exercício da prostituição não era visto sob a ótica do moralismo. Legalizada desde a instalação do primeiro bairro do prazer, em 1585, na cidade de Osaka(5), o concubinato não era visto de forma degradante, embora o status de prostituta não oferecesse privilégios a nenhuma das mulheres que o praticavam. Segundo Maurice Pinguet (1987)

“Não se projetava sobre esta útil profissão a aura sulfurosa do vício. A prostituta não inspirava nem desprezo nem nojo. Era lastimada por se ver na obrigação de se vender ou ser vendida.”

No que toca à produção artística, uma expressão em especial ocupou-se de explorar o universo dos prazeres do Japão. Nascido no período Edo, o Uykio-o diz respeito a uma produção desenvolvida pela classe popular, cuja principal característica estava na exposição do prazer e do divertimento no cotidiano japonês. Esta pintura, que nunca tencionou igualar suas expressões à natureza, apresentava o mundo dos prazeres como uma espécie de metáfora. Sua fusão de duas narrativas – literária e visual – num único trabalho xilográfico antecederam dois séculos das artes visuais europeias ao empreenderem sua técnica em direção oposta à representação fiel do real.

“A arte japonesa jamais deixou-se seduzir pelo caráter de verossimilhança, de identificação plausível com a realidade. Talvez a natureza anímica dos japoneses, seu amor e respeito pelas forças e belezas da natureza tenha sido o mote para que a própria natureza surgisse na arte sempre como metáfora e não como pura imitação. Gravura, pintura, escultura, Bunraku, Nô e Kabuki sempre deixaram à mostra, de uma maneira ou de outra, a artificialidade da representação, sempre assumindo-se como exercício estético da linguagem.”( MEDEIROS, Afonso. Crônica Visual: a gravura japonesa como matriz da modernidade. Coleção Desenredos; Ed 4. Goiânia: Funape, 2008. 1v.)

Nas gravuras do Mundo Flutuante japonês, esse caráter crônico de que dispõe sua narrativa não se poupou de explorar a encenação do sexo em suas gravuras. Dentro da vasta gama de obras do Uykio-o, a gravura Makura-e é de sumária importância para o desenvolvimento de uma estética do sexo. Produzidas intencionalmente para estimular sexualmente os seus leitores, as gravuras, que conceitualmente se aproximam da pornografia, dispõem de um enorme catálogo dedicado a mostrar a intimidade do japonês, em cenas de sexo em diversas facetas, que vão da bissexualidade ao uso de primitivas formas de consolos que penetram as mulheres nas gravuras.

A compreensão de um Mundo Flutuante, onde o prazer protagoniza a narrativa makura-e, não se furtou a descrever o sexo com o recato eufemista: nestas gravuras, em particular, as relações sexuais se restringem em grande parte ao âmbito do domicílio, onde casais são expostos partilhando sua sexualidade – às vezes acompanhados de um terceiro parceiro – sem qualquer privação de sentido ou recorte moralista do artista xilográfico, fato que serve como hipótese ao exaustivo consumo desses produtos pelos japoneses do Edo.

“El ukiyo-e y por endeelmakura-e, era uma producción centrada enlo comercial, dedicada y dispuesta a satisfacerlaincreíble demanda de materialesimpresos, tanto literarios como visuales, de una ampla masa popular que consumía esta obras de maneramuy similar a como hoy se consumenloslibros de historietas eróticas, las revistas de chismes o laspostalitas desouvenir” (García Rodríguez, Amaury. Desentrañando “lo pornográfico”: La xilogravura makura-e. Analesdel Instituto de Investigaciones estéticas.

Nascido em um momento decisivo da história do Japão – época em que o país efetivou sua política de isolamento e projetou seu olhar no interior de sua cultura, a estética do Ukiyo-e possui importância inegável na história das artes do país: sua narrativa, que efetua uma retomada da tradição estética do Período Heian (794-1192), serve como barômetro para a compreensão de um movimento singular, o resgate das tradições eróticas diluído no contínuo processo de ocidentalização ocorrido no século XX.

Com a rendição do Japão e, consequentemente, o fim da 2º Guerra Mundial, uma forte onda de transformações ocorreu na tradicional esfera social do país. Retomando o empreendimento modernizador ocorrido na Era Meiji, a ocidentalização do Japão no século XX reflete a mesma força que abalou as estruturas sociais nipônicas há dois séculos. Suas implicações, entretanto, desencadearam transformações consideravelmente mais abruptas que as da Restauração, a julgar pela adoção de novos paradigmas de produção industrial, como o toyotismo, cuja projeção alcançou escalas globais e dinamizou a economia do país através de uma nova ideologia orgânica da administração da produção capitalista.

No campo cultural, a euforia da ocidentalização deixava claras suas marcas ao redesenhar as paisagens do Japão: o trânsito dos automóveis de luxo, a importação de gêneros musicais, como jazz e rock, e a ebulição de uma juventude seduzida pelos ideais da democracia são traços de um novo perfil cultural inaugurado pela sociedade japonesa após a ocupação do país pelos Estados Unidos. Estes novos ideais, levados pelos americanos, presentes no discurso político, na música, no cinema e no progresso, logo foram eclipsados pelo clima de desconfiança que pairava no Japão.

“O salto do Japão feudal para a economia capitalista industrial se deu de forma quase milagrosa na superfície, mas, como hoje já se reconhece, acarretou problemas sociais em todos os níveis. Entre os jovens, havia naturalmente uma euforia com a liberdade recém-adquirida, mas ao mesmo tempo um desconforto pela forma abrupta e inapelável da introdução de novos costumes” (Nagib,1993, p. 18)

É neste contexto que um grupo de jovens cineastas entra em cena no Japão. Questionando tendências e subvertendo posições, a Nouvelle Vague Japonesa representa o segundo momento das transformações culturais do país, caracterizado pela crítica social e pelo resgate das tradições perdidas com a ocidentalização que atravessou a década de 1950.

Império dos Sentidos: O legado transgressor do cinema novo japonês

Em 1955, após a interrupção promovida pelo governo militarista, o estúdio Nikkatsu retoma suas atividades de produção. Coroando sua reabertura, os filmes Estação do Sol e Paixão Juvenil, muito mais do que incorporar valores ocidentais recém-introduzidos no Japão, rompiam o até então inflexível paradigma dos mestres diretores no Japão para se tornarem precursores da Nouvelle Vague Japonesa, momento histórico fundamental para a compreensão do novo direcionamento dado ao cinema do país.

“Era o ano marcante de 1960, e os dois filmes-manifesto da nouvelle vague francesa tinham acabado de ser distribuídos no Japão: Os Incompreendidos (Lesquatrecentscoups, 1959), de François Truffaut e Acossado (À bout de souffle, 1960), de Jean-Luc Godard. Sob o impacto dessa onda francesa, carregada de novidades, dois críticos do jornal Yomiurishukan não tardaram em batizar de nouvelle vague o segundo filme do jovem diretor Nagisa Oshima, Conto Cruel da Juventude (Seishunzankokumonogatari), que chegava aos cinemas junto com o de seus contemporâneos franceses. A partir daí a alcunha se estendeu para os demais colegas de Oshima da produtora Shochiku, notadamente Yoshishige Yoshida e Masahiro Shinoda. É que a empresa farejou prováveis vantagens comerciais na utilização da expressão, que vinha a calhar para sua intenção, desenvolvida já nos últimos anos, de estimular a formação de diretores jovens. Surgiu assim a “nouvelle vague da Shochiku”, que depois se generalizou para “nouvelle vague japonesa”, incluindo filmes de outras produtoras” (Nagib, 2006, p. 160).

Propiciado o encontro da publicidade com os interesses comerciais, a Nouvelle Vague consolida-se como movimento. Do ponto de vista do gênero, esta peculiaridade não pode ser vista como óbice. O momento histórico, marcado por profundas transformações no Japão, aliado à inserção de jovens diretores e novas concepções acerca do cinema, aproximou estilos e determinou o início de uma nova produção, marcada pela influência do Cinema Veritè, pelas técnicas dramatúrgicas de Bertold Brecht e pela experiência dialética com as religiões nacionalistas.

Agregando influências dos novos cinemas ocidentais, os jovens cineastas da Nouvelle Vague Japonesa buscavam um cinema mais realista como contraponto à percepção tradicional das grandes produtoras japonesas, para quem a mais remota possibilidade de mudança era vista com desapreço.

“Na base desse realismo, encontra-se o agnosticismo ou a ausência de metafísica e de um deus sobrenatural e punitivo tal como concebem as religiões monoteístas. Embora os jovens cineastas, em especial Oshima, primassem pela rebeldia contra toda forma de autoridade ou figura paterna, sobretudo contra a crença etnocêntrica na origem divina do imperador que levou o país à guerra, tentavam resgatar do xintoísmo seu empirismo e intimidade com a natureza e o mundo material” ( NAGIB, 2006, p. 131)

Como resultado da intensa busca pelo realismo, um vasto catálogo filmográfico foi produzido no Japão por esses cineastas. Os títulos, compostos por ficções e documentários, possuíam uma função-chave para esse novo cinema: apresentar o Japão a um novo elenco de personagens destituídos de culpa e dotados de instintos e individualidade. A era dos filmes da Nouvelle Vague japonesa atravessa duas décadas – 50 e 60 – mas sua força estética, que integra tradição e quebra de tabus, arrastou-se até o final da década de 70, quando Nagisa Oshima, o mais transgressor e pessimista dos novos cineastas, radicalizou sua experiência realista através do filme Império dos Sentidos.

Considerado um dos mais ousados filmes eróticos feitos na década de 70, Império dos Sentidos é o roteiro adaptado de um sui generis caso de homicídio ocorrido no Japão.

“Trata-se da reencenação da história real de Sade Abe, uma criada que, nos anos 30 ( isto é, auge do militarismo), após semanas de sexo de sexo ininterrupto com seu patrão, o estrangulou e emasculou, para obter o máximo de satisfação sexual” ( Nagib, 2006, p. 14).

Financiado pelo mecenas francês Anatole Duman, Império dos Sentidos foi o primeiro filme de Nagisa Oshima produzido por uma empresa estrangeira e, curiosamente, o primeiro empreendimento do diretor dedicado à exposição da ancestralidade japonesa, cujas ressonâncias de uma cultura de liberdade sobreviveram a vários séculos de mudanças ocorridas no país. Sob a tutela da produtora Argos, Nagisa Oshima efetuou seu trabalho sem grandes interferências de seus investidores, nem forte controle da empresa, cuja única exigência feita ao diretor dizia respeito ao enfoque erótico dado à história.

“Oshima submeteu dois projetos a Dauman, que se decidiu pela história de Sada Abe, baseada num fato real. Dauman sugeriu a mudança do enfoque do tema, com que, segundo diz, nada fez senão explicitar um desejo irrevelado do cineasta” ( Nagib, 1995, p. 146)

Surge, então, o primeiro filme pornográfico de Oshima. Resgatar num homicídio a nuance erótica do Japão tornou-se para o diretor uma diligência estética: contrastes cromáticos, a forte presença da cor vermelha, a influência do teatro kabuki e as claras referências às gravuras eróticas do período Edo, imersas numa atmosfera carregada de sensualidade e poder, reforçam a transgressão da esfera privada ao promover a afirmação da individualidade e da publicização de sua intimidade. Como nos filmes da indústria pornô, Sada Abe e Kichizan são cobertos por olhares, a princípio obscurecidos, tão logo se apressam a serem convidados pelo casal para o seu ritual de libertação. Sob a atribuição do olhar voyeaur, Lúcia Nagib (1995) faz uma análise essencial à compreensão deste na trama de Oshima, na qual, segundo o crítico Pascal Bonitzer, o voyeaur ofereceria ao filme um caráter de distanciamento.

“Igualmente, como na maioria dos filmes do gênero, dá-se ênfase à figura do voyeaur, com o qual o espectador se identifica e que, por sua vez, se identifica com os personagens em ação. Não sendo propriamente uma consciência intermediária, mas apenas um olho sensível, o voyeaur serve de reforço para a emoção do espectador e não para seu distanciamento”. (NAGIB, 2005, pág. 157)

Mesmo ultrapassando as limitações padronizadoras do gênero em questão, Império dos Sentidos dialoga abertamente com o filme pornô. Sua composição, que reflete num mesmo instante o recuo ao passado de um Japão que celebra a sexualidade e a integração de um padrão ocidental de cinema à reconstituição de um fato real, atualiza todo o reducionismo deste gênero, conferindo ao mesmo o imprescindível status de filme pornô, como afirmaria mais tarde o próprio Nagisa Oshima.

Ao olhar desavisado e desconfiado do espectador, abundam indicações de um link entre o jidaigeki(6) e o filme hardcore(7) : o caráter conceitual da orgia, visto sob a ótica da integração dos indivíduos focalizados pelo entusiasmo de Sada Abe, a presença dos consolos, que penetram orifícios, conferindo à gueixa deflorada a participação em rituais de passagem, a contribuição do moneyshot(8) , além da constante presença do voyeaur, fazem de Império dos Sentidos um filme meta-pornográfico, que supera a inanição de uma narrativa de estrutura delicada em favor da celebração dos indivíduos, mergulhados numa atmosfera de total liberdade, para a vida e para a morte.

Estes dois impulsos – Eros e Tanatos – fundem-se na figura central de Sada Abe, cujas ações transgressoras ressignificam culturalmente a representação do corpo feminino no cinema japonês, reposicionando-o em contextos diversos, culturalmente, daqueles por ele antes ocupados.

Ao dedicar-se ao estudo do cinema novo japonês – e reservar-se mais particularmente à filmografia de Nagisa Oshima, Lucia Nagib observa uma tripla revolução provocada por Império dos Sentidos. A primeira refere-se à prática real do sexo na sétima arte. A segunda, por sua vez, diz respeito à reversão dos efeitos de distanciamento utilizados nos cinemas de vanguarda para subtrair o efeito do real em suas narrativas. E por último, a terceira revolução tratará da identificação do “princípio de realidade” ao “princípio de prazer”, dois conceitos, até então, opostos nos estudos da psicanálise e na filosofia da cultura.

Um pequeno percurso da repressão ocidental

Uma das tarefas que cabe à cultura é a educação do homem, uma educação que preserve e aguce (potencialize) todas as faculdades humanas. Freud afirma que “A história do homem é a historia de sua repressão”. A civilização (considerando-se neste caso, cultura e civilização como sinônimos) começa quando o homem abre mão da satisfação integral de suas necessidades. O principio de prazer é reprimido em prol do principio de realidade. Esta coerção se dá para que haja progresso e para a manutenção da cultura. O principio de realidade reprime princípios da natureza humana, transformando-os em instintos perversos e irracionais, que passam a ser prejudiciais à vida na civilização, resultando na supressão das capacidades e no modo de vida do homem. A civilização decreta que Eros (instinto de vida) deve ser controlado para não seguir funesto como Thanatos (instinto de morte). Os impulsos naturais do homem são convertidos, se antes dedicava-se mais tempo à atividade lúdica (ao prazer), agora se volta à emergência da produtividade. A história da repressão do homem nos apresenta tanto sua necessidade de ter cultura como suas sequelas e perdas.

Desde Platão, em sua República, já se havia uma forte presença da repressão em relação à educação e à mimese. Esta última, segundo o filósofo, é vista como agradável, porém inútil, e seu perigo está em ser agradável, pois tal sentimento pode ser configurado como um desvio. Platão nos diz que há uma mimese “negativa”, que constrói apenas simulacros e ameaça o processo de construção da civilização. Como a mimese pode ser uma ameaça no processo de construção da civilização, se o aprendizado mimético produz prazer e favorece o processo de conhecimento? Imitar, criar e construir está por trás de toda e qualquer manifestação do ser humano para expressão dos mais diversos sentimentos.

“A luta começa com a perpetua conquista interna das faculdades “inferiores” do individuo: as suas faculdades sensuais e apetitivas. A sua subjugação é considerada, pelo menos desde Platão, um elemento constitutivo da razão humana, a qual é, assim, repressiva em sua própria função”. (Marcuse, 1972, pág. 107).

As faculdades sensuais sempre estiveram condenadas ao reino das faculdades inferiores. A disciplina estética prova com o seu nascimento essa subjugação. Se antes não era levada a sério, quando esta surge enquanto ciência da arte e do belo, continuou a ser vista como um conhecimento inferior.

Para os ocidentais, as influências da realidade externa dão vazão ao sentimento de culpa, pois “à medida que a civilização avança, o sentimento de culpa é ainda mais “reforçado”, “intensificado”, está em constante incremento”. (Marcuse, 1972, pág. 83). Os japoneses, por sua vez, são envolvidos por outro sentimento – a vergonha, não sendo esta o resultado de uma repressão, e sim de uma conduta, pois consiste no que é bom para a vida consigo e com o outro, uma vez que os japoneses se ocupam em trabalhar e viver bem em conjunto. Se o sentimento de culpa é uma espécie de castração para os nossos desejos, os japoneses, em contrapartida, não abriram mão do prazer: o princípio de prazer atua seguido de suas potencialidades naturais, nas quais a educação ocupa espaço fundamental para o seu aprimoramento.

A cultura ocidental abriu mão do lúdico em prol do trabalho e da produção, o princípio de prazer o mostra, enquanto tido como ameaça à civilização. Para os japoneses, contudo, o prazer é a própria libertação, é um saber lidar com o que é natural ao homem e com o que este constrói: civilização, técnica, condutas, educação e etc.

O retorno do Erótico

O sexo, visto como uma quebra de tabu – já que não pertence aos conformes da normalidade e da moralidade, é libertador, pois aspira à consumação efetiva do prazer: a gratificação. Essa ação erótica se encontra à margem da cultura: tudo o que se mantém livre vive à margem ou se anula a exemplo da arte. A sexualidade, na maioria das culturas, permanece no âmbito das instituições monogâmicas, ficando a serviço da procriação – uma sexualidade procriadora. Império dos Sentidos, na contramão deste juízo, resgata uma tradição erótica que está entrelaçada com a morte – “a morte como ápice do prazer”.

“Os jovens diretores se lançaram no exercício de recuperação de tradições japonesas de cultivo do corpo humano e do entorno físico sufocadas pelo militarismo e a ocidentalização… Assim dedicaram-se a experiências cinematográficas extremas de sexo, violência e morte, incluindo a pratica (e a etiqueta) do suicídio”. (NAGIB,2006, pág.130 e 131).

Em Império dos Sentidos, o erótico é resgatado pelo relacionamento de Sada Abe e Kichizan – uma relação transgressora, também exemplificada na cena em que crianças correm nuas pela chuva, que é um elemento erótico, pelo abrupto toque no órgão genital do menino e, no decorrer do filme, a pornografia se esvai e dá vazão ao puro erotismo. Oshima, ao trazer de volta o erotismo, agrediu a cultura moralista ocidental estabelecida, já que mostra indivíduos livres, cujo comportamento subversivo seria definido pela perversão. A essa imagem, recorramos ao princípio de prazer e ao princípio da realidade. Quando o princípio de prazer, assim como a fantasia, é classificado como perversão, tudo o que adquirimos pelo princípio ordenador nos faz recuar e sentir culpa ao dar espaço a esses instintos que há muito vem sendo esquecidos, pois o que a cultura tenciona é promover o apagamento de uma natureza autêntica. O erótico mostra a liberdade da qual abrimos mão para viver em civilização. A isso se sobressai a proposta de uma educação estética, que não tentaria dominar a natureza e reprimir nossos instintos, mas educar para sermos completos, não considerando uma ameaça nossos impulsos eróticos.

Considerações Finais

À medida que o Japão se desenvolvia tecnologicamente, parte de seu legado era soterrado por um massivo processo de ocidentalização, resultando não somente no progresso do país, mas no esquecimento de uma tradição voltada à busca do prazer, da educação do corpo e, principalmente, na manutenção de uma cultura de liberdade.

Tais ideais, entretanto, reaparecem no país, em plena euforia de sua americanização. Através de jovens artistas, efetuou-se um recuo às origens primitivas do Japão, no intuito de questionar a situação de um país cujo processo de ocidentalização, bem como episódios como a derrota japonesa na 2º guerra, determinariam o apagamento de suas antigas tradições.

Conhecido como Nouvelle Vague Japonesa, o movimento artístico que buscou o recuo às origens culturais nipônicas caracterizou-se pelo resgate de um ideal de liberdade cuja principal expressão, através do cinema, foi a sexualidade e seus desdobramentos no Japão. Reunindo uma diversidade de cineastas, questionou não somente paradigmas da cultura ocidental no país, mas o próprio modelo de produção do cinema ao colocar no centro da discussão a presença do jovem cineasta em confronto com a figura do “mestre”, e a relação do Japão com seu passado cultural.

O filme Império dos Sentidos é uma obra influenciada por esta proposta de resgate e expõe que, mesmo reféns do processo de ocidentalização, os ideais de liberdade da tradição japonesa resistiram ao impacto das transformações culturais sofridas pelo país. O filme tem por intuito visualizar de que modo a experiência de liberdade proposta por sua narrativa pode ser percebida como modelo para uma cultura ocidental fundamentada na negação do prazer e no sentimento da culpa.

Império dos Sentidos, ao mostrar a quebra de tabus e a busca incessante pelo prazer, leva-nos a pensar no principio ordenador da cultura ocidental, como a subjugação dos instintos efetivada pelos controles repressivos, restando uma proposta de educação estética, que resgate o prazer e a liberdade e, consequentemente, liberte a civilização de suas amarras repressivas. À educação estética caberá essa tarefa, já que, assim como os homens, a educação encontra-se no véu da cultura, não oferecendo fundamentos na promoção da autonomia dos homens: uma educação libertadora.

A necessidade da educação é imprescindível ao convívio em sociedade, mas seu procedimento deveria estar atrelado à compreensão de sua tarefa de domesticar os instintos, ao invés da repressão de pulsões que integram a natureza dos homens.

O corpo nipônico é um corpo educado. A pornografia japonesa, como nos apresenta o filme Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, mostra o resgate do erotismo, mostrando um homem que, destituído de culpa e de toda a conformidade que o ser-humano mantém com a sua natureza, torna a sua ação sempre provida de uma moral, pois há um perceptível reconhecimento nas ações que preservam a espécie.

______________________________________________________________________________________________

1. Plynio Thalison Alves Nava é Graduando em Comunicação Social – UFMA.

2. Antonielly Cantanhêde Wolff é Graduanda em Filosofia – UFMA.

3. Salvaguardadas as críticas acerca de sua pesquisa sobre o Japão, o método de análise proposto por Ruth Benedict revolucionou as técnicas de pesquisa antropológica, ao abrir mão de um recurso tão imprescindível ao antropólogo como o trabalho de campo, para debruçar-se em pesquisas anteriormente desenvolvidas por antropólogos acerca do Japão e entrevistas com japoneses que, naquele momento, moravam fora de seu país.

4. Ver Ruth Benedict, p. 151.

5. Sobre os bairros do prazer japoneses, ver Cecilia Segawa Seigle, Yoshiwara. The Glittering World of the Japanese courtesan, Honolulu, University of Hawai Press, 1993.

6. Tratam-se dos dramas de época japonês

7. Filme de sexo explícito

8. Na estética Hardcore, prevalece como característica fulcral o close da ejaculação no rosto da mulher, mais conhecido como Money Shot, plano que representa na dramaturgia pornô o clímax de uma ação. Para mais informações sobre o termo, consultar O olhar Pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo, de Nuno Cesar Abreu.

Referências Bibliográficas

ABREU, Nuno César. O olhar pornô: A representação do obsceno no cinema e no vídeo. Campinas, SP: Mercado das letras, 1996.

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Ed. Perpectiva, 2002

Cecilia SegawaSeigle, Yoshiwara. The Glittering World of the Japanese Courtesan, Honolulu, University of Hawai Press, 1993.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão; O mal estar na civilização. Tradução de Durval Marcondes. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).

GREINER, Christine; AMORIM, Cláudia. ( Orgs), (2006), Leituras do Sexo, Ed. Annablume. Leituras do Sexo. In. Nagib, Lúcia. Teoria experimental do realismo corpóreo baseada nos filmes de Nagisa Oshima e da Nouvelle Vague Japonesa.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. 5º edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.

MEDEIROS, Afonso. Crônica Visual: a gravura japonesa como matriz da modernidade. Coleção Desenredos. Goiânia: FUNAPE, 2008

NAGIB, Lucia. Em torno da Nouvelle Vague Japonesa. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993.

NAGIB, Lúcia. Nascido das cinzas: autor e sujeito nos filmes de Oshima. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1995.

RODRÍGUEZ, Amaury Garcia. Desentrañando“Lo pornográfico”: La xilogravura makura-e. Analesdel Instituto de investigaciones estéticas. Otoño. Ano I, Vol. XXIII, num. 079. Universidade Autónoma de México. Distrito Federal, México, pp. 135-152, 2001.

PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem um comentário

Deixe uma resposta